terça-feira, 21 de maio de 2024

IBCCRIM - Editorial

  1. Home >
  2. IBCCRIM - Editorial >
  3. A nossa responsabilidade pelo sistema carcerário

A nossa responsabilidade pelo sistema carcerário

Editoral do mês de outubro/2022.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Atualizado em 7 de dezembro de 2022 10:22

A fundação do IBCCRIM está diretamente ligada a razões que, já em 1992, eram urgentes e inadiáveis, como a crítica à dogmática penal e ao funcionamento do sistema de justiça criminal, especialmente do Poder Judiciário. Não só: dentre essas razões, destaca-se a reação ao massacre do Carandiru. A missão e a história do Instituto estão, portanto, profundamente ligadas a uma política criminal que rejeita o hiperencarceramento, bem como à defesa de um sistema carcerário em conformidade com o princípio da dignidade humana. Sobre esse último aspecto, há de se reconhecer que muitas coisas foram feitas ao longo desses últimos 30 anos. Apesar disso, é inegável que se tem não apenas muito a se fazer, a melhorar e a retificar, como também que em diversos pontos houve um nítido retrocesso. É preciso reagir.

Em primeiro lugar, o país não dispõe hoje de estatísticas seguras sobre o sistema penitenciário. Os números do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e os do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) têm imensas disparidades. Cada órgão segue critérios e métodos próprios de contabilização dos presos, impossibilitando saber com acuidade a realidade do sistema carcerário. Além de inviabilizar a formulação de políticas públicas racionalmente orientadas, a ausência de dados seguros revela o descuido - o desprezo - com que o Estado brasileiro, em suas várias esferas, trata a pessoa sob sua custódia.

Esse cenário de pouco rigor técnico e científico favorece a manipulação ideológica, com algumas situações absurdas. Por exemplo, nos últimos anos, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) tem tentado modificar o conceito do que é uma vaga no presídio, com o objetivo de esconder a escandalosa superlotação do sistema prisional.

Em vez de trabalhar para prover uma melhor situação dos presídios, percorre-se a via do negacionismo. É a normalização do "estado de coisas inconstitucional", reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, quando se atestou um "quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas". Na ocasião, o STF afirmou que a modificação dessa situação "depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária". Não se muda a realidade simplesmente escondendo-a.

Uma segunda questão que preocupa enormemente o IBCCRIM relaciona-se com os objetivos que orientam, na prática, o funcionamento do sistema penitenciário, o que gera consequências diretas sobre a população carcerária (sobre o respeito aos seus direitos e garantias fundamentais), bem como sobre o próprio sentido do sistema. Pensado e estruturado originalmente para ser âmbito de ressocialização, o sistema penitenciário nacional tem sido cada vez mais visto e tratado como espaço de isolamento e de neutralização de pessoas. Há uma deformação de toda a perspectiva da execução da pena.

Para ser âmbito de ressocialização, o presídio precisa de espaço, com uma estrutura capaz de oferecer trabalho, ensino e cultura. É necessário dispor de oficinas, salas de aula e bibliotecas. No entanto, constata-se a normalização de um encarceramento que amontoa pessoas, seja nos chamados Centros de Detenção Provisória (que muitas vezes nada tem de provisória), seja em delegacias. Não basta ter pátio para tomar sol.

Em terceiro lugar, o sistema carcerário descumpre a lei em inúmeros itens. A Lei de Execução Penal (LEP) precisa ser cumprida. Não é uma peça de ficção: é uma carta de direitos e deveres, que deve obrigar o aparato estatal. Não pode haver indiferença com o estado de coisas inconstitucional, como se fosse um problema de menor importância. A qualidade de uma democracia passa diretamente pelo respeito ao direito de todos, seja qual for sua condição social ou seu passado. Nada autoriza a despir uma pessoa de sua cidadania e de sua dignidade.

Ao listar esses três desafios, vê-se como os problemas da execução da pena são enormes. Há todo um sistema político-institucional conivente com abusos, ilegalidades e desumanidades. E há igualmente uma sociedade tolerante com esse estado de coisas inconstitucional. O trabalho do IBCCRIM não pode, portanto, limitar-se a postular e a exigir um funcionamento do sistema carcerário dentro da lei e em conformidade com os Direitos Humanos. Lado a lado com outras muitas instituições e pessoas, é urgente construir uma nova sensibilidade social, que não seja indiferente ao outro.

O sistema carcerário, com suas muitas deficiências, não é mero problema dos que estão presos. É um problema de todos, que afeta a todos, que envolve a todos, que reclama a participação de todos. O massacre do Carandiru, que, por óbvio, exige a responsabilização penal dos autores dos muitos crimes cometidos contra pessoas que estavam sob custódia do Estado, é também responsabilidade de toda a sociedade - muito especialmente quando esse massacre continua, sob outras formas e sob outras máscaras, no funcionamento cotidiano do sistema carcerário. É preciso um renovado compromisso com a cidadania e o direito de todos.