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O cárcere dentro da cabeça

José Luiz Quadros de Magalhães, Virgílio de Mattos e frei Gilvander Moreira

Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 se transformaram em uma referência histórica para demonstrar o endurecimento do regime de repressão e dos mecanismos de controle. Cada vez maiores, como se fosse possível ampliar ainda mais o adjetivo total que dá "qualidade" ao controle.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Atualizado em 13 de maio de 2008 11:33


O cárcere dentro da cabeça

José Luiz Quadros de Magalhães*

Virgílio de Mattos**

Frei Gilvander Moreira***

Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 se transformaram em uma referência histórica para demonstrar o endurecimento do regime de repressão e dos mecanismos de controle. Cada vez maiores, como se fosse possível ampliar ainda mais o adjetivo total que dá "qualidade" ao controle.

Importante lembrar que o 11 de setembro não foi causa, mas sim, conseqüência de um sistema que não mais se sustentava e para permanecer precisava, e precisa, de fatos radicais que gerem terror. Afinal, a pergunta fundamental segue sendo quem são os terroristas? A alimentação permanente do medo permite retirar direitos, aumentar o controle, acabar com a privacidade e a intimidade, suprimir liberdade, tudo em nome da segurança. Como antes em nome de Deus, depois do Rei, da Pátria, da Família e sempre da propriedade. Fazer com que as pessoas sintam medo e insegurança é o principal mecanismo de supressão da liberdade e da democracia para a conservação de um sistema econômico e social inviável, injusto, indigno, porque excludente, egoísta e devastador, não só do meio ambiente, mas, também, da idéia de comunidade, solidariedade e todo e qualquer valor ético e moral fundado sobre estas idéias.

Por que então, para falar do uso de coleiras, pulseiras ou tornozeleiras em condenados, que está sendo testado no Estado de Minas Gerais neste ano de 2008, precisamos fazer uma introdução falando do "11 de setembro estadunidense" ? Porque toda ação ocorre em um contexto histórico, e só pode ser entendida dentro deste contexto.

O atual contexto é de medo, em uma sociedade onde liberdade é confundida, propositalmente, com consumo e democracia é confundida, propositalmente, com possibilidade de escolha de produtos para consumir. A necessidade de gerar medo, a mesma que ocorre nos EUA, ocorre aqui, em Belo Horizonte/MG. Não que os que se encontram no poder do Estado e os responsáveis por políticas públicas desconheçam os dados, que muitas vezes são produzidos por eles mesmos: em Belo Horizonte os bairros mais pobres são os mais violentos, as pessoas envolvidas com a prática de ações violentas são poucas, e geralmente os homicídios ocorrem nos mesmos bairros miseráveis onde moram as pessoas que cometem estes atos, na acachapante maioria dos casos a vítima conhece o algoz, ou seja: não há explosão de violência, mas implosão. Entretanto a mídia gera o medo e nos faz acatar silenciosamente a perda de direitos de diversas pessoas, diariamente humilhadas.

O medo nos torna mansos e a ideologia (como distorção proposital do real, que parece ficção, que só deveria existir na ficção, mas não: é o real) constrói para nós uma estória para nossos medos e desejos que não corresponde à realidade. Assim somos levados a acreditar que os seres humanos se dividem entre pessoas e não pessoas. Somos levados a acreditar que pessoas não cometem barbaridades, que são cometidas pelas não pessoas, ou monstros, e mais, somos levados a acreditar que violência, repressão, opressão e controle solucionarão os nossos medos. Como o direito penal do inimigo pode vir a ser seu amigo? A inversão das coisas é produção da ideologia mencionada: para aplacar o nosso medo admitimos que façam com pessoas (que não consideramos pessoas, o que não muda o fato de serem pessoas) o que não queremos para nós. Defendemos um sistema de controle total, que deveríamos temer, justamente por causa do medo. Quanto mais medo tivermos mais motivos teremos para temer o que ainda não enxergamos com temor: o controle total.

Chegamos então na questão central de nossas reflexões: o uso de coleiras, pulseiras ou tornozeleiras em condenados é inconstitucional, pois constitui pena não prevista em lei e rejeitada pela Constituição da República (clique aqui), pois ofensiva à dignidade, à privacidade e à intimidade da pessoa, que não perde esses direitos fundamentais mesmo diante de uma condenação penal transitada em julgado.

O paradoxo: a pena privativa de liberdade foi historicamente uma conquista, acredite se quiserem, e embora hoje seja um mecanismo ultrapassado para a quase totalidade dos casos, e para a esmagadora maioria dos nossos presos (se quisermos vagas nos presídios temos que soltar sua população e gerar inclusão social, econômica e cultural, antes de estigmatizar uma revisão geral de todas as condenações a penas privativas de liberdade, para não amedrontarmos você com um pedido de anistia ampla), é importante lembrar que esta pena surgiu como evolução em substituição a um sistema de penas corpóreas, torturas brutais, com humilhações públicas e destruição da família do condenado, onde muitas vezes as penas alcançam até seus descendentes por várias gerações.

No passado não muito distante, afinal, o que são um par de séculos na história da maldade humana? Pessoas eram condenadas a andar com marcas no corpo ou suas roupas em meio à comunidade onde viviam, em uma pena de humilhação eterna, um ritual macabro perpétuo, com repercussões psicológicas arrasadoras.

Agora, para tornar mais barata a manutenção do preso, e criar vagas para encarcerar mais, o Estado de Minas Gerais colocará braceletes, coleiras ou tornozeleiras em condenados. Na segregação, na contenção, no encarceramento em massa - e é isso que nos dá medo - Minas avança, parecendo não querer deixar ninguém para trás.

Primeiro aspecto de sua inconstitucionalidade: as penas admitidas pela Constituição são as penas privativas de liberdade; perda de bens; multa; prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos proibindo à Constituição Federal que a pena ultrapasse a pessoa do condenado, assim como a proibição de penas cruéis, de caráter perpétuo; de trabalhos forçados e de banimento. O artigo 60, parágrafo 4º da Constituição Federal, proíbe a deliberação de emendas à Constituição (o que implica que também são proibidas leis ou qualquer outra norma, políticas ou medidas) que tendam a abolir os direitos fundamentais e suas garantias. Isto significa dizer que qualquer restrição a direitos são proibidas, o que pode ocorrer, claramente, com a criação de novas penas, encobertas, pois que também a competência privativa para legislar em matéria penal é da União Federal, ou disfarçadas como mecanismos de controle que comprometam ou suprimam direitos fundamentais como a intimidade e a privacidade.

Um outro aspecto já mencionado, é o fato de que, é infelizmente muito comum, a pena privativa de liberdade vir acompanhada de outras penas (ilegais e inconstitucionais) como a humilhação, a tortura, o tratamento cruel e degradante, visível nas condições de carceragem, com efeitos psicológicos traumáticos e com seriíssimas conseqüências para as pessoas diretamente atingidas - o próprio preso e seus familiares - que podem vir a padecer de um sofrimento mental para toda vida, como uma pena perpétua da qual nunca se livrará.

Este é o ponto que queríamos chegar: a "inofensiva" tornozeleira (que dirão alguns pode ser escondida debaixo da calça cumprida e desde que a pessoa nunca tire a calça não o sujeitará à humilhação pública, mas só à privada), sem esquecer a pulseira, a tornozeleira ou a coleira, que guardam um caráter de humilhação pública de absurda inconstitucionalidade, significa, também, o cárcere dentro da cabeça, que guarda conseqüências psicológicas desconhecidas que podem levar o sofrimento a dimensões muito além da pena prevista. Outra vez sem previsão legal, o que nos faz voltar no tempo à segunda metade do século XVIII, ou até mesmo antes.

Parecendo sair de um triste romance de ficção, uma das várias distopias (como 1984, de George Orwell) do século passado, o uso de tornozeleiras, braceletes ou coleiras, mostra a insensibilidade de um mundo da superficialidade, onde as pessoas desconhecem que a pior cadeia é aquela que acontece dentro da sua cabeça, ou, para quem acredita, aquela que aprisiona sua alma.

O povo da Bíblia sofreu amargamente as agruras de muitas prisões. Foi preso, exilado e condenado injustamente. Por mais de cem vezes a Bíblia refere-se a pessoas que foram presas. Por exemplo, o salmo 102,20 diz: "Deus ouve o gemido dos presos, para soltar os sentenciados à morte." Em Isaías 42,7, o servo de Javé recebe a missão de tirar da prisão os presos, e do cárcere os que jazem em trevas.

Quando Jesus apresenta seu programa de ação na sinagoga de Nazaré, uma das metas é 'libertar os presos" (Lucas 4,18). Aliás, o estopim que fez Jesus de Nazaré entender que havia chegado a hora de iniciar sua missão pública foi a prisão do grande profeta João Batista. O Galileu ficou tão indignado que disse: "Se prenderam e vão matar João Batista, um grande profeta, não posso deixar por menos, vou empunhar a bandeira da libertação de todos os prisioneiros." A carta aos Hebreus recorda: "lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos com eles, e dos maltratados, como sendo-o vós mesmos também no corpo." (Hebreus 13,3).

Logo, em nome da fé cristã, do evangelho testemunhado por Jesus de Nazaré, que também foi preso injustamente, devemos lutar pela libertação dos presos empreendendo transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas de modo que as pessoas não sejam empurradas para o crime, mas que desenvolvam o infinito potencial de humanidade existente em nós. A força e a luz de Deus brilham também nos presos e, muitas vezes, até mais neles. Biblicamente falando não podemos apoiar medidas de controle total sobre o corpo, a mente e o comportamento, como a tornozeleira. Os presidiários não podem ser considerados bodes expiatórios de tanta injustiça institucionalizada existente no nosso país. Isso não é ético.

Em tempo: Em 21 de junho de 2006, o número de presos no Brasil era de 361.402 pessoas, segundo levantamento divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).[1] Atualmente estima-se que já sejam cerca de 400 mil, 99,99% pobres, negros e jovens. Há 20 anos eram 20 mil.

Em um mundo onde as pessoas temem mudar e, para conservar as suas quinquilharias defendem a destruição de pessoas, assistimos patéticos e amedrontados construir teias de controle e repressão que muito em breve se voltarão contra todos. Basta olharmos a história, quer a recente, quer a mais distante. A medida olha para o futuro, só que pelo retrovisor!

A questão não se limita a uma tornozeleira, mas, principalmente, ao fato de que este é mais um passo dentro de um sistema inviável de controle, consumo e repressão: qual será o próximo passo? Depende de nós que este passo não seja dado, para que então o próximo passo não seja ainda mais para trás, nos retirando ainda mais a dignidade do humano.

Coitados desses poderosos coitados. Pensam que podem fazer justiça social com direito penal.

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*Dr. Prof. de Direito Constitucional da UFMG

**Dr. prof. de Criminologia na Escola Superior Dom Hélder Câmara e na UFOP

***Mestre em Exegese Bíblica, assessor de CPT, CEBs e Via Campesina

 

 

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