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A CF/88 e o regime de dedicação exclusiva

Robson S. Lins

Assunto que provoca dúvidas e suscita discussões de toda sorte, o regime de dedicação exclusiva dos professores das instituições de ensino superior tem sido alvo de interpretações equivocadas e, talvez, instrumento de perseguição política de alguns servidores. Dessa forma, é salutar e sobretudo recomendável promover o debate isento sobre esse conturbado tema, a despertar na sociedade visão crítica e independente, sempre com vistas à correta interpretação e aplicação dos preceitos contidos na CF/88.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Atualizado em 11 de agosto de 2009 10:33


A CF/88 e o regime de dedicação exclusiva

Robson Sitorski Lins*

Assunto que provoca dúvidas e suscita discussões de toda sorte, o regime de dedicação exclusiva dos professores das instituições de ensino superior tem sido alvo de interpretações equivocadas e, talvez, instrumento de perseguição política de alguns servidores. Dessa forma, é salutar e sobretudo recomendável promover o debate isento sobre esse conturbado tema, a despertar na sociedade visão crítica e independente, sempre com vistas à correta interpretação e aplicação dos preceitos contidos na CF/88 (clique aqui).

Para tanto, é necessário fixar as premissas do raciocínio que ora se desenvolve. Nesse ponto, esclarece-se que no pano de fundo da questão está a possibilidade dos servidores acumularem cargos públicos. Esse tema é tratado em âmbito constitucional desde a Carta Política de 1891, quando o constituinte determinou a vedação absoluta da acumulação de cargos públicos remunerados, na tentativa de se moralizar a farra da distribuição desses cargos entre os queridos dos poderosos. Diversos são os registros da época, inclusive Cartas Régias e Decretos Imperiais, que denotam a preocupação da Administração em evitar o prejuízo do serviço público, onde um mesmo indivíduo chegava a concentrar quatro ou cinco funções simultâneas. Há relatos sobre o agravamento dessa situação com a vinda da corte de D. João VI ao Brasil, fugindo das tropas do General Junot. O monarca, impedido de retornar à Europa sob o domínio de Napoleão, agraciava os fidalgos descontentes e nostálgicos com oferta de empregos e outras gentilezas. Por essa razão, o art. 73 da Constituição de 1891 (clique aqui)estabeleceu radical proibição a toda e qualquer acumulação de cargo público remunerado.

A partir de então, as Constituições brasileiras, sob forte influência desses episódios, adotaram a proibição do acúmulo como regra. Contudo, passaram a excepcionar os casos em que as acumulações eram não apenas benéficas, mas necessárias ao eficiente desempenho das funções públicas. Essa orientação se manteve no sistema instituído pela CF/88, que, em seu art. 37, inciso XVI, estabeleceu as exceções em que a acumulação de cargos públicos é autorizada. Dessarte, o ordenamento jurídico atual permite, desde que respeitados o teto remuneratório e a compatibilidade de horários, a acumulação de:

a) dois cargos de professor;

b) um cargo de professor com outro técnico ou científico; e

c) dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.

Com efeito, embora a regra seja a proibição, o texto constitucional garante o exercício de dois cargos públicos aos servidores que cumprirem as exigências postas naquele dispositivo legal.

De outro lado, tem-se o regime de dedicação exclusiva, introduzido no ordenamento brasileiro pela lei 4.345, de 26 de junho de 1964 (clique aqui), e regulamentado pelo Decreto 94.664, de 23 de julho de 1987 (clique aqui), que dispõe que o professor da carreira de Magistério Superior, submetido a esse regime, prestará quarenta horas semanais de trabalho em dois turnos diários completos e será impedido de exercer outra atividade remunerada, seja pública ou privada. Portanto, em conformidade com essa norma jurídica, o professor D.E. fica impedido de exercer qualquer atividade, senão o magistério.

Observados esses dois marcos legais, nitidamente conflitantes entre si, resta investigar qual deles deve prevalecer. Cumpre assinalar que a interpretação constitucional é pautada por princípios cardeais, entre os quais estão o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. O primeiro princípio traz em si a idéia de que a Constituição Federal goza de superioridade hierárquica sobre as demais leis, servindo de suporte a toda legislação do Estado. Desse modo, nenhuma lei pode afrontá-la, sob pena de se romper a estrutura jurídico-normativa. O princípio da continuidade da ordem jurídica, por sua vez, tem lugar com o advento da nova Constituição. Com a entrada em vigor, a Constituição defronta-se com o sistema legal já existente, que tinha seu fundamento de validade na Constituição anterior. Assim, para que não haja um vazio jurídico, todas as leis que não forem incompatíveis com a nova Carta Política têm sua eficácia mantida. Esse instituto é conhecido como o da recepção das normas.

Voltando-se os olhos ao caso da acumulação dos cargos, tem-se que a Constituição Federal garante a possibilidade do servidor exercer dois cargos públicos, desde que respeite a compatibilidade de horários e o teto remuneratório. Por sua vez, a norma que institui o regime de dedicação exclusiva limita sobremaneira direito assegurado constitucionalmente. Aqui já se vislumbra a contrariedade do texto constitucional promovida pela lei 4.345/64, o que impede a irradiação de seus efeitos no ordenamento vigente, conforme dispõe o princípio da supremacia da Constituição. Tampouco se pode falar em recepção, haja vista que essa norma é anterior à Carta Constitucional de 1988, porquanto estabelece limitação mais gravosa à liberdade de exercício de trabalho do que a garantida pelo sistema atual. Oportuno mencionar que tanto a lei 4.345/64, como o Decreto 94.664/87 são natimortos, pois no momento de sua publicação vigia norma constitucional semelhante à trazida pela CF/88, estabelecendo exceções à regra proibitiva de acumulação dos cargos públicos.

Insta consignar que o instituto da desacumulação absoluta trazido pelo regime de dedicação exclusiva é, além de inconstitucional, improducente e mesmo atentatório ao princípio da eficiência pública. Um verdadeiro tiro no pé, se se pensar que em determinadas situações a acumulação de cargos é recomendável, senão imperiosa. Ruy Barbosa, à época da primeira vedação total empreendida no corpo da Constituição de 1891, já demonstrava com exemplo magnífico o desacerto do instituto: "Suponhamos a coexistência de um curso de bacteriologia e um instituto consagrado às investigações deste ramo de estudos. Seria acaso mais proveitoso à sociedade, nesses dois serviços, distribuí-los entre um prático sem teoria e um teorista sem prática, do que reuni-los num pasteur, num koch, num Oswaldo Cruz, ou num Carlos Chagas?" É evidente a resposta.

A possibilidade de acumulação de cargos pelo professor, trazida pelo texto constitucional, denota a preocupação com o aprimoramento técnico desse profissional. Permite-se que se reduza o professorado a hora de aula, e a hora de aula a um intervalo entre negócios de maior importância para a vida econômica e intelectual dos professores, entre as causas do foro, ou as sessões dos tribunais, ou as urgências e a clínica de consultório. Essas atividades enriquecem esses profissionais com o imprescindível conhecimento empírico, pragmático, nu e cru que somente a vida além da academia se lhes apresenta.

Dessa feita, o instituto da dedicação exclusiva, como proibição absoluta de acumulação de outros cargos, é fruto de interpretação equivocada e contrária à Constituição vigente, não podendo ser utilizado contra os professores que exercem as atividades previstas nas exceções do art. 37, XVI, da CF/88. Ademais, admitir como válido esse impedimento equivale a restringir injustificadamente a atividade de magistério àqueles que podem transmitir não apenas a teoria científica, mas a vivência prática da ciência.

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*Advogado do escritório Newley, Romanowski, Araújo & Guerra Advogados Associados

 

 

 

 

 

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