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Reforma tributária fatiada

Gustavo Cavalcanti Costa

O fatiamento das reformas constitui traço determinante da cultura política brasileira. Eficiente expediente para justificar o pragmatismo dos acordos "possíveis" e notabilizar a cordialidade da nossa gente, não raro, as reformas fatiadas também têm servido para conservar a indefinição das relevantes questões nacionais e, de algum modo, explicar por que o Brasil é o eterno "país do futuro".

terça-feira, 1 de junho de 2004

Atualizado em 31 de maio de 2004 09:07

Reforma tributária fatiada

 

Gustavo Cavalcanti Costa*

 

O fatiamento das reformas constitui traço determinante da cultura política brasileira. Eficiente expediente para justificar o pragmatismo dos acordos "possíveis" e notabilizar a cordialidade da nossa gente, não raro, as reformas fatiadas também têm servido para conservar a indefinição das relevantes questões nacionais e, de algum modo, explicar por que o Brasil é o eterno "país do futuro".

 

A questão central do século XIX era a escravidão, e o Brasil foi o último país ocidental a reformá-la em fatias, sob a censura de Nabuco - não bastava aboli-la, era preciso eliminar a sua obra. A questão do século XX era o desenvolvimento, transformar uma economia agrária e escravocrata numa economia moderna e dinâmica; estivemos entre os campeões mundiais, entretanto, a sua distribuição ficou adiada, dificultando a construção de um mercado interno amplo e uma sociedade institucionalmente democrática. Neste século, a questão nacional é a desigualdade sócio-econômica: o saldo das reformas inacabadas durante os dois séculos anteriores. Desigualdade pessoal - uma massa de população excluída, obra da escravidão não eliminada na denúncia de Nabuco; desigualdade espacial - Estados e regiões excluídos do processo de desenvolvimento, por conta de opções políticas concentradoras da riqueza numa reduzida fração do território nacional.

 

Na agenda das reformas necessárias para o enfrentamento das desigualdades sócio-econômicas brasileiras, uma reforma tributária autêntica assume um lugar proeminente. Ela pode dinamizar o mercado interno de quase 180 milhões potenciais consumidores, facilitar as exportações, eliminar distorções competitivas na federação, simplificar controles burocráticos; enfim, uma reforma autêntica pode conferir "neutralidade" tributária nas trocas de bens e serviços na cadeia econômica, favorecendo a ampliação e a desconcentração de recursos públicos e privados por todos os Estados e regiões.

 

Desde 1965, ano da última modificação substantiva no aparato tributário, convive-se com um estado permanente de reforma tributária. Foram reformas de todo tipo, fatiaram soluções, conservaram contradições. Nos últimos 15 anos, as expectativas foram intensificadas, mas, de fatia em fatia, a carga tributária explodiu e as deficiências tornaram-se crônicas. Nessa direção, apesar do desfecho consensual e da aparência civilizada da reforma tributária recém-aprovada, ela apenas reproduz o caráter determinante da nossa cultura política; mais uma reforma fatiada, mais um acordo "possível", que celebra a nossa infinita capacidade para escamotear os conflitos e promover saídas negociadas, mas também a nossa imensa incapacidade para definir soluções para as relevantes questões nacionais.

 

O texto da reforma não enfrenta as contradições estruturais do sistema tributário, tampouco contribui para solucionar a principal questão nacional. O sistema continuará estimulando a desigualdade pessoal, ao projetar uma tendência de aumento da carga tributária indireta, gravando desproporcionalmente as camadas desfavorecidas da população; também estimulará a desigualdade espacial, ao preservar um esquema "misto" de repartição das receitas interestaduais do seu principal tributo, o ICMS, que continuará transferindo renda das regiões menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas, numa inversão de valores federativos capaz de desorientar um modelo de tributação pensado para titularizar as receitas no local do consumo de bens e serviços.

 

No sistema tributário até então vigente, as desigualdades sócio-econômicas motivaram os conflitos federativos e a "guerra fiscal", mas a reforma preferiu não tocar nesse ponto sensível. Optou-se por constitucionalizar o saldo da "guerra" passada, medida de discutível validade jurídica diante dos precedentes fixados pelo STF e impensável em qualquer experiência federativa. Os incentivos fiscais estaduais, mesmo inconstitucionais à luz do STF, ganharam sobrevida de 11 anos, continuarão sangrando os cofres públicos e não alterarão a face das disparidades regionais, como de fato não alteraram nas últimas décadas. O aguardado fundo nacional de desenvolvimento regional, medida reclamada para impulsionar investimentos coordenados de infra-estrutura nas regiões menos favorecidas, a exemplo do modelo da União Européia, ficará pulverizado entre regiões ricas e pobres e será gerido diretamente pelos Estados e Municípios. Isso anula o raio de ação das futuras instituições nacionais de planejamento regional, indefinindo a razão de ser da "refundação" da SUDENE.

 

A principal alteração de impacto da reforma tributária será a "federalização" do ICMS, a substituição de 27 legislação estaduais por uma única legislação federal. Uma medida benéfica, simplificadora, se não tocasse em alguns eixos constitucionais das democracias modernas. Na prática, como prevista na reforma, a "federalização" do ICMS afetará a separação dos poderes e o festejado princípio da legalidade tributária, transferindo boa parte das funções do Poder Legislativo para um super órgão do Poder Executivo, composto por representantes das máquinas fazendárias estaduais. Há pouca dúvida de que a carga tributária aumentará.

 

A versão final da reforma tributária fatiada justifica os seus méritos não pelo que reformou agora, mas pelo que programa para o futuro: a aguardada harmonização da complexa e fracionada tributação sobre o consumo de bens e serviços, mediante a adoção um tributo geral incidente em todas as fases da cadeia econômica (IVA), inspirado nos padrões existente em mais de 120 países. O Brasil está atrasado, mas não resta alternativa senão apostar nessa nova norma programática, entre tantas de um texto constitucional agredido, que, de alguma maneira, permite sonhar com uma outra reforma para breve, para vigorar a partir de 2007. Nada de concreto, apenas um sonho possível, para acalmar a pressa das novas gerações angustiadas com a limpeza do entulho das fatias historicamente acumuladas debaixo do tapete.

 

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* Advogado do escritório Martorelli Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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