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"Prato de lentilhas"

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Atualizado às 10:24

"O dinheiro é o eterno prato de lentilhas da humanidade."

Joaquim Nabuco

Qualquer semelhança é mera coincidência

Sobre o "prato de lentilhas" que abre esta edição, o migalheiro Machado de Assis, contemporâneo de Joaquim Nabuco, também gostava dessa profunda imagem bíblica na qual um irmão queria comprar a primogenitura do outro oferecendo em troca um prato de lentilhas. Com efeito, no outonal livro "Esaú e Jacó" ele polvilha seu texto com essas metáforas. O bruxo do Cosme Velho dá aos fraternais inimigos os nomes de Pedro e Paulo. A diferença, na ficção machadiana, é que aqui eles são gêmeos, e um era republicano, e o outro monarquista. Antes do prato de lentilha, uma passagem merece ser contada. É a que trata do desejo deles de capturar o tempo, pois estavam os dois imberbes ansiosos pelo fim da lanugem no rosto. Mas "as barbas não queriam vir, por mais que eles chamassem o buço com os dedos". E não queriam vir porque há o remédio heroico concedido por Machado, ao lembrar que "ao tempo dá Deus habeas corpus". E eis que lhes chega o "cozido de ervilhas" : é a jovem Flora, filha de Batista e D. Cláudia. O pai era advogado cível e político. Muito mais político, é preciso que se diga, do que advogado. Motivado pela esposa, vivia almejando cargos públicos de importância. Ora conservador, ora liberal. A propósito de D. Cláudia, é dela uma das melhores tiradas do livro. Ela queria ir ao último Baile do Império, na Ilha Fiscal, menos pelo interesse em danças, e mais por ser um fato político "que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência" (o cargo mencionado por D. Cláudia era a presidência de alguma província, o que equivaleria hoje ao governador do Estado). Batista, com pudores (não lá muito convictos), balouçava entre o conservadorismo e o liberalismo, e assim hesitava em confirmar sua presença. No que D. Cláudia, matando o argumento e encerrando a dúvida, diz : "não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha". Eis, aliás, o que bem poderia ser o lema de alguns partidos de hoje em dia. Mas voltando à Flora, Machado intitula um capítulo de "Estado de Sítio". Era a oposição ao estado de direito dos gêmeos ; é a morte de Flora. O féretro "teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio". E acrescenta-se à metáfora que "a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver". Ao cabo do decreto, todas as liberdades serão restauradas, "menos a de reviver". "Quem morreu, morreu."