Reforma tributária: O paradoxo entre políticas públicas e guerras fiscais
A reforma tributária avança na agenda ambiental, mas a Operação Quíron evidencia fraudes no IPVA e práticas de guerra fiscal que comprometem políticas públicas e enfraquecem o pacto federativo.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:31
A aprovação da EC 132/23 representa um marco legal no sentido de tornar o Sistema Tributário Nacional mais simples e racional. Uma das grandes inovações da reforma tributária foi o estabelecimento no art. 145, §3º da CF/1988 dos novos princípios do Sistema Tributário Nacional: a simplicidade, a transparência, a justiça tributária, a cooperação e a defesa do meio ambiente.
Além do princípio da defesa do meio ambiente, a reforma tributária ainda trouxe outras duas disposições importantes sobre a questão ambiental. A primeira, prevista no art. 43, § 4º que trata da possibilidade de concessão de incentivos fiscais regionais por meio de isenções tributárias que considerem a redução das emissões de carbono. A segunda, presente no art. 155, § 6º, II da CF/1988 que estabelece a possibilidade de aplicação de alíquotas diferenciadas do IPVA, levando em conta, entre outros fatores, o impacto ambiental.
Dotado de extrafiscalidade vinculada à proteção dos impactos ambientais, o IPVA pode ser usado para estimular a aquisição de veículos com menor índice de emissão de CO2. Em termos econômicos, a medida pode induzir os consumidores a optarem pela aquisição de veículos híbridos e elétricos. Em termos estritamente tributários, essa indução se materializa por meio da concessão de isenções fiscais.
É importante mencionar que o Brasil integra a agenda ambiental internacional há tempos. Além de ter sediado recentemente a COP30, o país participou da Conferência de Estocolmo, realizada no ano de 1972, aderiu ao Protocolo de Kyoto, cujo objetivo primordial é a redução nas emissões de gases que causam o efeito estufa e reafirmou o seu compromisso com as pautas ambientais no Acordo de Paris.
A Operação Quíron
Em agosto de 2024, um caso envolvendo uma investigação relacionada à sonegação de IPVA ganhou o noticiário no Estado de Goiás. A Operação Quíron, revelou uma prática criminosa dos contribuintes goianos que estavam transferindo seus veículos híbridos e elétricos para o Distrito Federal, utilizando endereços falsos.
O motivo da transferência dos veículos está relacionado ao art. 2º da lei 7.028/21 do Distrito Federal que concedeu isenção de IPVA aos veículos híbridos e elétricos.
Em dezembro de 2024, o Governo do Estado de Goiás publicou em seu sítio eletrônico alguns resultados da investigação denominada Operação Quíron. De acordo com os dados divulgados, em razão do crescimento da frota de veículos híbridos e elétricos, caso as irregularidades não sejam interrompidas, o prejuízo ao Estado de Goiás pode atingir a casa dos 100 milhões de reais até 2027.
Em setembro de 2025, em um novo desdobramento da operação, o Governo de Goiás constatou que os contribuintes deixaram de adquirir os veículos no Estado e passaram a comprá-los em Estados que concedem a isenção.
O domicílio tributário
A análise dos fatos à luz do Direito impõe o resgate das noções de domicílio tributário, especialmente no que tange ao interesse fiscal, assumindo nesse contexto enorme relevância. O art. 127 do CTN dispõe que em relação às "pessoas naturais o domicílio tributário é sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade".
Portanto, para as pessoas físicas o CTN adota para a definição do domicílio tributário, via de regra, o critério territorial. Isso significa que o contribuinte está sujeito às normas do IPVA do Estado da federação onde declarou seu domicílio.
Vale lembrar que não há impedimento na aquisição de veículo em outro Estado, havendo que se observar o registro do veículo no Estado de seu domicílio e o consequente recolhimento da diferença da alíquota de ICMS.
Competição tributária ou guerra fiscal?
A lei 7.028/DF que trata do IPVA, em tese, está em consonância com as disposições previstas pela reforma tributária que foram incorporadas ao texto constitucional. Não se vislumbra nesse ponto, a sustentação da alegação de sua inconstitucionalidade frente à previsão do art. 155, §6º, II da CF/1988.
Poderia se argumentar que no caso em questão, como o Distrito Federal estabeleceu alíquota zero para o IPVA, não haveria arrecadação de receitas tributárias provenientes desse tributo e, portanto, não caberia se falar em guerra fiscal, mas sim em uma lícita competição econômica pela via tributária.
Entretanto, nesse caso, a isenção do IPVA funciona como atrativo econômico para o consumidor, que opta por adquirir o veículo em Brasília e assim contribui com a arrecadação do ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços para o Distrito Federal. O entendimento da Secretaria da Economia do Estado de Goiás é que além da fraude no IPVA, o contribuinte deve ser responsabilizado pelo recolhimento do diferencial de alíquota do ICMS, correspondente à parte que deveria ter sido paga a Goiás.
O caso é recente e ainda não foi analisado pelo Poder Judiciário, entretanto não se pode afastar a possibilidade da configuração de guerra fiscal pela arrecadação de ICMS, com fundamento na isenção de IPVA aos proprietários de veículos com registro no Distrito Federal, estabelecendo um ambiente de concorrência desleal que pode comprometer a implementação eficaz da política pública ambiental e enfraquecer o pacto federativo.
Consequências Penais Tributárias
O art. 1º da lei 8.137/1990, conhecida como lei dos crimes contra a ordem tributária, dispõe que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo mediante omissão de informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias, com pena prevista de 2 a 5 anos de reclusão e multa.
Portanto, subsumindo os fatos à norma, os atos praticados pelos proprietários dos veículos, que visaram suprimir a cobrança do IPVA pelo Estado de Goiás, gozando da isenção outorgada pelo Distrito Federal, enquadram-se na capitulação mencionada.
Em linha com esse raciocínio, o STJ assentou o entendimento, no julgamento do HC 146.404/SP, de que o uso de endereço falso, com o intuito de suprimir ou reduzir tributo, caracteriza crime contra a ordem tributária.
No entanto, em 2009, o STF editou a súmula vinculante 24, entendendo que: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo". A referida súmula condicionou a ação penal ao prévio exaurimento da via administrativa, suspendendo a persecução penal do Estado.
Além do entendimento da jurisprudência, o art. 83 da lei 9.430/1996 estendeu às pessoas físicas, as benesses da suspensão da pretensão punitiva do Estado em relação aos crimes previstos no art. 1º da lei dos crimes contra a ordem tributária concedidas às pessoas jurídicas na lei 10.684/03.
Será que o conjunto normativo e o entendimento jurisprudencial atual, ao reduzir os riscos de sanções pela via da persecução penal, não induz o contribuinte à prática de condutas criminosas na seara tributária?
Os impactos financeiros e sociais
Segundo dados publicados pela Secretaria da Economia do Estado de Goiás, os prejuízos causados aos cofres públicos chegaram a dez milhões de reais, e a estimativa de perdas, considerando o crescimento da frota de veículos híbridos e elétricos, pode alcançar 100 milhões de reais até 2027.
Além do prejuízo milionário aos cofres estaduais, a fraude também impacta os municípios. Isso ocorre porque, conforme a previsão do inciso III do art. 158 da Constituição, 50% do produto da arrecadação do IPVA pertence aos municípios onde os proprietários dos veículos estejam domiciliados.
Para ilustrar a ordem de grandeza do impacto, de acordo com dados publicados pelo Estado de Goiás, no ano de 2024 os repasses do IPVA aos municípios totalizaram R$ 1,6 bilhão.
Remédios para os efeitos colaterais
Nesse esforço para reduzir a emissão de CO2 na atmosfera, é louvável a previsão da reforma tributária que permite ao legislador estadual instituir benefícios tributários para veículos menos poluentes. O alinhamento principiológico do sistema tributário à ordem econômica, em relação à defesa do meio ambiente sinaliza na direção da implementação de uma economia mais inovadora e sustentável.
Entretanto, para que essas medidas sejam efetivas, ainda é necessário promover ajustes na complexa legislação tributária brasileira. Na ausência de uma LC Federal que disponha sobre normas gerais do IPVA e sobre sanções às guerras fiscais constatou-se a instauração de uma verdadeira batalha pelos recursos de ICMS entre os Estados.
Dessa forma, apresentam-se algumas sugestões para que os objetivos da Reforma Tributária em relação à política ambiental e econômica sejam plenamente alcançados:
a) A edição de uma LC Federal sobre normas gerais do IPVA, dispondo sobre as questões basilares do tributo;
b) A edição de uma LC Federal que trate das divergências entre os entes federativos, inclusive prevendo sanções às guerras fiscais, iniciativa que não foi adiante em 2012 no Congresso Nacional;
c) A revisão da atual legislação penal tributária e do entendimento jurisprudencial, a fim de fortalecer a sensação de risco na prática de crimes contra a ordem tributária.
O caso da Operação Quíron evidencia que, no contexto das políticas públicas, especialmente quando envolvem benefícios tributários, não existem "fórmulas mágicas" para resolver os problemas reais e que as soluções efetivas dependem de um conjunto de medidas e do compromisso de toda a sociedade em prol do fortalecimento do Estado Democrático de Direito.


