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Filhos de criação: o valor jurídico do afeto na entidade familiar

Janaína Rosa Guimarães

A sociedade é dinâmica e se transforma a cada momento, novas formas de relacionamento são construídas, novas estruturas econômicas e políticas são consolidadas, e o direito e a forma de aplicá-lo devem estar em constante desenvolvimento para abrigar as demandas diversas que surgem no seio deste movimento de transformação.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Atualizado em 15 de maio de 2009 10:15


Filhos de criação: o valor jurídico do afeto na entidade familiar

Janaína Rosa Guimarães*

A sociedade é dinâmica e se transforma a cada momento, novas formas de relacionamento são construídas, novas estruturas econômicas e políticas são consolidadas, e o direito e a forma de aplicá-lo devem estar em constante desenvolvimento para abrigar as demandas diversas que surgem no seio deste movimento de transformação.

Exemplo disso é a mudança pela qual passou o conceito de família. A família retratada no Código Civil de 1916 (clique aqui) era patriarcal e hierarquizada, fundada exclusivamente no casamento e nos filhos oriundos do matrimônio. Qualquer concepção fora deste quadro não era reconhecida pelo ordenamento jurídico. Todavia, este conceito de família não existe mais! Paradigmas foram quebrados a partir do momento em que nos deparamos com outra realidade social; um novo conceito de família onde pais e filhos são unidos pelos laços do amor. Passou-se a visualizar os vínculos familiares pela ótica da afetividade.

No momento em que houve o reconhecimento da união estável - que é um vínculo que se constitui pela afetividade - como entidade familiar, sendo-lhe outorgada especial proteção, é preciso reconhecer que a Constituição Federal legitimou o afeto, emprestando-lhe efeitos jurídicos. A partir daí, o afeto passou a merecer a tutela jurídica tanto nas relações interpessoais como também nos vínculos de filiação.

Ocorre que a solidariedade e a vinculação afetiva não são capazes de gerar, sozinhos, efeitos jurídicos tais como a constituição de nova relação de parentalidade; eis que, nos termos do art. 1.593 do Código Civil, o parentesco é natural, quando presentes laços de consangüinidade, ou civil, resultante de adoção.

Diferentemente do que dispõe o direito estrangeiro, lamentavelmente, a legislação brasileira não contempla o instituto da "posse de estado de filho" (Código Civil Italiano - art. 279; Código Civil Espanhol - art. 113, alínea I; Código Civil Português - art. 1.871, I).

A "posse de estado de filho" pode ser entendida como sendo uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai - são os filhos, pais e mães de criação, do coração.

Ante a ausência de previsão legal, os Tribunais estaduais, timidamente, passaram a tutelar e proteger tal instituto. A realidade social do estado de filho passou a ser amparada:

Pensão - Filha de criação de militar - Divisão do benefício. Comprovado, mediante justificação judicial, condição de filha de criação do instituidor militar, e sendo esta equiparada a filha adotiva, a apelante faz jus ao recebimento da pensão em igualdade de condições com sua mãe. (TRF - 2ª região - Ap. Cív. 910210227-7-RJ - Acórdão COAD 61938 - 1ª Turma - Rel.ª Juíza Lana Regueira - Publ. em 18/3/1993)

Pensão - Mãe de criação - Deferimento. O artigo 147, III, da Lei Complementar 180/78, ao se referir a "pais" não tem apenas um sentido biológico. Restrito, portanto. A expressão contida na lei encerra um sentido finalístico, teleológico. Abarca a palavra "pais", sem dúvida alguma, também aqueles que criaram, como se filho fosse, o servidor falecido. Afinal, mãe não é quem deu alguém à luz. Mas sim quem cria uma criança como se filho seu fosse. É sabença popular. (TJ/SP - Ap. Cív. 133.401-5/4 - Acórdão COAD 108382 - 5ª Câm. de Direito Público - Rel. Des. Alberto Gentil - Julg. em 4/9/2003)

Filho de criação - adoção - socioafetividade. No que tange à filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social (socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada. A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. (...). (TJ/RS - Ap. Cív. 70007016710 - 8ª Câm. Cív. - Rel. Des. Rui Portanova, - Julg. em 13/11/2003)

Em 2004, fundamentação de vanguarda trouxe o mestre e Desembargador aposentado do TJ/RS - José Carlos Teixeira Giorgis - no julgamento da Apelação Civil 70008795775 ao considerar que "a paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e sócio-afetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a 'posse do estado de filho', que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o 'estado de filho afetivo', que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse".

Ainda neste movimento, brilhantes decisões foram proferidas pelos Tribunais estaduais nestes últimos dois anos:

Registro civil - pedido de restauração de assentamento de nascimento - (...) Adoção póstuma - possibilidade, no caso concreto. Interpretação extensiva do artigo 1.628 do Código Civil, em que se mostra possível reconhecer a formalização da adoção mesmo que não iniciado o processo para tal, haja vista a autora exercer direito indisponível personalíssimo e que diz respeito à dignidade do ser humano. Verificada a existência da paternidade socioafetiva. (...) (TJ/RS - Ap. Cív. 70014741557 - 7ª Câm. Cív. - Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel - Julg. em 7/6/2006)

(...) "Filha de criação" - herdeira - intenção de adotar (...) I - A filha de "criação" não pode ser considerada filha "adotiva" da falecida, e como tal, herdeira, uma vez que a condição de adotada é conferida por sentença constitutiva, obedecido ao devido processo legal e satisfeitos os requisitos previstos em lei (CC/2002, art. 1623). II - o art. 42, § 5°, do ECA, permite a chamada "adoção póstuma", desde que o respectivo pedido já tenha sido encaminhado pelo adotante ao juiz. Em tese, é possível juridicamente o deferimento da adoção, antes de iniciada a ação, desde que exista documento que evidencie o propósito de adotar. (...) (TJ/DFT - Ap. Cív. 20050110334548APC DF - 4ª Turma Cível - Rel. Des. José Divino de Oliveira - Publ. em 3/8/06)

ADOÇÃO PÓSTUMA - (...) - FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA. Abrandamento do rigor formal, em razão da evolução dos conceitos de filiação sócio-afetiva e da importância de tais relações na sociedade moderna. Precedentes do STJ. Prova inequívoca da posse do estado de filho em relação ao casal. Reconhecimento de situação de fato preexistente, com prova inequívoca de que houve adoção tácita, anterior ao processo, cujo marco inicial se deu no momento em que o casal passou a exercer a guarda de fato do menor. Princípio da preservação do melhor interesse da criança, consagrado pelo ECA. Reconhecimento da maternidade para fins de registro de nascimento. Provimento do recurso. (TJ/RJ - Ap. Cív. 2007.001.16970 - 17ª Câm. Cív. - Rel. Des. Rogério de Oliveira Souza - Julg. em 13/6/2007)

Ação declaratória de paternidade sócio-afetiva c/c petição de heranca - Reconhecimento após falecimento dos adotantes - (...) Manifestação inequívoca (...) I - O reconhecimento de filho em relação a pessoa já falecida (adoção póstuma), não há que se falar em carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido. A CF em seu art. 227, § 6º, consagra a plena igualdade entre os filhos, proibindo 'quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação'. A possibilidade do tipo de adoção tratado tem previsão no art. 42, § 5º do ECA, desde que demonstrada a manifestação inequívoca de vontade do adotante, que pode existir independentemente do processo de adoção (entendimento do STJ). (...) (TJ/GO - Ap. Cív. 200701946991 - 3ª Câm. Cív. - Publ. Em 25/9/2007)

Para referendar e ratificar as decisões proferidas pelos Tribunais estaduais, duas recentes decisões proferidas pelo STJ em menos de seis meses mostram claramente os avanços na seara do Direito de Família. Em julho de 2007, no REsp 823384 (clique aqui) o Tribunal Cidadão protegeu a filiação sócio-afetiva ao possibilitar a adoção póstuma, ante a exclusiva demonstração da vontade de adotar e os laços de afetividade em vida. Em setembro, o STJ foi além ao validar o reconhecimento de filiação sócio-afetiva:

Reconhecimento de filiação - ação declaratória de nulidade - inexistência de relação sangüínea entre as partes - irrelevância diante do vínculo sócio-afetivo. (...) O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp 878941-DF (clique aqui) - 3ª Turma - Relª. Minª Nancy Andrighi - Publ. em 17/9/2007)

Diante deste contexto, é possível reconhecer que, muito embora o instituto da "posse de estado de filho" esteja à margem da lei, decisões de vanguarda vêm atribuindo valor jurídico ao status filii e ao status familiae, reconhecendo nas famílias unidas pelos laços do amor e da gratidão uma relação afetiva, íntima e duradoura. É a verdade sócio-afetiva ganhando abrigo do Direito.

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*Membro Honorário da ABDPC/Associação Brasileira de Direito Processual Civil. Coordenadora Editorial do ADV Online. Redatora e membro da equipe técnica ADV -Advocacia Dinâmica, da COAD - Centro de Orientação, Atualização e Desenvolvimento Profissional

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