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As inconstitucionalidades no controle da publicidade dos medicamentos

Itamar de Carvalho Junior

O controle da publicidade de medicamentos aqui questionado é exercido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, criada para a regulação das atividades econômicas relacionadas aos serviços e produtos destinados à saúde, assumindo as funções exercidas até então pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Atualizado em 9 de setembro de 2008 16:39


As inconstitucionalidades no controle da publicidade dos medicamentos

Itamar de Carvalho Junior*

O controle da publicidade de medicamentos aqui questionado é exercido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, criada para a regulação das atividades econômicas relacionadas aos serviços e produtos destinados à saúde, assumindo as funções exercidas até então pela Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.

Tal como a antiga Secretaria, a ANVISA tem como finalidade institucional, estipulada pela MP 1.791/98 que foi convertida na Lei nº 9.782/99 (clique aqui), promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização (dispensação) de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária (art. 6, caput, da Lei acima).

É do conhecimento de todos aqueles que militam no sistema técnico - jurídico sanitário, que as atividades exercidas pela ANVISA são partes integrantes da importante atuação do Estado em torno da proteção da saúde, institucionalizada e hierarquizada por meio do SUS - Sistema Único de Saúde, hoje disciplinado pela Lei Federal nº 8.080/90 (clique aqui).

Interessante notar que a Constituição Federal de 1988 (clique aqui) disciplinou, formal e materialmente, as funções Estatais relacionadas ao controle e fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse para saúde. Ou seja, delimitou a forma de atuação Estatal por meio do SUS nesta área. A disciplina constitucional, diferentemente do sustentado pela doutrina e alguns julgados do Poder Judiciário, não se encontra no art. 196, mas sim no art. 200 da CF. O primeiro dispositivo constitucional estabelece obrigação ao Estado na implementação de políticas públicas.

Ao disciplinar formal e materialmente como serão exercidas as atividades do Estado no controle e fiscalização de atividades (procedimentos, produtos e substâncias) relacionadas à saúde, a Constituição de 1988 além de conferir dever-poder de atuação, estabeleceu seu limite.

Na esfera infraconstitucional, é possível notar do art. 6 da Lei nº 9.782/99 que o Poder Executivo, assim como o Legislativo que converteu a MP 1.791 em Lei, respeitou inicialmente os limites normativos materiais impostos pela Constituição Federal de 1988: "art. 6º A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária (...)." Frise-se, o respeito aos limites prescritos pelo texto constitucional, que serão analisados, só ocorreu neste primeiro momento.

Nota-se que a Agência possuía competência eminentemente técnica para o controle e fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias destinados à saúde. O controle seria exercido na produção e em toda a cadeia destes produtos e substâncias, procedimento técnico de transporte, distribuição, armazenamento, dispensação etc. Já a fiscalização seria exercida no mercado após a comercialização e utilização daqueles produtos e substâncias, e por vezes, também na dispensação.

Contudo, no ano de 2001, o então Presidente da República editou a Medida Provisória nº 2.190-34-01 (clique aqui) , última de uma seqüência de MPs, que implementou diversas alterações na Lei nº 9.782/99. Alterações estas que vão das atividades preponderantes à instituição e supressão de taxas (dos fatos geradores da taxa de vigilância sanitária).

Dentre as alterações, merece destaque a inserida no inciso XXVI do art. 7º, o qual dispõe sobre as competências da Agência. Prescreve o dispositivo que compete à ANVISA "controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária". A inclusão deste dispositivo, entendemos, macula a lei por inconstitucionalidade em diversos pontos.

O primeiro foi incluir no rol de competências da ANVISA a possibilidade de exercer, sob qualquer forma, a fiscalização da publicidade de medicamentos. O segundo ponto é a possibilidade, que se concretizou, de controlar o conteúdo da publicidade de medicamento. Por fim, conferir a possibilidade (que também se concretizou) de amplo poder normativo à autarquia.

Acerca do primeiro ponto, é preciso rememorar, como já dissemos acima, que à ANVISA foram disciplinados deveres para exercer atividades que a Constituição Federal conferiu ao Estado para o controle e fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias. Não se trata de dever-poder para controlar tudo que disser respeito à saúde das pessoas, mas somente os pontos acima (procedimento, produto e substância). Tal dever é expresso no inc. I do art. 200.

Demais atividades em prol da saúde da população, como os serviços e políticas públicas em saúde, encontram fundamento constitucional (dever Estatal) no art. 196 da Carta Federal. Já o controle epidemiológico, assim como o da saúde dos trabalhadores estão disciplinados no art. 200, inc. II. A formulação de políticas e a execução das ações de saneamento básico, no inciso IV do mesmo art. 200. Ainda, neste mesmo artigo, o Estado encontra fundamento constitucional, inc. VI e VII respectivamente, para fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional e fiscalização de substâncias e produtos tóxicos e radioativos. Tais dispositivos, em conjunto, representam a ampla gama de atuação do SUS - Sistema Único de Saúde.

Do conjunto destes dispositivos extrai-se a norma no sentido de que compete à ANVISA (Estado) somente o exercício de atividade de controle de produção e fiscalização da comercialização do procedimento, produto e substâncias empregadas em saúde, tratando-se especificamente de atuação técnica. Em momento algum a Constituição de 1988 permitiu que, com base em normas sanitárias, o Estado interviesse no mercado para controlar a atividade econômica das empresas, caracterizada, nesta parte, pela publicidade e propaganda dos produtos destinados à saúde, razão pela qual a competência (norma formal) conferida à ANVISA pela MP 2.190/01 é inconstitucional.

Além de formal, o controle da publicidade dos medicamentos existentes hoje no Brasil também é materialmente inconstitucional.

A Constituição Federal de 1988 é, não raras vezes, criticada por conter muitos artigos, 250 ao todo, além das disposições transitórias. Aduzem os críticos que se trata de uma Constituição prolixa, sempre a comparando à dos Estados Unidos da América.

O tema ora em análise, controle de publicidade dos medicamentos (junto com outros produtos) também mereceu tratamento pela Constituição de 1988, o que demonstra sua importância. É possível notar do conteúdo das disposições constitucionais precitadas que o controle de publicidade e propaganda de medicamento não se encontra daquelas que tratam do controle sanitário de procedimento, produtos e substâncias e as demais competências do SUS.

É do conhecimento geral que além dos deveres-poderes Estatais, o exercício dos direitos e garantias constitucionais não é absoluto, encontrando limites materiais nas normas infraconstitucionais ou diretamente na Constituição Federal. Vale ressaltar que as normas infraconstitucionais só podem limitar na extensão permitida pelas próprias normas constitucionais, já que encontra seu fundamento de validade nesta.

O exercício constitucional de publicidade e propaganda de medicamentos encontra "limite" na própria Carta Constitucional. A matéria é disciplinada pelo art. 220, § 4º:

"A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso".

Apesar do dispositivo constitucional acima transcrito utilizar-se da expressão "limites legais", tais imposições não são de ordem material. A Lei federal em questão não terá o condão de disciplinar e restringir diretamente a publicidade e propaganda, mas sim, instituir meios e instrumentos que garantam às pessoas e às famílias a possibilidade de se defenderem de programas, programações, propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (inc. II, § 3º, art. 220 da CF).

Isso quer dizer que a própria Constituição Federal, de antemão, já definiu qual será o conteúdo da lei federal que disciplinará o tema em debate, o que não quer dizer que deva existir apenas uma lei. O legislador brasileiro foi exemplar e fiel à Constituição ao criar, e. gratia, a Lei nº 8.078/90 (clique aqui), Código de Defesa do Consumidor. Neste texto legal, mais especificamente em seu art. 37, o CDC proíbe apenas a veiculação de publicidade enganosa ou abusiva, ou seja, aquela exercida com "excesso de liberdade", abuso de direito. Após definir o que seria publicidade abusiva ou enganosa, o CDC disponibiliza à pessoa e à família os meios e instrumentos adequados para questioná-las (quando caracterizada publicidade enganosa ou abusiva), especificamente no art. 81 e seguintes do código do consumidor.

No caso dos medicamentos, a ANVISA não respeitou as normas constitucionais ao tratar diretamente da publicidade. A Agência criou um verdadeiro e amplo sistema de limitação do conteúdo da publicidade. É certo que o problema decorre em primeiro momento do fato de a MP nº 2.190/01 conferir ao próprio Poder Executivo (administração pública) poderes sem qualquer limite para tratar a matéria.

Em sede de competência regulamentar, porém, inovando integralmente na ordem jurídica, a ANVISA, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 102/00 (clique aqui), disciplinou o mecanismo de controle da publicidade:

"Art. 1º Este Regulamento se aplica às propagandas, mensagens publicitárias e promocionais e outras práticas cujo objeto seja a divulgação, promoção e/ou comercialização de medicamentos, de produção nacional ou importados, quaisquer que sejam suas formas e meios de veiculação incluindo as transmitidas no decorrer da programação normal das emissoras de rádio e televisão".

No texto da Resolução é emblemático o caput do art. 4º, o qual se restringe ao comando: "É vedado". Na seqüência, os incisos deste mesmo artigo disciplinam vedações das mais variadas espécies.

No decorrer da Resolução existem outras tantas restrições e vedações. Os programas de fidelização de cliente devem passar por anuência prévia da ANVISA (art. 7º). A propaganda, publicidade e promoção de medicamentos comercializados sem exigência de prescrição médica devem obedecer a diversas restrições (art. 10). Já os medicamentos vendidos sob prescrição médica só podem ser divulgados a profissionais médicos, sendo vedado ao público em geral. A RDC chega, em seu art. 12, § 4º, a disciplinar o tamanho e forma das letras do anúncio.

Não é necessário analisar pontualmente cada um dos dispositivos da Resolução para notar seu caráter restritivo e de censura em lei que a confira supedâneo. O argumento utilizado para a elaboração destas normas recai sobre a problemática da auto-medicação, o que tem ocasionado diversos malefícios à população.

O argumento, apesar de conter forte apelo social, não tem o condão de sobrepor-se às normas jurídicas, em especial as Constitucionais. Não se combate o problema da desinformação populacional com restrições e proibições, mas sim com amplo acesso às informações que podem ser realizadas por meio de políticas públicas neste sentido. Ainda, o problema em muitas vezes não é de falta de informação, já que muitas pessoas com alto poder aquisitivo e amplo acesso a elas também realizam auto-medicação.

As restrições implementadas pela Resolução são integralmente inconstitucionais, pois se encontram em dissonância à norma constitucional do § 4º do art. 220 da CF, que limita o legislador federal a instituir mecanismos que as pessoas e suas famílias possam utilizar contra publicidade de produtos nocivos à saúde, e não os tutelarem diretamente.

O último argumento acerca da inconstitucionalidade do controle de publicidade dos medicamentos recai sobre a ampla competência conferida pela MP 2.190-34/01 à ANVISA para normatizar a matéria, assim como inovação no ordenamento jurídico. Os dois pontos estão claramente ligados, devendo assim ser analisados.

A Medida Provisória merece duas reprimendas constitucionais. A primeira por conferir competência para ente da Administração Pública que a Constituição Federal reservou exclusivamente ao legislador federal (completamente por lei adjetiva) e à população. A Carta Constitucional em seu art. 220, § 2º, inc. II, dispõe que as "restrições" à publicidade e propaganda de produtos nocivos à saúde serão tratadas em lei federal, e não por agente federal, como é o caso da ANVISA. O mesmo dispositivo constitucional reserva às pessoas e às suas famílias a fiscalização da publicidade e propaganda, razão pela qual não pode o Estado substituir o particular neste caso específico.

O segundo ponto recai sobre a delegação clara e expressa de competência. Além da proibição (eficácia negativa da norma constitucional) material do controle prévio de publicidade e propaganda, a Medida Provisória conferiu à ANVISA competência bastante para inovar no ordenamento jurídico. A ANVISA, no exercício dessa competência delegada, por meio de ato normativo colegiado - RDC - inovou completamente no mundo jurídico, em afronta direta aos art. 5º, inc. II e art. 37, caput, da Constituição Federal.

Como visto, a inconstitucionalidade no controle de publicidade e propagada dos medicamentos hoje existente, se dá por afronta a diversos dispositivos constitucionais: afronta à liberdade de manifestação; afronta ao art. 220 da CF; afronta aos princípios da legalidade do art. 5º, inc. II e do caput do art. 37.

A matéria acima analisada não é exclusiva dos medicamentos, o mesmo se aplica à bebida alcoólica, agrotóxico, tabaco e publicidade e propaganda de outros produtos que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Não se trata aqui de defender a liberalização do abuso, pois este sim deve ser punido. Pretende-se sim argumentar que em Estado de Direito os fins não justificam os meios.

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*Advogado do escritório Dal Pozzo Advogados









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