MIGALHAS DE PESO

Apartes

César Danilo Ribeiro de Novais

É ponto bem assentado que poucos processos1 ostentam tanta oralidade como o julgado perante o Tribunal do Júri.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Atualizado em 4 de junho de 2009 10:11


Apartes

César Danilo Ribeiro de Novais*

É ponto bem assentado que poucos processos1 ostentam tanta oralidade como o julgado perante o Tribunal do Júri.

No plenário do Tribunal do Júri, após o término da instrução, o juiz presidente concede a palavra ao membro do Ministério Público para apresentação de sua tese. Em seguida, franqueia a palavra à defesa para que emita a antítese. Após, caberão réplica e tréplica (art. 476 do CPP - clique aqui).

Ensina Borges da Rosa que "a expressão debates vem do verbo debater, que significa discutir, discorrer contestando. Assim, os debates consistem em discussão, ou exposição em que a acusação afirma um ponto de vista e refuta aquilo que lhe for contrário, e a defesa afirma ponto de vista diferente e contesta aquilo que acusação sustenta ou afirma"2.

Como é curial, por força do princípio dialético ou dialógico, o ritual do Júri é caracterizado por um embate contraditório: para cada argumento, um contra-argumento; para cada prova, uma contra-prova. Não por outra razão que, em meio aos debates, as partes poderão apartear quem estiver fazendo uso da palavra. Vale dizer, a parte ex adversu poderá participar do discurso do orador, pronunciando-se sobre o assunto em debate. É a figura do aparte3.

Em outras palavras, no Júri, ocorre verdadeiro embate dialético entre Ministério Público e defesa, confronto sempre enriquecido pelos apartes, que são da essência do duelo em plenário. Bem entendido: é do entrechoque de argumentos, ideias e teses que faísca um julgamento justo.

Aparte vem do termo à parte, que significa ao lado, à margem, consistente na palavra ou frase pronunciada enquanto outrem está falando.

Eduardo Espínola Filho ensinou que4 "os apartes são de significação extraordinária, no desenvolvimento dos debates perante o tribunal popular... São a alma do debate..."5

A título de ilustração, conta-se que em certo julgamento numa cidade do Rio Grande do Sul, o aparteante disse: "Eu sei o que digo, estou montado no Código Penal (clique aqui)...", obtendo, de imediato, a reposta do adversário: "O colega foi imprudente. Como bom gaúcho, não deveria montar em animal que não conhece. Sua queda era fatal..."6.

Até a edição da lei 11.689/08 (clique aqui), o CPP não dispunha de nenhuma regra regulando os apartes. Essa lei acrescentou o inciso XII ao artigo 497 do CPP, inovando, pois, o ordenamento jurídico com os denominados apartes judiciais, que, como o próprio nome aponta, são concedidos pelo juiz presidente.

Fica evidente, assim, que, seguindo a linha de pensamento de Edilson Mougenont Bonfim e Domingos Parra Neto7, atualmente, existem duas formas de apartes:

a) Livre ou Consentido - consistente numa concessão do orador que estiver fazendo uso da palavra; pertence à práxis, ao habitus juridicus, à tradição do Júri; não há regra temporal, cronológica, mas sim regra de bom senso, elegância, como reclama a tradição forense; e

b) Judicial ou Regulamentado: sediado no art. 497, XII, do CPP; decorre dum requerimento ao juiz presidente pelo aparteante, que pode concedê-lo por até três minutos, que serão acrescidos ao tempo do orador.

Por isso, durante os debates no Tribunal do Júri, no que concerne à figura do aparte8, aos oradores restam duas opções, quais sejam: requererem a concessão de aparte diretamente ao opositor, e, em caso de negativa, ao juiz-presidente.

Vale ressaltar, nesse passo, que se o aparte for impertinente não há qualquer ilegalidade no indeferimento do pedido, por não constituir direito subjetivo do pretenso aparteante. Conseqüentemente, o juiz pode ou não o deferir.

Numa visão apressada, poder-se-ia concluir que os apartes são desnecessários e tumultuários, já que as partes dispõem da réplica e da tréplica, ocasiões em que poderão contra-argumentar. Todavia, muitas das vezes, os apartes, além de oportunos, são necessários, porque esclarecedores aos jurados, mormente nos casos em que a parte adversa tenta desvirtuar, omitir ou distorcer dados processuais. Devem, porém, ser curtos, comedidos e ordeiros, sem que configurem discursos paralelos.

A propósito, segue interessante aparte retratado por Alfredo Tranjan9:

Desmoralizados os depoimentos, o advogado, excelente orador, iniciou a peroração: "- Jurados! É inconcebível, é inacreditável que, na capital da República, em pleno ano de 1936, um promotor público ouse afrontar a nossa inteligência, pedindo a condenação de um réu primário baseado em depoimentos de prostitutas, cafetinas e pederastas passivos! Os senhores..." "- E Vossa Excelência queria que, um crime ocorrido na zona do Mangue, eu arrolasse como testemunhas as alunas do Colégio Sion?". Era o promotor Rufino de Loy, entre irritado e sorridente. Era o aparte fulminante.

Nesse cenário, não resta dúvida que, no julgamento da causa, as partes devem prezar pela honestidade e fidelidade dos autos, haja vista que estão, a todo o tempo, sob fiscalização recíproca, por meio da réplica, tréplica, argüição de questões de ordem e apartes, que, em alguns casos, podem fazer a diferença quanto ao resultado do veredicto.

Em suma, invocando uma vez mais as palavras de Eduardo Espínola, conclui-se que: "Apartes, sim; mas, curtos e oportunos - aconselha a boa técnica; comedidos, não insistentes, nem prolongados, e em termos moderados - exige a perfeita ordem dos trabalhos, que não pode ser sacrificada pelas interrupções dos debates e pelas respostas dos oradores, em termos desrespeitosos e agressivos, capazes de estabelecer o tumulto"10.

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1 Leia-se: procedimentos.

2 ROSA, Borges. Comentários ao Código de Processo Penal. Vol.2, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 183.

3 A título de curiosidade, na Câmara dos Deputados, o aparte é possível, desde que o orador permita, nos termos do art. 176 do seu Regimento Interno.

4 Bem como que "os apartes são o tempero dos debates" (TJSP, AP, Rel. Corrêa Dias, RJTJSP 144/495).

5 ESPINOLA, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Vol. IV, 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, p. 447-448.

6 BRANCO, Vitorino Prata Castelo. O Advogado no Tribunal do Júri. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 49.

7 BONFIM, Edilson Mougenot; PARRA, Domingos. O novo procedimento do Júri. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 125-126.

8 Faz certo notar, por oportuno, que, não obstante a existência do aparte, conforme dispõe a cabeça do art. 480 do CPP, a acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado.

9 TRANJAN, Alfredo. A Beca Surrada - Meio Século no Foro Criminal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 245.

10 ESPINOLA, Eduardo. Obra citada, p. 451.

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*Promotor de Justiça no Mato Grosso

 

 

 

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