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Entre a HATVP e a informalidade: Como o Brasil tolera conflitos de interesse

A experiência francesa da HATVP revela a lacuna brasileira na prevenção de conflitos de interesse e aponta por que a transparência transversal fortalece - e não ameaça - a democracia.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:15

A experiência francesa de transparência da vida pública - inaugurada pela Loi n° 2013-907 du 11 octobre 2013 - evidencia a necessidade de um órgão com atuação transversal nos três Poderes e expõe, de forma sensível, o déficit de prevenção institucional. 

1. Transparência não é ingerência: É dever institucional

A transparência da vida pública não se confunde com interferência indevida na autonomia dos Poderes. 

Trata-se, ao contrário, de arquitetura institucional voltada à preservação da legitimidade democrática e republicana, reduzindo espaços de informalidade onde conflitos de interesse tendem a prosperar.

O problema brasileiro não é somente a ausência de normas eficazes e estruturais, mas a inexistência de um órgão independente, transversal e preventivo, com competência para acompanhar a vida pública de agentes estatais nos três Poderes de forma técnica e contínua.

2. A origem da HATVP: A resposta institucional francesa

HATVP - Haute Autorité pour la Transparence de la Vie Publique foi criada pela Loi n° 2013-907 du 11 octobre 2013 relative à la transparence de la vie publique, como resposta a sucessivas crises de confiança nas instituições políticas francesas.

A opção legislativa foi clara: institucionalizar a transparência, por meio de uma autoridade administrativa independente, dotada de autonomia e vocação preventiva, com atuação sobre Executivo, Legislativo e Judiciário, sem interferir no mérito das decisões políticas ou jurisdicionais.

3. O alcance transversal do modelo francês

Nos termos da lei de 2013, a HATVP:

  • Controla declarações de patrimônio e interesses;
  • Previne conflitos decorrentes de vínculos privados sensíveis;
  • Fiscaliza práticas de "porta giratória" (a passagem de agentes públicos para o setor privado - ou vice-versa - em áreas diretamente relacionadas às funções e decisões exercidas no cargo anterior);
  • Regula atividades de lobby e influência; (na França, existe o chamado le représentant d'intérêt, que atua, profissionalmente, a favor de normas favoráveis ao contratante);
  • Atua de forma técnica, preventiva e não jurisdicional.

O foco está na prevenção do risco institucional, não na punição posterior.

4. O modelo brasileiro: Controles setoriais e lacuna sistêmica

O Brasil dispõe de órgãos de controle relevantes, porém setoriais: a CGU atua no Executivo; o TCU concentra-se na fiscalização da gestão de recursos públicos; e o CNJ exerce controle administrativo e disciplinar do Judiciário.

Nenhum deles foi concebido para exercer controle transversal da vida pública, especialmente no que diz respeito a conflitos de interesse indiretos, vínculos privados relevantes ou estratégias informais de influência.

5. O Judiciário como exemplo sensível - não como exceção

A necessidade de um órgão com esse perfil torna-se mais visível no Poder Judiciário, sobretudo nos tribunais superiores, em razão da centralidade institucional e do impacto sistêmico de suas decisões.

Esse destaque não decorre de fragilidade, mas de responsabilidade institucional acrescida. Quanto maior o poder decisório, maior deve ser o nível de transparência.

6. O alerta empírico vindo da imprensa

No dia 13/12/25, matéria publicada por Lauro Jardim, em sua coluna em O Globo, revelou prática, supostamente, conhecida nos bastidores do poder: a contratação preventiva de escritórios de advocacia ligados a ministros do STF, mesmo sem causa concreta, como forma de "proteção institucional".

A gravidade do episódio não está apenas no conteúdo, mas na naturalidade com que, um suposto grande empresário, descreve uma estratégia reiterada e socialmente tolerada.

7. O problema não é moral, é estrutural

Não se trata de imputar ilicitude automática a magistrados, advogados ou jurisdicionados. 

O ponto central é a ausência de filtros institucionais capazes de impedir que vínculos privados gerem suspeitas públicas legítimas.

Quando não há transparência estruturada, a confiança pública se fragiliza, ainda que não exista influência real.

8. CNJ e limites funcionais

O CNJ exerce papel indispensável, mas sua atuação é interna ao Judiciário, predominantemente corretiva e, via de regra, posterior aos fatos.

Um órgão inspirado na HATVP não concorre com o CNJ. 

Complementa o sistema, atuando na prevenção de riscos institucionais que hoje permanecem fora do radar.

9. Uma HATVP brasileira: Transversalidade com respeito às autonomias

Inspirado na Loi n° 2013-907/2013, um órgão brasileiro de transparência da vida pública deveria: ter autonomia administrativa e financeira; atuar de forma transversal nos três Poderes; adotar enfoque preventivo e técnico; e garantir publicidade ativa e padronizada.

No Judiciário, em especial, sua função seria protetiva, reforçando a imparcialidade objetiva e a confiança social, sem interferir na função jurisdicional.

10. Conclusão

A experiência francesa demonstra que transparência institucional não enfraquece a separação de Poderes. Ela a fortalece, ao blindar as instituições contra suspeitas, assimetrias e capturas informais.

O Judiciário surge neste debate como exemplo sensível, não como alvo exclusivo. A informalidade tolerada é o verdadeiro risco institucional.

Nota final - Brasil e França: O que muda quando a transparência é institucionalizada

A criação da Haute Autorité pour la Transparence de la Vie Publique na França não decorreu de um contexto de maior virtude política, mas do reconhecimento de que conflitos de interesse são inerentes à vida pública e precisam ser tratados de forma estruturada.

O modelo francês parte de uma premissa simples: quanto maior o poder decisório, maior deve ser o nível de transparência sobre vínculos e interesses relevantes. Por isso, optou-se por um órgão independente, com atuação sobre os três Poderes, voltado à prevenção de riscos institucionais, e não à punição de condutas individuais.

No Brasil, a opção foi diferente. O país construiu órgãos de controle sólidos, porém fragmentados, com competências setoriais e atuação predominantemente reativa. A transparência da vida pública permaneceu difusa, sem um centro técnico dedicado à prevenção de conflitos de interesse.

Em termos práticos: a França institucionalizou a transparência como política pública permanente e o Brasil segue tratando conflitos de interesse de forma episódica e posterior.

A diferença não está na independência dos Poderes, mas no desenho institucional escolhido. A experiência francesa demonstra que transparência transversal não interfere na autonomia institucional. Ao contrário, reforça a confiança pública ao estabelecer regras claras e uniformes para todos.

Mais do que importar modelos estrangeiros, o debate brasileiro exige reconhecer que certos problemas - especialmente os que envolvem percepção de influência e legitimidade - não se resolvem apenas com normas dispersas ou controles posteriores.

Eles exigem instituições concebidas especificamente para preveni-los.

Sergio Antunes Lima Junior

VIP Sergio Antunes Lima Junior

Sérgio Antunes Lima Junior é advogado, Doutorando e Mestre em Direito (Portugal, Brasil e França). Secretário adjunto da OAB-RJ.

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