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Revogação da autorização de uso de bem público e ressarcimento do particular

O tema dos atos administrativos é extremamente importante para a Ciência do Direito Administrativo, pois trata da manifestação da vontade da administração pública com o fim de conformar ao regime jurídico-administrativo.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Atualizado às 12:57


Revogação da autorização de uso de bem público e ressarcimento do particular

Eduardo Ramos Caron Tesserolli*

O tema dos atos administrativos é extremamente importante para a Ciência do Direito Administrativo, pois trata da manifestação da vontade da administração pública com o fim de conformar ao regime jurídico-administrativo. Esse regime fundamenta as relações jurídico-administrativas, que se estruturam à força cogente da finalidade legal. Tal acepção surgiu do conceito de "relação de administração" formulado por Ruy Cirne Lima: é "a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente. Chama-se-lhe relação de administração, segundo o mesmo critério, pelo qual os atos de administração se opõe aos atos de propriedade. Na administração, o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vontade".1

O conceito acima citado foi pensado como uma fórmula a limitar os poderes administrativos, ou seja, buscando evitar sua alegação como pretexto para os diversos abusos cometidos pelos agentes públicos.2 As palavras de Ruy Cirne Lima trouxeram uma importante mudança de ponto de vista quanto às relações jurídicas, que passaram a ser estudas em função de um dever a ser cumprido, de uma finalidade que deve ser atingida, e não mais a partir da idéia de poder.3

Dos ensinamentos de Cirne Lima, os estudiosos retiraram os fundamentos para a atual teoria das relações jurídico-administrativas, que definem a necessidade de um equilíbrio entre as prerrogativas da administração pública e as sujeições às garantias constitucionais do cidadão, atingindo sempre o cumprimento da finalidade legal atribuida ao Poder Público4.

Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua ato administrativo como: "declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes - como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional"5. Repare que o conceito elaborado pelo autor demonstra ter encampado "atos administrativos individuais, normativos, unilaterais ou bilaterais (contratos), declarações de juízo, de conhecimento, de opinião e de vontade"6 , tornando-o bastante amplo.

Por isso, tendo-se em vista o tema deste artigo, trataremos atos administrativos conforme entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: "manifestação unilateral de vontade da administração pública, que tem por objeto constituir, declarar, confirmar, alterar, ou desconstituir uma relação jurídica, entre ela e os administrados ou entre seus próprios entes, órgãos e agentes".7

O ato deve ser editado observando-se os elementos, pressupostos de existência e de validade8, conforme a competência atribuída pela legislação para a sua edição. Atendidos, o ato será perfeito, válido e eficaz.

Dentre muitos, trazemos a luz a "autorização administrativa", ato administrativo negocial9 editado no exercício de competência discricionária, atribuída pela lei, em que a administração pública consente com exercício de atividades de interesse dos administrados, tendo caráter precário, ou seja, revogável a qualquer tempo.

Não obstante a perfeição, a validade e a eficácia da autorização, a administração pública pode revogá-la por não mais atender ao interesse público. Por isso, o ato de revogação é editado por autoridade no exercício de competência discricionária, cujo objeto é um ato ou a relação jurídica dele oriunda, sob a ordem da inconveniência ou inoportunidade da sua mantença, cujos efeitos são os de extinguir o provimento anterior, sem ofender os direitos adquiridos durante a vigência do ato revogado10. Desse modo, a revogação não retroage para afetar direitos adquiridos durante a vigência do ato revogado, surgidos antes do ato revogatório.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro define revogação como "ato adminsitrativo discricionário pelo qual a Administração extingue um ato válido, por razões de oportunidade e conveniência"11. Essa é a motivação da revogação.

O poder de revogação dos atos administrativos é exercício da autotutela da administração pública, reconhecido pela Lei 9.784/99 (clique aqui), em seu art. 53, bem como pelo Supremo Tribunal Federal, em sua Súmula nº 473 (clique aqui).

Nesse sentido, a doutrina pátria entende que a autorização é revogável a qualquer tempo, desde que a autoridade atue dentro da competência legal a si atribuída e não ultrapasse os limites do poder de revogar12. A forma do ato revogatório deve ser a mesma adotada para a edição do ato revogado.

Não obstante, a mesma doutrina entende que existem limites ao poder de revogar. Adotamos a classificação de Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende a irrevogabilidade dos seguintes atos, por atingirem "uma concreta relação jurídica já constituída"13:

(i) "atos que a lei declare irrevogáveis"

(ii) "atos já exauridos",

(iii) "atos vinculados",

(iv) "os chamados meros (ou puros) atos administrativos", como certidões expedidas por qualquer órgão público,

(v) "atos de controle",

(vi) "atos que, integrando um procedimento, devem ser expedidos em ocasião determinada",

(vii) "atos complexos"

(viii) "atos que geram direitos adquiridos"

(ix) "atos que consistirem em decisão final do processo contencioso"14

Se a administração pública revogar qualquer dos atos administrativos acima referidos, ofenderá o princípio da legalidade que rege sua conduta, o que poderá ser corrigido pelo Poder Judiciário.

Como estamos tratando da "autorização administrativa", devemos analisar o poder de revogação consoante as características do ato. Marcello Caetano anotou, com muita propriedade, que:

"Sucede mesmo com freqüência que a Administração, ao permitir ou conceder o exercício de alguma actividade a alguém, o faça com a ressalva de que o acto não constitui direitos subjectivos para o beneficiário e que a continuação da actividade permitida ou concedida fica dependente das conveniências do interesse público: são os actos denominados precários - autorizações, (...) Mas se o acto administrativo definiu, reconheceu ou consolidou direitos ou situações jurídicas de outrem, então não pode deixar de se garantir a segurança desses direitos ou situações, não permitindo, senão em condições muito precisas, que seja revogada a decisão da Administração em que as pessoas fizeram fé e sobre a qual podem ter sido construídos novos direitos ou criadas expectativas legítimas."15

Já podemos extrair do exposto acima que a revogação da autorização pode gerar direito a ressarcimento dos eventuais custos oriundos da autorização; o direito ao ressarcimento passa a existir se a autorização revogada constituiu direitos ao particular (depende da análise do caso concreto). Contudo, não pode ser revogada sem se oportunizar ao cidadão manifestar-se sobre a possível decisão da administração. Esse entendimento demonstra a procedimentalização dos atos administrativos, buscando tutelar, integralmente, os direitos dos cidadãos (anteriormente denominados como "administrados").

Exemplo desse ato: autorização de uso.16 Neste caso, o particular somente será ressarcido se a administração pública aprovar os investimentos introduzidos no bem pelo particular. De outra forma, a revogação do ato não acarretará direito à ressarcimento do que investiu no bem público.

Conclusão

Após o breve escorço acima, concluímos que, para a perfeição, a validade e a eficácia da revogação da autorização de uso de bem público, esta deve ser elaborada no exercício de competência discricionária, por razões de oportunidade e conveniência, respeitando-se os limites do poder de revogar, que enunciamos acima, vedada a retroação dos seus efeitos, sob pena de ser declarado nulo em controle de legalidade pelo Poder Judiciário.

O exercício da competência discricionária para revogação da autorização deve ser realizada conforme a finalidade legal atribuída à administração, observando o equilíbrio entre prerrogativas e sujeições, pois a administração não é dotada de poderes, mas, sim, de deveres vislumbrados para a satisfação do interesse público.

A revogação somente gerará direito a ressarcimento ao particular, se todos os investimentos aplicados no uso do bem público tenham sido aprovados pela Administração Pública. Caso contrário, não restará qualquer dever de ressarcimento ao particular.

Entretanto, em ambos os casos, deve ser ouvido o autorizado antes da edição do ato revogatório, reconhecendo-se a processualidade dos atos do Poder Público, em atendimento ao melhor interesse público e à salvaguarda das garantias constitucionais dos cidadãos.

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1 Lima, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 4ª ed. Porto Alegre: Sulinas, 1964, pp. 51/52.

2 Dallari, Adilson Abreu. Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas. Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº 141, jan/mar, 1999, p. 76.

3 DALLARI, Adilson Abreu. Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas..., p. 77.

4 Isso é o que Cirne Lima quis dizer quando conceituou a "relação de administração": "relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente".

5 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 378.

6 Bittencourt, Marcus Vinícius Corrêa. Manual de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 112.

7 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 136.

8 Conforme classificação criada por MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo..., pp. 382/405.

9 Sobre atos administrativos negociais conferir: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 214/216; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. p. 157; e BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

10 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 442.

11 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 238.

12 Nesse sentido, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo; MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 10ª ed. São Paulo: RT, 2006; OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Ato administrativo. 5ª ed. São Paulo: RT, 2007; BITTENCOURT, Marcus Vinícius Corrêa. Manual de direito administrativo; POMPEU, Cid Tomanik. Autorização administrativa: de acordo com a Constituição Federal de 1988. São Paulo: RT, 1992, ente outros.

13 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 446.

14 Ob. cit., pp. 446/447 e MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno..., pp.143/144.

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Referências bibliográficas

Bacellar Filho, Romeu Felipe. Direito administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Bittencourt, Marcus Vinícius Corrêa. Manual de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

Caetano, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. 2ª reimpressão portuguesa. Coimbra: Almedina, 2003.

Dallari, Adilson Abreu. Os poderes administrativos e as relações jurídico-administrativas. Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº 141, jan/mar, 1999.

DI Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

Lima, Ruy Cirne. Princípios de direito adminstrativo. 4ª ed. Porto Alegre: Sulinas, 1964.

Medauar, Odete. Direito administrativo moderno. 10ª ed. São Paulo: RT, 2006.

Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

Oliveira, Régis Fernandes de. Ato administrativo. 5ª ed. São Paulo: RT, 2007.

Pompeu, Cid Tomanik. Autorização administrativa: de acordo com a Constituição Federal de 1988. São Paulo: RT, 1992.

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*Advogado




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