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O novo Código Civil no mundo das joint ventures

Isabel C. Franco

O impacto para o investidor estrangeiro na associação com minoritários brasileiros.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

O novo Código Civil no mundo das joint ventures: o impacto para o investidor estrangeiro na associação com minoritários brasileiros

Isabel Franco*

Neste mês, após muitos anos de debate no Congresso, entrará em vigor o novo Código Civil, causando significativas modificações em diversas áreas do Direito no País.

De especial interesse aos investidores estrangeiros, uma das áreas mais afetadas pelo novo Código diz respeito à organização de sociedades. Neste janeiro, o novo Código regulará todos os tipos de empresas exceto aquelas que são ora regidas por legislação específica, como as sociedades anônimas. Na verdade, é notório que o Direito Societário tem passado por grande revisão, verificando-se alterações importantes na matéria nesses últimos tempos.

Assim, todas as alterações propostas pelo novo Código afetarão sensivelmente o tradicional e concretamente estabelecido sistema jurídico empresarial no Brasil. Como se sabe, os dois tipos de sociedades mais comuns, utilizados pela maioria dos negócios no País, têm sido a sociedade por quotas, de responsabilidade limitada (a tão conhecida "limitada") e as sociedades anônimas ( as "S/A").

Estatisticamente, as juntas comerciais dão conta que a limitada tem sido o tipo societário indubitavelmente mais utilizado no Brasil (até a subsidiária da Ford no nosso país é uma limitada). A razão para tanta popularidade é que as limitadas sempre foram mais simples de administrar e menos custosas que as S/As. Para se ter uma idéia, a limitada é ainda regulada por um decreto do início do século (1919), mas que é imbatível na sua simplicidade, permitindo grande flexibilidade aos quotistas na decisão do conjunto de regras que regularão a sociedade.

Para os investidores norte-americanos, por exemplo, é atraente o fato de serem as limitadas semelhantes às sociedades de responsabilidade limitada dos Estados Unidos (as "limited liability companies" - LLC). Como as LLC nos Estados Unidos, as limitadas no Brasil tornaram-se a forma preferida de organização societária por sua característica híbrida: as limitadas combinam a responsabilidade limitada das S/As e a flexibilidade das associações de pessoas. Tanto a LLC americana quanto as limitadas oferecem a responsabilidade limitada como uma grande vantagem aos seus sócios.

As tão propagadas características da limitada, que sempre atraíram o investidor estrangeiro em joint ventures com o empresário brasileiro, são bastante conhecidas: (i) a associação se constitui com personalidade jurídica, sem a exigência de capital mínimo; (ii) o patrimônio pessoal dos quotistas não se comunica com o patrimônio da sociedade - não sendo os quotistas pessoalmente responsáveis pelos débitos da empresa; (iii) as características pessoais dos quotistas são importantes, o que permite, por exemplo, a recusa de seus sucessores na limitada; (iv) o contrato social pode estabelecer que várias matérias sejam aprovadas somente pela maioria; e (v) não se exige a publicação das demonstrações financeiras ou dos balanços.

Entretanto, da mesma forma que ocorreu com as LLCs nos Estados Unidos quando foram criadas, as limitadas se encontram sob a ameaça de incertezas legais já que o novo Código modificou sua estrutura dramaticamente. O novo Código favorece claramente o quotista minoritário de tal forma que os investidores ver-se-ão relutantes em se aventurar à nova sistemática das limitadas nos casos de associações em joint ventures com os brasileiros (ou com outros investidores igualmente estrangeiros do Mercosul, por exemplo).

Nessa área, as disposições do novo Código afetarão sensivelmente todas as limitadas. Um dos pontos mais controvertidos da nova legislação se refere ao mínimo de votos exigido de três quartos do capital social para a aprovação de matérias como incorporações, fusões e dissolução da sociedade. O mesmo quorum aplica-se até mesmo a decisões menos complexas como alterações ao contrato social da empresa para mudança dos nomes e endereços dos quotistas, da denominação social, da sede, dos objetivos, do capital social e da participação dos quotistas.

Essas exigências de quorum afetarão diretamente as joint ventures que se utilizam de limitadas onde o controle é atualmente mantido pela simples maioria. Até dezembro o quotista que detém 50% mais uma quota pode alterar o contrato social sem a anuência prévia de outros quotistas. Este mês, a coisa muda...

E mais: mesmo que os sócios em uma joint venture formada como uma limitada possam celebrar um acordo particular de quotistas - onipresente nas associações do gênero dos Estados Unidos - tal acordo, mesmo que ainda conveniente em certas situações, não poderá prevalecer sobre a nova legislação.

Outra importante inovação se refere à alienação de quotas. Na hipótese de o contrato social não prever especificamente a transferência de quotas, a oposição de um quarto do capital poderá impedir a transferência a terceiros. Se a transferência ocorrer, o alienante ficará responsável conjunta e individualmente com o adquirente por dois anos por suas obrigações como quotista da sociedade, perante a sociedade e terceiros.

A administração da limitada também sofrerá importantes alterações. Até 2003, é prerrogativa do quotista a gerência da limitada, que pode ser delegada a um terceiro, não quotista. O investidor estrangeiro, quase sempre uma empresa, obviamente tem a liberdade de designar pessoa de sua confiança para administrar a joint venture. O novo Código, todavia, condiciona a nomeação de tal pessoa à aprovação unânime dos quotistas se o capital não tiver sido integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização. Tolhe assim o novo diploma uma vital faculdade do sócio estrangeiro.

Todas essas inovações do novo Código têm a nobre intenção de modernizar a legislação das limitadas, porém questiona-se a razão de se modificar um diploma tão amplamente aceito ( "If it ain't broken..."). Aliás, com o mesmo propósito, tramita no Congresso um projeto de lei para adequar a contabilidade das chamadas "empresas de grande porte" ao padrão internacional de governança corporativa, obrigando-as a publicar seus balanços e demonstrações financeiras. Se aprovado, o novo regulamento afetará também as limitadas que até então não se sujeitavam a essas obrigações. O maior argumento contra essa nova exigência é que a contabilidade da limitada diz respeito tão somente a seus quotistas, diferentemente das companhias abertas cuja saúde financeira pode ser relevante a toda comunidade. Novamente, cairá por terra outro grande atrativo da limitada para o investidor controlador da sociedade.

Após tantas reformas, que visam invariavelmente favorecer os interesses do minoritário, o investidor estrangeiro associado ao brasileiro deverá certamente revisitar sua joint venture já existente, a menos que, para evitar tantas incertezas com relação à nova limitada, aceite transformar a sociedade de limitada para S/A, que é regida por lei específica (Lei das S/A, No. 6404/76), fora, portanto, do alcance das alterações do novo Código. Entretanto, a Lei das S/A também foi recentemente alterada primordialmente para promover padrões mais rigorosos de governança corporativa e pode não ser o veículo ideal ao investidor estrangeiro por diversos outros motivos, inclusive fiscais, pois a S/A não pode ter seus resultados consolidados com os da matriz (pois expressamente não tem o status de "pass-through entitity" conforme as leis fiscais dos Estados Unidos).

Na esteira dessas mudanças, tudo ficou mais difícil para o investidor que quer controlar uma sociedade no Brasil, mesmo que migre para a S/A. As mais importantes alterações da Lei das S/A acabam aumentando em certos casos a porcentagem mínima para se deter o controle, introduzem direitos obrigatórios de tag along para os minoritários das companhias abertas e dificultam a vida do controlador.

Todas essas inovações objetivam também à atualização e promoção do mercado de capitais brasileiro, na esperança de incentivar maiores investimentos (quer do investidor estrangeiro, quer do brasileiro). Mas acabam criando o famoso catch twenty two, onde as mudanças em matéria de governança corporativa e proteção dos minoritários afugentam o mesmo investidor que pretendem atrair.

Com tanta novidade nas regras de organizações de negócios no Brasil, tantas críticas ao novo código Civil, dúvidas quanto às suas implicações, somadas às incertezas quanto ao novo governo, amedronta-se o investidor estrangeiro das associações com nossos corajosos empresários, que tantas vezes contam com o capital do parceiro para iniciar empreendimentos vitais à economia do País. Levará com certeza um bom tempo para que se solidifiquem essas novas normas e que os investidores se sintam seguros nas suas negociações com possíveis parceiros. Perdem os carentes de capital que, nessas alturas, não precisavam de mais uma forma de instabilidade no seu dia a dia e mais um componente do custo Brasil.

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* Isabel C. Franco é sócia do escritório Demarest e Almeida, tendo sido responsável pela unidade de Nova York pelos últimos doze anos, onde residiu permanentemente, tendo ocupado, entre outros, o cargo de presidente da Divisão de Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Estado de Nova York. Isabel Franco é membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB, do Conselho de Administração da Câmara Brasil-Estados Unidos de Nova York e do Comitê de Legislação da Amcham.

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