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Procedimento administrativo tributário e medida cautelar no processo penal

Débora Pimentel e Rodrigo Dall'Acqua

Em notória manifestação de seu órgão plenário, o STF entendeu ser necessário o término do processo administrativo tributário para que o Ministério Público possa intentar ação penal por crime de sonegação fiscal.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2004

Atualizado em 7 de dezembro de 2004 12:21


Procedimento administrativo tributário e medida cautelar no processo penal

Débora Pimentel*

Rodrigo Dall'Acqua**


m notória manifestação de seu órgão plenário, o STF entendeu ser necessário o término do processo administrativo tributário para que o Ministério Público possa intentar ação penal por crime de sonegação fiscal. O posicionamento encampado é simples e lógico, partindo do princípio de que o crime de sonegação fiscal pressupõe a existência de um tributo devido aos cofres públicos, que somente será constituído após o lançamento fiscal definitivo.

Em seu voto, o ministro Celso de Mello assinalou que somente ao término do procedimento administrativo é que "ter-se-ão, então, por definitivos, tanto a existência, como o conteúdo da própria relação jurídico-tributária, fazendo cessar o estado de incerteza objetiva, resultante da simples potencialidade de uma contestação"1. Esse entendimento gera um contundente efeito penal, fazendo com que o crime de sonegação fiscal se materialize somente após o lançamento final do crédito tributário, com o encerramento do procedimento administrativo. Antes disto não há a consumação do crime tributário.

Mas, apesar do reconhecimento pelo plenário do STF, não unânime aliás, tal tese não possui aceitação pacífica, recebendo fortíssimo coro em contrário, onde se sustenta, dentre outros argumentos, a independência e autonomia das esferas penal e administrativa, entendendo-se que o esgotamento do procedimento fiscal não pode servir de obstáculo à atuação do Poder Judiciário. A defesa desta tese passa, quase sempre, por uma visão depreciativa da apuração administrativa, classificada como "uma limitada análise de caráter estritamente extrapenal"2, bem inferior às dimensões e possibilidades da persecução penal, que teria ainda status constitucional de produzir coisa julgada. Com isso, permite-se a instauração da ação penal mesmo sem a apuração definitiva do débito fiscal, admitindo-se que "eventual dúvida do magistrado quanto à existência ou mesmo ao quantum do débito deverá ser aferida durante a instrução criminal"3, sendo que nem mesmo uma eventual decisão administrativa reconhecendo a inexistência do tributo será capaz de influenciar a esfera penal.

Pode-se notar um tênue ponto de convergência entre as duas correntes, especificamente quanto à dificuldade de apuração da materialidade dos crimes tributários. Para a maioria dos ministros do Supremo, o procedimento administrativo em trâmite gera o "estado de incerteza objetiva" que impede a configuração do crime tributário, e, segundo entendem os opositores desta tese, as páginas do mesmo procedimento, encerrado ou não, são vistas como provas fracas e pouco capazes de gerarem efeitos no processo criminal. Em comum, pouco ou nenhum valor probatório é conferido ao procedimento administrativo tributário não encerrado.

Para incrementar a controvérsia quanto à materialidade dos delitos tributários, temos ainda o entendimento em que se afirma que a prova produzida nos procedimentos administrativos é parcial, face ao natural interesse da Administração Pública em arrecadar impostos. Em decorrência, a prova da materialidade do delito deve ser produzida pelo competente exame de corpo de delito previsto no Código de Processo Penal, através de perito judicial isento e imparcial4.

Promete ir longe a discussão sobre as conseqüências penais do término do processo administrativo tributário e, enquanto não há uniformidade sobre o tema, inúmeros contribuintes seguem sendo processados por crimes tributários, ao mesmo tempo que se defendem na esfera administrativa. Além do grande constrangimento de responder a um processo criminal, o réu ainda fica sujeito a sofrer as conseqüências da decretação das medidas cautelares processuais penais, tendo como exemplo mais aterrorizante a prisão preventiva.

Ocorre que, mesmo que se adote posição contrária ao STF, não há como negar que as ações penais que tramitam na pendência do lançamento tributário estão arrimadas em prova particularmente frágil, quase que exclusivamente num auto de infração ou em outras peças de um processo administrativo fiscal inacabado.

Neste panorama de incerteza sobre o valor e a própria existência do tributo, resta incabível a imposição das medidas cautelares processuais penais que, para serem decretadas, exigem um estado de certeza quanto à materialidade do delito. As medidas cautelares penais são providências extremas, já que privam o indivíduo de seus bens e liberdade antes de qualquer manifestação definitiva de sua culpabilidade e, como decorrência de sua excepcionalidade constitucional, só podem ser decretadas quando presente prova indiscutível da existência do crime, que, obviamente, não admite a menor probabilidade de dúvida ou incorreção.

A prova da infração penal exigível para as medidas cautelares aproxima-se de uma certeza absoluta, bem mais evidente e incontestável do que a que basta para a instauração de um inquérito ou o recebimento de uma denúncia. Definindo a prova da materialidade como o "corpo de delito", José Frederico Marques assevera que "a denúncia ou a queixa são admissíveis com a simples suspeita de crime (opinio delicti). Todavia, a coação jurisdicional cautelar sempre exige a prova do fato punível ou corpus delicti"5.Analisando as medidas cautelares pessoais e patrimoniais previstas no Código de Processo Penal, os melhores exemplos de enunciados que clamam pela prova plena de materialidade são a hipoteca legal e a prisão preventiva.

Com maior ênfase, a constrição patrimonial de hipoteca legal requer expressamente a "certeza da infração", que equivale a uma "prova plena, tornando certa a existência da infração penal"6, bem mais palpável que a prova suficiente à instauração da ação penal, posto que sua decretação "exige certeza da infração e indícios suficientes da autoria (artigo 134, CPP), não bastando os requisitos para o recebimento da denúncia, para que é suficiente a existência de prova da existência do crime e indícios de autoria"7.A mesma exigência é imposta na decretação da prisão preventiva, que reclama "prova da existência do crime", a qual também não pode ser confundida com os indícios da existência do delito suficientes para instauração da ação penal. Vale alertar que a certeza da infração é um dos pressupostos da prisão preventiva, ou seja, se não for cabalmente demonstrada, a medida cautelar não poderá ser imposta, ainda que presentes seus fundamentos. Nesse sentido, Basileu Garcia adverte que "onde mais se limita o poder do juiz de decretar a medida é no que toca à certeza da existência da infração"8, pois "o corpo de delito não autoriza dúvida", portanto, eventual incerteza sobre o débito tributário será obstáculo instransponível à prisão cautelar.

Nelson Hungria analisou questão semelhante ao relatar um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, em que se argumentava que a prisão preventiva havia sido decretada sem prova da materialidade do crime de peculato. Ressaltando que para o decreto de prisão preventiva "é indispensável a prova concludente da materialidade do crime imputado"9, Hungria detectou um estado de grande incerteza acerca da suposta dívida e revogou o decreto de prisão, sem prejuízo do prosseguimento da ação penal.

Enfim, seja de cunho patrimonial ou pessoal, toda medida cautelar que se pretenda adotar no curso de um processo criminal deverá necessariamente demonstrar a certeza da infração penal, comprovação absolutamente incompatível com o estado de incerteza ocasionado pelo procedimento administrativo em trâmite, onde, muito além do desconhecimento do valor devido, não se sabe sequer se há algo a ser pago.
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1 STF, HC nº 81.611/DF, Pleno, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 10/12/03, m.v.

2 STJ, HC nº 12.929/GO, 5ª Turma, rel. min. Felix Fischer, j. 1/4/04, v.u.

3 STJ, RHC nº 7.862/SC, 6ª Turma, rel. min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 10/8/99, v.u.

4 TRF 2ª Região, 1ª Turma, Ap. nº 98.02.19601-0, rel. des. fed. Carreira Alvim, DJ 6/9/01, p. 49. Vide também "Da necessidade do exame de corpo de delito nos crimes contra a ordem tributária", Helios Nogués Moyano, Fernanda Velloso Teixeira e Carlos Alberto Pires Mendes, Boletim IBCCRIM nº 102, maio/2001.

5 Elementos de Direito Processual Penal, 1ª ed., vol. I, Forense, p. 172.

6 Eduardo Espínola Filho, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, 4ª ed., vol. II, Editor Borsoi, p. 397.

7 TRF 3ª Região; rel. des. fed. Peixoto Júnior, MS nº 2002.03.00.033582-0, decisão monocrática, j. 11/9/02.

8 Comentários ao Código de Processo Penal, vol. III, pp. 154/155.

9 RHC nº 31.833/SP, j. 12/12/51, v.u.
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* Advogada do escritório Bueloni, Monteiro e Pimentel Advogados e membro
do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

** Advogado do escritório Oliveira Lima Filho, Oliveira Lima e Hungria Advogados e membro do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais







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