Decisão de Gilmar Mendes no Tema 1.389 já paralisou quase 50 mil ações sobre "pejotização" - e o número continua subindo
Até 17/12, 49.901 ações foram suspensas pelo Tema 1.389, segundo dados do Banco Nacional de Precedentes (Pangea) do CNJ.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:24
O Agente Secreto, filme brasileiro pré-indicado para disputar o Oscar1, apresenta na abertura um posto de gasolina à beira da estrada, onde, como no samba de Aldir Blanc e João Bosco, há um corpo estendido no chão, já em estado de putrefação, mal coberto por um papelão, atraindo insetos, uma matilha faminta e uma bocada de cão. Na sequência, sórdidas negligências de autoridades policiais, que naquele longínquo carnaval de 1977, inspecionam de modo minudente o fusca do personagem principal, sem ofuscar o ânimo de pedir "caixinha", aceitando meio maço de cigarro como propina.
O corpo continua em cena e ali permanece. Pelo enredo, já estava lá há dias. Ninguém o recolheu. O ator principal abasteceu e retomou sua viagem, o posto seguiu funcionando e o carnaval continuou.
Nada mais se falou daquele corpo.
Ao retratar esse cadáver que não foi velado e que ninguém veio buscar, busca a sétima arte criticar a naturalização da barbárie que não interrompe o curso da vida, o fluxo dos negócios e a própria história.
Eis que a arte imita a vida!
O abandono também se revela no Brasil de 2025, em que, pela via judicial, suspensões paralisam processos e levam as relações sociais ao campo do caos e da convulsão, enquanto as relações de produção e exploração continuam a operar.
E o fundamento de toda essa paralisia institucional é o debate sobre a utilização da "ficção" da personalidade jurídica como substitutiva de pessoas humanas, seus corpos, suas necessidades, seus direitos nas relações de trabalho.
A pejotização consiste, nas palavras de Lorena Porto e Paulo Vieira, citados no tesauro do STF2, "na contratação de trabalhador subordinado como sócio ou titular de pessoa jurídica, visando a mascarar vínculo empregatício por meio da formalização contratual autônoma, em fraude à relação de emprego". Trata-se, necessariamente, de um ardil.
Terceirização, por outro lado, significa a contratação da força de trabalho por meio de empresa interposta, sem vínculo direto entre tomador e trabalhador(a).
No Brasil, a terceirização ampla ganhou impulso em razão de decisões judiciais, mas passou a ser permitida pelas leis 13.429/17 e 13.467/17.
A pejotização, porém, é vedada com base nos arts. 2º, 3º e 9º da CLT, dos quais se extrai que o contrato de emprego é uma forma de contrato-realidade, que desconhece simulações e fraudes. Assim, presentes os elementos fático-jurídicos da relação empregatícia - trabalho prestado por pessoa física, com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica -, é devido o seu reconhecimento, com a declaração da nulidade do contrato civil e a condenação do empregador ao pagamento das verbas contratuais e/ou rescisórias pertinentes.
Essa é e sempre foi a praxe da Justiça do Trabalho. Afinal, como orienta o art. 9º da CLT, e no esteio da recomendação 198 da Organização Internacional do Trabalho, são nulos os atos praticados com vistas a desvirtuar, impedir ou fraudar a legislação social trabalhista, inclusive simulacros ancorados na legislação civil ou no abuso da personalidade jurídica.
Todavia, apesar da clara distinção entre os institutos, a Suprema Corte vem, reiteradamente, aproximando-os, de modo a, sob a justificativa de permissão ampla da terceirização, validar, também, a pejotização e a fraude na contratação do trabalho. Em reclamações constitucionais recentes, as quais anulam decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem a natureza empregatícia da relação estabelecida entre entre trabalhador(a) e contratante, o STF tem tratado terceirização e pejotização como equivalentes, amparando-se no precedente do Tema 7253, que afirma ser lícita "a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas".4
Ocorre que, se há anos atrás, a pejotização afetava predominantemente atividades de maior faixa salarial, atualmente ela tem alcançado até mesmo quem recebe o salário mínimo ou valor próximo, como evidencia o caso estarrecedor dos garis pejotizados no município de Porto Alegre/RS5.
O tensionamento entre STF e Justiça do Trabalho atingiu o ápice em 11/4/25, quando, no julgamento do ARE 1.532.603 - interposto contra acórdão do TST que havia afastado o reconhecimento da relação empregatícia entre um corretor e a seguradora Prudential -, reconheceu-se a repercussão geral da questão (Tema 1.389). Logo em seguida, em 14/4, o relator, ministro Gilmar Mendes, determinou a suspensão nacional de todas as ações que versem sobre a matéria.
O que se observou a seguir foi uma enxurrada de sobrestamentos de ações de reconhecimento de vínculo de emprego em todo o Brasil, desde aquelas nas quais se está diante de efetiva pejotização - isto é, nas quais houve constituição de pessoa jurídica e formalização de contrato civil de prestação de serviços - às ajuizadas por trabalhadores(as) sem pessoa jurídica constituída, ou, ainda, contratados(as) verbalmente.
Isso tem ocorrido porque a decisão que reconheceu a repercussão geral6 determina que o Tema abarca "todas as modalidades de contratação civil/comercial". Desde então, advogadas e advogados trabalhistas passaram a recear até mesmo o ajuizamento de ações comuns de reconhecimento de vínculo empregatício, uma vez que parte delas também vêm sendo suspensas com fundamento no Tema 1.389, ao passo que magistrados(as) temem julgá-las, diante do risco de investigações e do isolamento institucional.
Nesse sentido, citamos a decisão de Luiz Fux, de 4/6/25, na reclamação 80.3397, que trata da contratação verbal de advogada por escritório de advocacia. Em contradição com outra tese de repercussão geral do STF, aquela firmada no Tema 1.0058, que diz serem infraconstitucionais as controvérsias sobre o reconhecimento de vínculo empregatício entre advogado(a) e escritório, o ministro determinou o sobrestamento do feito, por entender que o caso estaria abrangido pelo Tema 1.389.
A promessa de que o julgamento seria realizado no segundo semestre de 2025 não foi cumprida e as ações seguem paralisadas. Diante disso, cabe questionar: quantos são os corpos que tombam e permanecem largados em via pública, enquanto a vida - precária - segue o seu fluxo? Melhor dizendo, quantos são os(as) trabalhadores(as) diretamente atingidos pela decisão de Gilmar Mendes? Para chegar a essa resposta, recorremos aos dados do CNJ disponíveis no Banco Nacional de Precedentes (Pangea)9. No painel estatístico, na aba sobrestados, realizamos a busca pelo Tema 1.389. Os dados são alarmantes: até a data de finalização deste texto (17/12/25), a decisão de suspensão nacional proferida nos autos do Tema 1.389 alcançou 49.901 ações judiciais. O TRT da 2ª região é o que conta com a maior quantidade de ações suspensas (9.472); seguido pelo TRT da 15ª região (7.215) e pelo TRT da 1ª região (5.573).
O tempo médio da suspensão é de 168 dias, assim, a maioria dos processos afetados pelo Tema 1.389 está suspenso há mais de cinco meses. Considerando os índices de conciliação e de procedência parcial e total da justiça do trabalho, que são, respectivamente, de 39%, 5,7% e 28,9% de todas as ações, bem como que o tempo médio entre o ajuizamento da reclamação trabalhista e a 1ª audiência é de apenas três meses e dez dias - tudo conforme o Relatório Geral da Justiça do Trabalho 2024 10-, é possível afirmar que a decisão já atrasou o recebimento de verbas alimentares de dezenas de milhares de trabalhadores(as).
Se quase 50 mil brasileiros(as) aguardam uma decisão do STF - no mínimo, dada a imprecisão dos dados estatísticos do CNJ, como já apontamos em estudo sobre a litigiosidade trabalhista11 -, quantitativo este que aumenta diariamente, certamente outros(as) milhares já deixaram, e ainda deixarão, de recorrer ao Poder Judiciário, seja pelo receio da suspensão dos processos, seja pela expectativa de julgamento desfavorável, à luz da diretriz firmada nas decisões recentes da corte constitucional.
Some-se a isso os efeitos não quantificáveis da decisão, como a celebração de acordos desvantajosos diante do risco de suspensão ou de julgamento desfavorável da ação, a adoção de estratégias processuais derrotistas, influenciadas pela racionalidade adotada por ministros do STF em seus pronunciamentos, ou mesmo o incentivo à contratação de trabalhador(a) subordinado(a) via pessoa jurídica.
Como sintetiza Isabel Cristina Tormes12, presidente da AATSP - Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, "enquanto os autos dormem nos escaninhos da suspensão, os corpos seguem em jornada. A informalidade não espera. A ausência de vínculo não conhece liminares. A jornada sem direitos não aguarda pareceres. E o silêncio institucional, nesse caso, também é forma de violência".
As vítimas, porém, não são apenas os quase 50 mil que aguardam, mas a totalidade da classe trabalhadora, que têm sentido na pele os efeitos das decisões que reduzem a pó os princípios mais elementares do Direito do Trabalho. Os cadáveres seguem largados à beira da estrada. E o carnaval continua.
__________________
1 https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/academia-divulga-lista-de-pre-indicados-ao-oscar-confira-2/
2 https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp
3 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4952236&numeroProcesso=958252&classeProcesso=RE&numeroTema=725
4 Em pesquisa qualitativa que analisou reclamações constitucionais sobre o Tema 725, Pasqualeto e Barbosa (2024) chegaram à conclusão de que o STF tem se utilizado do referido precedente vinculante para julgar casos bastantes distintos entre si e que sequer envolvem a terceirização propriamente dita. Neste sentido, consultar PASQUALETO, Olívia; BARBOSA, Ana Laura. Direito do trabalho, precedentes e autoridades do STF: um estudo de caso a partir do tema 725. REI - Revista Estudos Institucionais, 10(2), 375-402, 2024.
5 https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/653447
6 https://portal.trt3.jus.br/internet/jurisprudencia/repercussao-geral-e-controle-concentrado-adi-adc-e-adpf-stf/downloads/tema-1389-rg-stf-acordao-de-repercussao-geral.pdf
7 https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/06/Rcl80339-Decisao-Luiz-Fux-Contrato-Verbal.pdf
8 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5432609&numeroProcesso=1123068&classeProcesso=RE&numeroTema=1005
9 https://pangeabnp.pdpj.jus.br/
10 https://www.tst.jus.br/en/web/estatistica/jt/relatorio-geral
11 https://www.trt4.jus.br/portais/media/2946220/Litigiosidade Trabalhista - UFMG %282024%29-1.pdf
12 https://www.migalhas.com.br/depeso/432690/a-nova-inquisicao-nao-precisa-de-fogueira



