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Alterações do Código de Trânsito: algumas ponderações

Gabriela de Moraes Montagnana e Natália Penteado Sanfins

Realçando a função social do Direito, ou seja, a necessidade do Direito acompanhar as mudanças de atitudes e de forma de vida em uma determinada sociedade, a Lei 11.705/08, que esta em vigor desde 19 de junho de 2008, trouxe profundas alterações no Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503/97), em especial no delito previsto no artigo 306, e na infração administrativa prevista no artigo 165.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Atualizado em 7 de agosto de 2008 13:21


Alterações do Código de Trânsito: algumas ponderações

Gabriela de Moraes Montagnana*

Natália Penteado Sanfins**

Realçando a função social do Direito, ou seja, a necessidade do Direito acompanhar as mudanças de atitudes e de forma de vida em uma determinada sociedade, a Lei 11.705/08 (clique aqui), que esta em vigor desde 19 de junho de 2008, trouxe profundas alterações no Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº. 9.503/97 - clique aqui), em especial no delito previsto no artigo 306, e na infração administrativa prevista no artigo 165.

É certo que, a identificação da lei necessária em determinado momento social pertence, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele deseja convencer-nos de que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis. A par disso, a legislação merece ser examinada criticamente. E esse será o objeto do presente artigo. Declarou o legislador, expressamente, a finalidade da novel legislação em seu art. 1º, dispondo que as alterações visam estabelecer alcoolemia zero e impor penalidades mais severas ao condutor que dirigir sob influência do álcool.

Sem maiores divagações, percebe-se que o legislador procurou, com a elaboração da referida lei, diminuir os índices de acidentes automobilísticos com vítimas, ocasionados por condutores embriagados. È cediço que acidentes ocasionados por direção sob os efeitos do álcool constituem um sério problema em qualquer país que faça uso substancial de veículos automotores. No Brasil, dados do DETRAN - SP mostram que 50% dos acidentes automobilísticos fatais estão relacionados ao consumo de álcool.

A Lei 11.705/08 alterou o disposto no art. 165 do CTB1. Esse dispositivo encontra-se alocado no Capítulo XV do aludido Código, que trata das infrações administrativas. Dispõe a novel legislação que constitui infração administrativa dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. A infração continua a ser classificada como gravíssima, e possui como penalidade à imposição de multa (cinco vezes) e a suspensão do direito de dirigir, agora, por 12 meses, e ainda, como medida administrativa a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

Note que, a nova Lei continuou a prever como pena a suspensão do direito de dirigir, porém, fixou prazo certo de 12 meses, fixação essa que ficava ao livre arbítrio do órgão administrativo atuador até então.

Importante ressaltar que, o legislador previu como infração administrativa a conduta do motorista que dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Desse modo, não basta que o condutor tenha ingerido qualquer destas substâncias para que seja autor desta infração, sendo imprescindível que ele esteja influenciado por ela.

Estabelecia o CTB que a embriaguez do condutor provava-se pela constatação da concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, para que fossem aplicadas as penalidades previstas no art. 165, além de dirigir sob a influência de substância alcoólica, essa substância deveria estar presente em seu organismo na concentração acima referida.

A partir de 19 de junho de 2008, em conformidade com a finalidade da novel legislação de estabelecer alcoolemia zero, pela redação literal da lei, qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no aludido art. 165 do CTB, haja vista a alteração introduzida no art. 276 do mesmo Diploma Legal2.

A figura não se perfaz com a simples direção de veículo após o condutor ingerir álcool ou substância similar, contudo. É necessário que o faça "sob a influência" dessas substâncias, conforme já salientado anteriormente.

O professor Damásio E. de Jesus pondera que, não basta a verificação de qualquer concentração de álcool por litro de sangue no organismo do condutor para sujeitá-lo às penalidades previstas no art. 165, de onde se originou incorretamente a expressão "tolerância zero", sendo imprescindível para a configuração da infração administrativa a presença de três condições, a saber:

1.ª) que o condutor tenha bebido;

2.ª) que esteja sob a "influência" da bebida;

3.ª) que, por causa do efeito da ingestão de álcool ou substância análoga, dirija o veículo de "forma anormal" (direção anormal).

A par disso, na prática, estabeleceu-se uma tolerância de até 0,2 grama de álcool por litro sangue, quantidade correspondente a margem de erro dos exames. Vale dizer: os índices de álcool por litro de sangue dentro dessa margem, não sujeitam o condutor a infração administrativa, ou mesmo a penal.

Nesse aspecto, pontuou o legislador as provas que poderão ser utilizadas para demonstrar que existe substância alcoólica no organismo do infrator. Manteve a possibilidade de submeter o condutor a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia e outro exame que, por meios técnicos ou científicos, permitam constatar o estado de embriaguez. E, introduziu a possibilidade de o agente de trânsito valer-se de outras provas em direito admitidas, como os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor, para caracterizar a infração.

Foi além o legislador, prevendo que serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 do CTB ao condutor que se recusar a submissão de qualquer dos procedimentos acima elencados. Andou mal o legislador nesse ponto. O Estado Democrático de Direito reconhece o direito a não auto-incriminação, corolário do direito ao silêncio, previsto no art. 5º. LXIII, da CF (clique aqui), como direito e garantia individual. Logo, parte-se da premissa de que ninguém é obrigado a ceder o corpo para produzir prova contra si mesmo.

Vale lembrar, que a não exigibilidade de participação compulsória do acusado na formação da prova a ele contrária decorre, além do próprio sistema de garantias e franquias públicas instituído pelo Constituinte de 1988, de norma expressa prevista no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº. 678 de 6 de novembro de 1992.

A submissão do indivíduo aos testes de alcoolemia, como exames clínicos, perícia e outro exame que, por meios técnicos ou científicos, como o bafômetro, por exemplo, permitam constatar o estado de embriaguez, é a nosso ver inconstitucional. Tratam-se de formas de ingerência corporal, capazes, inclusive, de ferir a integridade física e mental do indivíduo, bem como sua capacidade de autodeterminação e dignidade humana. Essa deve ser protegida, vedando-se qualquer tratamento vexaminoso ou ofensivo à honra do indivíduo.

Nesse ponto, contudo, os entendimentos são divergentes. Para Advocacia Geral da União, ao determinar a exigência do condutor ao teste de bafômetro, a lei atua em "legítima defesa de todos os cidadãos", ressaltando ainda, que quando há recusa do condutor em fazer o teste, o policial tem o direito a fazer o auto (multa) porque se trata de uma medida administrativa e não penal. No mesmo sentindo, é o entendimento do inspetor da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Alexandre Castilho, donde a submissão do condutor ao teste de bafômetro não significa produção de prova contra o motorista, mas um dever imposto pela concessão de dirigir. É uma interpretação do direito administrativo.

Em nossa perspesctiva, resta ao agente de trânsito, para caracterizar a infração, apenas a possibilidade de utilizar-se de outras provas em direito admitidas, como os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor, sempre que o agente se recusar a realização daqueles exames.

Nessa linha, aduzimos pela inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 277, alterado pela novel legislação, e pugnamos pela restauração da redação anterior: "no caso de recusa do condutor à realização dos testes, exame e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação, ou torpor, resultantes do consumo de álcool e entorpecentes apresentados pelo condutor", tendo em vista que tal redação mostra perfeita sintonia com o texto constitucional.

Há de se ressaltar ainda, sem prejuízo do socorro ao privilégio contra a auto-incriminação, que o bafômetro merece ser criticado por questões técnicas, no plano da qualidade e idoneidade de sua eficácia probatória. Nos testes de qualidade realizados com o aparelho, estes foram reprovados pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial). Os equipamentos foram considerados sensíveis e precisam passar por avaliação anual, conforme determina a portaria nº 6/2002, do Inmetro3.

Desta forma, concluímos que, para a caracterização da infração administrativa em comento, o indivíduo deve estar conduzindo veículo para o qual o CTB prevê a necessidade de se obter autorização para dirigir, sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, independentemente da concentração em que essa substância se encontra no seu organismo, devendo o agente de trânsito utilizar-se dos meios legais e constitucionais para proceder a essa constatação.

Por outro lado, constitui crime, previsto no art. 306 do CTB4, a conduta de conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

Nesse momento, cumpre-nos esclarecer a diferença entre a infração administrativa prevista no art. 165 e o crime previsto no art. 306, todos do CTB.

Para que o sujeito pratique a infração administrativa, basta que ele esteja dirigindo sob a influência daquelas substâncias psicoativas que causam dependência, não tendo o legislador fixado a concentração mínima em que ela deve ser encontrada no organismo do condutor, advindo daí, o apelido que foi dado pela população à Lei 11.705/08: Lei Seca, embora, conforme aduzido, não seja suficiente tal premissa para a configuração da infração.

Já para configuração do crime de embriaguez ao volante estabeleceu a lei, a concentração mínima de álcool por litro de sangue que deve ser encontrada no organismo do condutor. A intenção do legislador foi a de incriminar a conduta daquele que conduz veículo automotor estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

Note que, verificada a concentração de álcool por litro de sangue superior a 6 decigramas, responderá o agente pela infração administrativa e penal em conjunto, pois que totalmente independentes as esferas penal e administrativa, bem como a cível.

Para exata compreensão da intenção do legislador, ao tipificar a conduta, cumpre-nos relembrar a antiga disposição do aludido art. 306:

"Conduzir veículo automotor, na via púbica, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem".

A partir da comparação entre a atual e a antiga redação e utilizando o critério literal de interpretação da lei, podemos concluir o seguinte: o crime de embriaguez ao volante não mais depende para a sua configuração que o condutor esteja sob a influência de álcool, bastando que seja constatada, pelo menos a existência de 6 decigramas de álcool por litro de sangue em seu organismo, havendo para sua configuração a exigência da influência quando outra for a substância psicoativa que tiver ingerido. Ainda, para a configuração do delito não é necessário que o agente esteja expondo a dano potencial a incolumidade de outrem, classificando-se o delito como de perigo abstrato (presumido).

Contudo, é certo, que, não se pode interpretar uma lei de forma tão simplista assim. Faz-se necessária uma interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico.

Sabe-se que a objetividade jurídica principal do aludido delito é a segurança viária, haja vista o que dispõe o art. 1º, p. 2º, do CTB ("o trânsito em condições seguras é um direito de todos"). Desta forma, considerando que o bem jurídico tutelado é a segurança viária, pode-se concluir pela existência do delito somente quando o condutor atentar contra a segurança nas vias públicas, em virtude de seu modo de dirigir, por estar sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que causa dependência. Vê-se que constitui crime de efetiva lesão ao bem jurídico (segurança do trânsito), mostrando-se pertinente a demonstração de que o agente, por estar embriagado, dirigiu de forma anormal, ainda que sem expor a risco uma pessoa determinada. Nesse sentido atende o tipo penal aos reclamos do princípio da ofensividade.

Data vênia, não concordamos com a posição do legislador em catalogar referida infração como crime de perigo abstrato.

Ora, a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois, é inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em tipo penal, condutas totalmente inofensivas, incapazes de lesar o interesse protegido. Desta forma, se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica. À lei não cabe preocupar-se com infrações de pouca monta, insuscetíveis de causar o mais ínfimo dano à coletividade. Um Direito Penal democrático não pode conceber uma incriminação que traga mais temor, mais ônus, mais limitação social do que benefício à sociedade.

Uma interpretação sistemática do CTB permite tal conclusão. Ora, se para a caracterização da infração administrativa prevista no art. 165 reste configurada, exige o legislador que esteja o condutor sob a influência de álcool, incoerente seria não exigi-la para a situação mais gravosa, que constitui o delito previsto no art. 306. Ademais, o legislador em vários dispositivos da Lei 11.705/08 afirmou constituir crime a conduta de conduzir veículo automotor sob a influência de álcool, senão vejamos: no art. 1., foi claro ao dispor que os estabelecimentos comerciais que vendem ou oferecem bebidas alcoólicas devem estampar, no recinto, aviso de que "constitui crime dirigir sob a influência de álcool"; no parágrafo 1. do art. 291 estabeleceu que, ao crime de lesão corporal culposa não se aplicará o disposto nos arts. 74,76 e 88 da Lei 9.099/95 (clique aqui), se o agente estiver "sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que cause dependência", por fim, no art. 7. determinou que Lei 9.294/96 passe a vigorar acrescida do seguinte art. 4.-A: "Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção. Podemos, por isso tudo, afirmar que o 'estar sob a influência'", é uma elementar típica implícita no art. 306.

Nota-se, que incorreu em grave erro o legislador ao prever que a configuração do delito se dá apenas e tão somente com a constatação de, no mínimo, 6 decigramas de álcool por litro de sangue no organismo do indivíduo, pois, ainda que entendamos como imprescindível para a configuração do delito estar o agente sob a influência de álcool, deverá, conjuntamente, restar caracterizada a existência da concentração mínima referida pelo legislador. Assim, ainda que colocando em risco a segurança viária, se constatado que o condutor possuía menos que 6 decigramas de álcool por litro de sangue em seu organismo, não responderá por infração penal, mas somente por infração administrativa. Referida concentração constitui elementar expressa do delito previsto no art. 306, e a sua constatação dependerá da realização de exame pericial. Pode-se, inclusive, sustentar que o único exame capaz de lograr tal intento é o exame de sangue, já que o teste do bafômetro mede a concentração de álcool por quantidade de ar expelido, e não de sangue, não se podendo utilizar, no direito penal, interpretação extensiva em prejuízo do acusado. Dessa maneira, não é dado ao interprete a possibilidade de ampliar o significado da norma incriminadora além do que estiver expresso. A condenação do agente pela prática do crime em comento com base em verificação da concentração de álcool por quantidade de ar expelido ofende o Princípio da Legalidade, previsto no art. 5°, XXXIX, da Carta Magna5. Sabe-se que o Princípio da Legalidade, garantia constitucional fundamental do homem, compreende dois outros princípios, o da Anterioridade da lei penal e o da Reserva Legal. Esse compreende a taxatividade e a vedação ao emprego da analogia e interpretação extensiva, pois ao estatuir que não há crime sem lei anterior que o defina, exigiu que a lei definisse a conduta delituosa em todos os seus elementos e circunstâncias, a fim de que somente no caso de integral correspondência pudesse o agente ser punido, conferindo ao cidadão garantia contra arbítrios do Poder Público, ou seja, segurança jurídica.

Mas, ainda que admitíssemos a constatação daquela concentração de álcool com a utilização do bafômetro, cairíamos na mesma discussão que gira em torno da infração administrativa, porém, aqui com maiores conseqüências, já que estamos na esfera penal.

Como aduzido, a CF/88 garante a todo cidadão a direito a não auto-incriminação, não restando qualquer possibilidade que autorize a exigência do condutor submeter-se ao exame de sangue ou ao bafômetro. Contudo, em se tratando do crime, não há outra forma de constatar o índice exigido pelo tipo penal senão com a realização do exame pericial. Logo, recusando-se o condutor a se submeter a estas formas de ingerências corporais, não há como se demonstrar configurado o delito de embriaguez ao volante.

Esse, inclusive, é entendimento do juiz Guilherme Infante Marconi, da 5ª Vara Criminal de Ribeirão, que concedeu salvo-conduto a Paulo Renato de Faria Monteiro e José Henrique Donisete Garcia de Campos. "O salvo-conduto foi concedido para que o cidadão não seja obrigado a fazer nada que possa incriminá-lo: no caso, assoprar o bafômetro ou colher sangue". Ele, porém, faz uma ressalva: "A polícia pode, sim, autuar o cidadão administrativamente, mas não criminalmente. Ele pode ser multado se estiver visivelmente alcoolizado, mas não poderá ser levado preso6".

Com o documento, concedido nos casos em que haja uma ameaça, ainda que potencial a liberdade de locomoção do indivíduo, Paulo Renato de Faria Monteiro e José Henrique Donisete Garcia de Campos não poderão ser obrigados a realizar exames de alcoolemia. Há de se esclarecer que, ameaça potencial à liberdade de locomoção constitui o simples início de qualquer atividade persecutória que tenha por objeto a apuração de fato imptutável à pessoa individualizada, desde que para a conduta seja prevista pena privativa de liberdade.

Note que, mais uma vez, andou mal o legislador. Pode-se afirmar que o "tiro saiu pela culatra", já que, pretendendo agravar a punição, abriu uma enorme brecha para a impunidade.

Melhor técnica mostraria o legislador, se tivesse mantido a redação do art. 306, bastando, para alcançar e eficácia pretendida com a reforma, a modificação dos arts. 165 e 276, podendo inclusive considerar a infração administrativa de perigo abstrato e exigir para que restasse caracterizado o crime, o simples fato de o agente conduzir veículo sob influência de álcool, de forma anormal, colocando em risco a segurança viária, independentemente da concentração de álcool em seu organismo. Até porque, sabemos que a aplicação de penalidades administrativas como a multa e a suspensão do direito de dirigir, agora pelo prazo de doze meses, modificação, essa inserida com acerto, é a que realmente possui o condão de inibir condutas indesejadas.

Estudos do Consenso Brasileiro sobre Políticas Públicas do Álcool, coordenado por Ronaldo Laranjeira - Coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (UNIAD) do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, já constataram que punições graves não resultam em menos acidentes do que punições menos graves. Seus efeitos podem até ser contra-producentes quando o sistema judiciário está sobrecarregado, ou quando a promotoria não obtém a condenação. A única punição que parece ter um impacto consistente é a perda ou suspensão da carteira de habilitação. Uma pesquisa revelou que três quartos dos motoristas que perderam a licença permanecem dirigindo, porém, menos freqüentemente e com mais cautela. Da mesma forma, constitui eficiente forma de inibição a rapidez da punição, sendo um bom exemplo a suspensão administrativa da carteira de habilitação, sem a necessidade de um processo judicial. Nos EUA, essa é uma possibilidade em 40 dos 50 Estados, e o seu impacto na redução de acidentes álcool-relacionados é consistente, reduzindo em até 26% o índice de acidentes fatais.

No mesmo sentido, constitui eficiente instrumento de prevenção e repressão a utilização de estratégias para aumentar a "certeza de punição" entre os motoristas, como o aumento da freqüência e a visibilidade da fiscalização. Atitudes simplistas, como intensificar as ações da polícia, visando o cumprimento da lei e campanhas de curta duração causam impacto, reduzindo, por conseguinte os acidentes, embora seja certo que seus efeitos são temporários.

Ademais, pelo princípio da subsidiariedade, somente haverá Direito Penal naqueles casos em que a atuação dos demais ramos do direito se mostrar insuficiente.

Há de se ressaltar ainda, sobre a impossibilidade da prisão em flagrante se não houver a constatação da concentração de, no mínimo, 6 decigramas de álcool por litro de sangue no organismo do condutor do veículo, verificação esta, que, em nosso entendimento somente poderá ocorrer com a realização de exame de sangue, caso o sujeito a ela não se recuse, já que só assim, restará caracterizado o crime, havendo prova de sua materialidade. Essa modalidade de prisão cautelar exige a prova da materialidade delitiva, pois que: "flagrante delito é o crime cuja prática é surpreendida por alguém no próprio instante em que o delinqüente executa a ação penal ilícita"7.

Cumpre-nos esclarecer que, continuam sendo aplicado ao crime de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 19958, exceto se o agente estiver: sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente; transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinqüenta quilômetros por hora). Nesses casos, deve ser instaurado Inquérito Policial e não mais Termo Circunstanciado de Ocorrência, e a ação penal será pública incondicionada. È certo que, o delito de lesão corporal culposa praticado na condução de veículo automotor continua sendo culposo, inclusive quando verificada as circunstâncias acima referidas. Há de se esclarecer que, a ação penal referente ao delito de embriaguez ao volante (art. 306, CTB) continua sendo pública incondicionada.

Note, que o delito previsto no art. 306 do CTB, só restará configurado se o agente estiver conduzindo veículo automotor em via pública. Entende-se por veículo automotor, nos termos do Anexo I de tal Código, todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo abrange, portanto, os automóveis, caminhões, vans, motocicletas, motonetas, quadriciclos, ônibus, microônibus, ônibus elétricos que não circulem em trilhos, etc. Por óbvio que os veículos de propulsão humana (bicicletas, patinetes, etc.) e os de tração animal (carroças, charretes) não se amoldam ao conceito.

E, por via pública as vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, conforme dispõe o art. 1° do CTB, definindo o art. 2° as vias terrestres de forma a excluir as vias particulares, como estacionamentos privados, pátio de postos de gasolina, vias internas de fazendas particulares.

Vê-se, portanto, que constitui requisito para a configuração do delito que o veículo automotor seja conduzido na via pública, ou seja, em local aberto a qualquer pessoa, cujo acesso seja sempre permitido. Pertinente esclarecer que as ruas dos condomínios particulares, no termos da Lei n. 6.766/79, pertencem ao Poder Público, portanto dirigir embriagado nesses locais pode caracterizar a infração, e que conduzir, significa dirigir, ter sob seu controle direto os aparelhamentos de velocidade e direção, colocando o veículo em movimento ainda que desligado, não estando abrangidas as condutas de empurrar ou apenas ligar o automóvel, sem colocá-lo em movimento.

Por fim, cumpre-nos destacar que, em conformidade com a nova redação só se configura o crime de embriaguez ao volante quando constatada a concentração de, no mínimo, 6 decigramas de álcool por litro de sangue no organismo do condutor de veículo automotor.

Desta forma, tendo em vista a ausência deste requisito na redação anterior, todas as condutas que sob a sua vigência foram consideradas criminosas, sem que se tenha efetuado referida constatação ou ainda que realizada tenha tido como resultado concentração inferior a exigida pelo tipo, deixaram de ser crime, ocorrendo em relação a elas verdadeira "abollittio criminis", extinguindo-se a punibilidade do agente, com fundamento no art. 107, III, do Código Penal9. A nova lei retroagirá atingindo fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, para beneficiar o agente, obedecendo a determinação do art. 5º, XL, da Constituição Federal10, atingindo inclusive os processos nos quais já houver operado o transito em julgado da condenação.

Os prós e contras da referida lei já vem sendo aviltados. A diminuição considerável nas mortes causadas pelo trânsito já pode ser notada. Por outro lado, em alguns segmentos da sociedade as alterações não vêm sendo bem recebidas. È o caso da Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel Nacional) que ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4103), contra os artigos 2º, 4º e 5º, incisos III, IV e VIII, da Lei questionada. Em virtude da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, a ação será analisada diretamente no mérito pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, conforme autoriza o art. 12 da Lei 9.868/99, que determina as normas para o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade.

Dentre os pleitos estão o pedido de inconstitucionalidade na delegação da competência conferida aos agentes de trânsito para reconhecerem e atestarem a embriaguez e a inconstitucionalidade em prever como infração administrativa a recusa do indivíduo em realizar o teste de alcoolemia. Defende-se a ofensa ao princípio da presunção de inocência, principalmente no que se refere à premissa de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. Resta-nos aguardar o posicionamento do Superior Tribunal Federal, momento em que a segurança jurídica restará evidenciada.

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1 CTB, art. 165. Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.

2 CTB, art. 276. Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

3 Fonte: http.www.stj.gov.br

4 Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

5 CF, art. 5°, XXXIX. Não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal.

6 Fonte:http/: www.folhaonline.com.br

7 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 7 ª. Saraiva. 1990, p.48.

8 Lei n° 9.099/95: art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de titulo a ser executado no juízo cível competente; art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Publico poderá propor aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, ser especificada na proposta; art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesão corporais leves ou culposas.

9 CP, ART. 107, III. Extingue-se a punibilidade: III. Pela retroatividade da lei que não mais considera o fato como criminoso.

10 CF, art. 5°. XL. A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

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Referências bibliográficas

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Saraiva. 2007.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Legislação Penal Especial. 4. Edição. Saraiva. 2007.

JESUS. Damásio E. de. Código de Processo Penal Comentado. 22ª edição. Saraiva. 2005.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 7 ª edição. Saraiva. 1990.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. 3 ª edição. RT. 2007.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 9ª edição. Lúmen Juris. 2008.

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*Advogada, professora assistente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

**Advogada





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