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A habilitação prévia como ferramenta estratégica para conferir eficiência à licitação

A habilitação prévia na lei 13.303/16 é examinada como exceção legítima, com efeitos relevantes sobre governança, eficiência licitatória e sustentabilidade das estatais.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado às 12:15

Examina a habilitação prévia como exceção na lei 13.303/16, destacando sua relevância em alienações de estatais e impactos na governança e sustentabilidade.

1. Da habilitação prévia à inversão de fases: A mudança de paradigma

A habilitação sempre ocupou lugar central nas licitações públicas, como etapa destinada a verificar a aptidão jurídica, técnica, econômico-financeira e fiscal dos interessados. Sob a égide da lei 8.666/1993, consolidou-se o modelo em que todos os licitantes eram habilitados antes do julgamento das propostas. O resultado, na prática, era um procedimento mais lento, oneroso e suscetível a recursos protelatórios.

A partir da lei do pregão (lei 10.520/02) e, depois, do regime diferenciado de contratações (lei 12.462/11), o legislador passou a admitir a inversão de fases: primeiro analisa-se a proposta, depois se examinam os documentos de habilitação apenas do licitante melhor classificado. Essa lógica é incorporada como regra pela lei 13.303/16 (lei das estatais) e pela lei 14.133/21.

No regime das estatais, o art. 51 da lei 13.303/16 estrutura o procedimento licitatório com a fase de julgamento antes da habilitação. O objetivo é concentrar energia na proposta mais vantajosa, sem perder de vista a segurança jurídica.

2. Quando a inversão de fases é a medida mais adequada para conferir agilidade e eficiência à licitação: O caso das alienações estratégicas

A justificativa para a mudança legislativa, que passou a definir como regra que a fase de habilitação seja realizada após o julgamento, apoia-se nas seguintes premissas:

  • Aumento de celeridade do procedimento licitatório e economia procedimental, na medida em que só se analisa a habilitação do primeiro colocado, evitando a análise de documentos de participantes que não serão contratados. Refletindo esse conceito, destaca-se recente decisão do STF em que restou consignado que:

"(...) A fase da apresentação da proposta, antecedendo à fase de habilitação, permite melhor conhecimento dos preços praticados no mercado, o que torna o certame mais competitivo, com maior lisura e maior controle social dos atos da Administração Pública, constituindo-se aprimoramento das licitações." (STF, RE 1188352, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, d. j. 27 maio2024)

  • Redução de recursos com finalidade meramente procrastinatória, pois a fase recursal se torna única. A habilitação após o julgamento "reduz a vantagem de manobras meramente procrastinatórias, eis que o exame da documentação fica restrito àquele que formulou a proposta mais vantajosa"1.
  • Alinhamento a uma lógica de governança voltada a resultados. A nova lógica busca desempenho, eficiência e racionalidade nos processos administrativos e por isso é vista como uma mudança de paradigma que favorece a modernização da gestão pública.

Contudo, o próprio legislador reconhece que não há um modelo único eficaz para o procedimento licitatório. A mesma lei 13.303/16 admite, de forma excepcional e motivada, a adoção de habilitação prévia, assim como a lei 14.133/21. 

E, no recente acórdão 2.118/24 plenário2, o TCU reforçou que a habilitação antes da disputa pode ser realizada desde que demonstrada a excepcionalidade e os critérios sejam proporcionais e pertinentes ao objeto.

Em outras palavras, a habilitação prévia permaneceu no sistema como ferramenta estratégica, a ser manejada com parcimônia quando a realidade do mercado e os riscos envolvidos assim o exigirem.

Ainda, parte da doutrina chama atenção para os efeitos colaterais dessa opção. A habilitação apenas ao final pode abrir espaço para:

  • Participação de licitantes sem capacidade mínima real, que se sentem "livres" para ofertar lances agressivos, sem compromisso com a execução;  
  • Atuação concertada entre players, com propostas artificiais que distorcem a disputa.  Essa dinâmica pode favorecer licitantes desprovidos de condições mínimas para executar o objeto, os quais se aventuram no certame apenas para criar dificuldades ou atuar de forma concertada com outros concorrentes, comprometendo a isonomia e a eficiência do procedimento3
  • Utilização da licitação por agentes que não pretendem contratar, mas apenas criar obstáculos ou negociar vantagens indevidas.

Conforme Dallari4, 'a inversão de fases5 reduz custos e tempo, mas exige cautela para evitar fraudes'.

Esses riscos são potencializados em procedimentos com modo de disputa aberto, em que lances sucessivos podem ser influenciados por participantes que jamais deveriam estar na arena competitiva. 

Em alienações de bens de alto valor, com forte repercussão socioambiental ou reputacional, a ausência de filtros prévios pode comprometer a própria obtenção da proposta "mais vantajosa" em sentido amplo.

Nesses casos, o que se busca não é apenas o maior lance ou o menor preço, mas um comprador idôneo, capaz de assumir responsabilidades relevantes.

É o que ocorre, de forma emblemática, nas alienações de ativos estratégicos ou sensíveis, como plataformas marítimas e embarcações, em que a destinação final do bem envolve riscos ambientais, trabalhistas, de direitos humanos e de reputação.

Nesses casos, a manutenção excepcional da habilitação prévia mostra-se coerente com a própria finalidade da licitação, permitindo:

  • Filtrar, antes da disputa, quem efetivamente reúne condições técnicas, econômicas e de compliance; 
  • Reduzir o espaço para a atuação de "aventureiros";  
  • Diminuir a probabilidade de o melhor lance ser declarado inválido apenas ao final, com necessidade de refazer etapas e alongar (e delongar) o procedimento.

A habilitação prévia, portanto, longe de significar retrocesso burocrático, passa a ser instrumento de governança quando a premissa de agilidade, isoladamente, não se mostra suficiente para atender às necessidades de cautela e mitigação de riscos do negócio.

3. Estudo de caso: Descomissionamento sustentável e venda de plataformas pela Petrobras

O cenário brasileiro de descomissionamento offshore aponta para um quantitativo crescente: a ANP já aprovou mais de uma centena de Programas de Descomissionamento de Instalações, e o país tende a figurar entre os maiores mercados globais de desmantelamento nos próximos anos. A Petrobras, por sua vez, projeta descomissionar diversas plataformas até o final da década, conforme seu Plano Estratégico 2026-20306.

Apesar disso, o país ainda não dispõe de legislação nacional abrangente e específica sobre desmonte de embarcações e unidades offshore, o que historicamente levou muitos ativos a serem enviados para desmantelamento no exterior, em estaleiros situados principalmente no sul da Ásia.

A NGO Shipbreaking Platform há anos denuncia a prática de destinação de navios e plataformas para locais que utilizam métodos altamente impactantes, como o chamado *beaching* (encalhe em praias para corte a céu aberto), com violações ambientais e de direitos humanos7.

A Petrobras, visando aprimorar suas práticas, reviu sua estratégia de alienação de plataformas e, em 2023, passou a adotar um novo modelo de alienação, com regras mais rígidas e calibradas para o descomissionamento sustentável, apoiado em três pilares principais8:

  1. Habilitação prévia dos interessados, com fundamento no art. 51, § 1º, da lei 13.303/16, expressamente prevista e motivada no edital, como exceção à habilitação posterior.  
  2. Restrição da participação a empresas vinculadas a estaleiros nacionais aptos à reciclagem responsável, visando afastar compradores sem controle efetivo sobre a destinação final.  
  3. Exigência de comprovação material de capacidade técnica, financeira e de compliance socioambiental, incluindo aderência a normas e boas práticas relacionadas à reciclagem segura, como o regulamento (UE) 1.257/13 e a Convenção de Hong Kong.

A habilitação prévia, nesse contexto, deixa de ser um mero checklist documental e passa a funcionar como um filtro qualificado, com efeitos concretos9, uma vez que somente empresas com estrutura comprovada para lidar com resíduos perigosos, bem como com planos de gerenciamento ambiental, são admitidas à fase de lances.  

Além disso assegura a proteção de direitos humanos e condições de trabalho e mitiga riscos reputacionais e jurídicos. Nesse sentido, a estatal passou a ter maior controle sobre quem poderia adquirir suas plataformas, reduzindo a chance de que a destinação final do ativo viesse a gerar crises de imagem, investigações ou litígios.  

A adoção da habilitação prévia promove, ainda, a economia circular, na medida em que critérios de habilitação passaram a valorizar a capacidade de maximizar o reaproveitamento de materiais, a reciclagem e a destinação adequada de resíduos, alinhando a alienação de ativos à agenda de sustentabilidade corporativa.   

Como resultado, a estatal passou a ser citada pela NGO Shipbreaking Platform como referência em boas práticas de destinação sustentável em 2023 e 202410.

É importante notar, todavia, que a habilitação prévia não é o único filtro contra greenwashing em descomissionamento de navios e plataformas. Ela deve ser combinada com cláusulas contratuais robustas, mecanismos de rastreabilidade do destino final, auditorias e monitoramento. Mas, ao afastar, desde logo, interessados que não atendem a requisitos mínimos de sustentabilidade, a habilitação prévia reduz drasticamente o risco de que a disputa seja vencida por agentes incapazes ou descomprometidos com padrões responsáveis.

4. Considerações finais

A evolução normativa brasileira caminhou, corretamente, na direção da inversão de fases, como regra: primeiro julgam-se as propostas, depois verifica-se a habilitação do vencedor. Essa opção responde à necessidade de celeridade, economia e racionalidade na gestão pública.

Entretanto, a prática demonstra que, em determinados mercados e objetos, como as alienações complexas de estatais, em especial no contexto de descomissionamento offshore, a mera busca por celeridade pode ser insuficiente e inadequada para proteger o interesse público em sentido amplo.

A experiência recente da Petrobras oferece um referencial concreto de como a habilitação prévia pode ser ressignificada: não como obstáculo burocrático, mas como ferramenta estratégica para promover governança, sustentabilidade e integridade nas contratações das estatais, preservando a eficiência dos processos licitatórios.

Dessa forma, não se trata de reviver a habilitação prévia como regra geral, mas de reconhecer sua utilidade em hipóteses excepcionais, nas quais o filtro qualificado deve, legitimamente, prevalecer sobre a pura agilidade procedimental.

No entanto, considerando que a habilitação prévia não é mais a regra, é salutar que, ao optar pela sua utilização, a Administração fundamente de forma clara a excepcionalidade, delimite exigências estritamente relacionadas ao objeto, dialogue com órgãos de controle e com o mercado e assegure transparência em todas as etapas.

Conclui-se, portanto, que a atuação jurídica contratual tem papel fundamental para a promoção de sustentabilidade e economia circular, com foco nas premissas legais de licitação.

_________________________

1 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. Pág.574.

2 TCU, Acórdão n. 2118/2024, Plenário, Rel. Ministro Benjamin Zymler, d.j. 9 out. 2024. 

3 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14.133/2021. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 1.046.

4 DALLARI, Adilson Abreu. Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Malheiros. 2021. 

5 Dallari chama de inversão por partir da premissa que a regra era a habilitação prévia, assim a habilitação pós-julgamento das propostas seria a "inversão".

6 De acordo com informações institucionais no Site da Petrobras, após 2029 o número de plataformas a serem descomissionadas pode chegar a 58. Informação disponível em: https://petrobras.com.br/sustentabilidade/descomissionamento-offshore. Acesso em 18 dez. 2025.

7 Dados disponíveis em: Press Release - Platform publishes list of ships dismantled worldwide in 2022. Acessado em 22/09/2025. Repercutindo o Press Release no Brasil: https://abolbrasil.org.br/noticias/noticias/empresas-brasileiras-enviam-navios-para-desmonte-em-locais-inadequados-diz-organizacao e https://www.portosenavios.com.br/noticias/ind-naval-e-offshore/empresas-brasileiras-enviam-navios-para-desmonte-em-locais-inadequados-diz-organizacao. Acessado em 21/09/2025.

8 Essas alterações podem ser verificadas no mais recente Edital publicado para alienação das Plataformas P-19 e P-26, disponível em  Petrobras - 001/2025 | Superbid Exchange. Acesso em 12/12/2025.

9 Como resultado, a Estatal passou a ser citada pela NGO Shipbreaking Platform como referência em boas práticas de destinação sustentável em 2023 e 2024: "Petrobras, the major Brazilian energy company, has achieved a significant milestone in its new commitment to sustainable ship recycling with the successful conclusion of the auction for the disposal of a floating offshore platform in Brazil."

Nicola Mulinaris - Senior Communication and Policy Advisor - NGO Shipbreaking Platform says: "After years of selling numerous old vessels for dirty and dangerous shipbreaking on the shores of South Asia, Petrobras has finally committed to environmental stewardship by unequivocally disavowing such practices. Moreover, their decision to opt for a domestic solution, leveraging the state-of-the-art infrastructure available in Brazil, showcases that it is possible to find alternative and better solutions to beaching" (Cf. https://shipbreakingplatform.org/petrobras-recycling-offthebeach-brazil/. Acesso em 16 dez. 2025). 

10 "Petrobras, the major Brazilian energy company, has achieved a significant milestone in its new commitment to sustainable ship recycling with the successful conclusion of the auction for the disposal of a floating offshore platform in Brazil."

Nicola Mulinaris - Senior Communication and Policy Advisor - NGO Shipbreaking Platform says: "After years of selling numerous old vessels for dirty and dangerous shipbreaking on the shores of South Asia, Petrobras has finally committed to environmental stewardship by unequivocally disavowing such practices. Moreover, their decision to opt for a domestic solution, leveraging the state-of-the-art infrastructure available in Brazil, showcases that it is possible to find alternative and better solutions to beaching."  Comentários da NGO Shipbreaking disponíveis em: Press Release - Petrobras to recycle offshore unit in Brazil for the first time: 

Isabela Filpi Ferreira

Isabela Filpi Ferreira

Advogada Master e Gerente Setorial da Área da Presidência, Inteligência Corporativa, SMS e Panejamento de Cadeia de Materiais, Gestão de Armazéns e Destinação Sustentável na Petrobras e Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

Juliana Cardoso Guimarães Salcedo

Juliana Cardoso Guimarães Salcedo

Advogada Senior, Consultora Jurídica na Área da Presidência, Inteligência Corporativa, SMS e Panejamento de Cadeia de Materiais, Gestão de Armazéns e Destinação Sustentável na Petrobras e Pós-graduada em Direito Público com Ênfase em Licitações e Contratos e Cursando MBA em Gestão Estratégica da Administração Pública.

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