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Oportunidade perdida?

Editorial do mês de outubro/2023.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Atualizado às 09:34

Avizinha-se o desfecho de um dos julgamentos mais esperados das últimas décadas na Suprema Corte brasileira: o Recurso Extraordinário 635.659, que trata da constitucionalidade da criminalização da conduta de porte de drogas para consumo próprio. Quando o caso iniciado em 2011 foi a julgamento, em 2015, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, defendeu o deslocamento da política sobre drogas do campo penal para o da saúde pública. Em seu voto original, o Relator atacou a incongruência de uma norma penal que pretensamente tutela a saúde pública, mas produz a estigmatização de pessoas que usam drogas, distanciando-as de políticas de atenção, cuidado e reinserção social.

Nas palavras do Ministro, o processo de descriminalização - totalmente distinto da legalização, posto que mantém a ilicitude das drogas - haveria de ser acompanhado de políticas de redução de danos e riscos, a fim de mitigar as consequências negativas dessa prática. Para o Ministro, o tratamento criminal da conduta - não obstante a supressão de penas privativas de liberdade promovida pela Lei 11.343 de 2006 - se mostra ineficiente para a proteção da saúde coletiva, até porque alcança em especial os grupos mais vulneráveis, como os jovens e as pessoas em situação de fragilidade econômica.

Note-se que o Relator não restringiu a declaração de inconstitucionalidade à droga apreendida nos autos (Cannabis spp.), mas decidiu amplamente sobre a conduta de porte de qualquer droga ilícita. Todavia os votos subsequentes, proferidos pelos Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, foram em outra direção, limitando a decisão à substância tratada no caso individual. O consenso em torno dessa restrição ficou mais claro quando, na retomada do julgamento, em 2023, o Ministro Alexandre de Moraes apresentou seu voto e, em seguida, o próprio Ministro Gilmar Mendes alterou seu voto, alinhando-se aos colegas e limitando sua decisão à maconha.

Também nessa linha foi o voto antecipado pela Presidente da Corte, Ministra Rosa Weber, que, apesar do entendimento amplo sobre a inconstitucionalidade da tutela penal em relação ao consumo de qualquer substância psicoativa ilícita, retrocedeu seu voto em prol do alcance do consenso na corte. Assim, há uma tendência desenhada para o julgamento: uma tímida decisão que parece mais se adequar à realidade social do que mirar um impacto efetivamente transformador da política sobre drogas vigente.

A limitação dessa interpretação constitucional que prevalece entre os julgadores - ao menos até o momento - é difícil de ser explicada sob o prisma do direito à saúde: deve ser protegido da criminalização o consumidor de maconha, mas não o de todas as todas as outras drogas ilícitas? Essa perspectiva que cinge a decisão descriminalizadora à maconha é indiferente ao perfil mais vulnerável de pessoas que usam drogas. Por exemplo, entre os achados de um levantamento da Fiocruz (Bastos et al., 2017), constatou-se que, não obstante a ilicitude da droga, usuários de maconha tendem a "esconder" menos sua prática, que é bem menos estigmatizada que o de outras drogas, como o crack. Uma amostra de 7.000 usuários dessa droga mantinha, segundo a pesquisa, vínculos tênues com seus domicílios e famílias de origem. Eram, portanto, de dificílima abordagem no contexto domiciliar ou estavam em situação de rua.

Não se deve, ainda, ignorar o viés racial desse estigma, evidente em outro estudo da Fiocruz (Bastos; Bertoni, 2013), focado no uso de crack, que aponta para o perfil de usuário que estará excluído da proteção do controle de constitucionalidade da Lei de Drogas. Embora correspondessem, no ano do estudo, a 52% da população brasileira, 80% dos consumidores de crack eram não brancos.

Outra importante frustração que se colhe dos votos proferidos até este momento é o diminuto impacto que uma decisão restrita à maconha terá na população prisional. Na publicação preliminar Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum, produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, tem-se o seguinte panorama: a maioria dos processos criminais envolve a apreensão de mais de uma substância ilícita, sendo as mais comumente apreendidas a cocaína (70,2% dos processos), seguida da Cannabis (67,1%). Assim, a descriminalização exclusiva do porte de maconha não será capaz de provocar alterações substanciais no funcionamento da engrenagem do sistema de justiça criminal ou no questionável aprisionamento de usuários de outras substâncias ilícitas (Soares, et al., 2023).

Finalmente, a fixação de um critério objetivo na quantidade de Cannabis apta a caracterizar a traficância de drogas é mais um tema sobre o qual vai se formando o consenso da corte. O Ministro Alexandre de Moraes conduziu a tese que estabelece a presunção relativa de posse para uso daquele que porta "uma faixa fixada entre 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas", salvo se presentes outros critérios caracterizadores do tráfico. Ainda que seja a forma legal sugerida pela "legislação modelo" do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), essa solução também não garante, por si só, maior equidade na aplicação da Lei 11.343/06. Parece-nos que teria maior peso para garantia de equidade na interpretação e aplicação da Lei de Drogas uma maior qualificação da produção de prova, sobretudo relativizando-se a utilização da palavra dos policiais que participaram do auto de prisão em flagrante como único fundamento de condenação. Se há traficância, cabe ao Estado apresentar provas para além do relato de seus próprios agentes.

Ainda que a maior parte dos votos já tenha sido apresentada, há tempo para que o Supremo Tribunal Federal reveja ou module sua decisão a respeito do Recurso Extraordinário 635.659 e reencontre o caminho proposto, no início do julgamento, pelo relator, Ministro Gilmar Mendes: fortalecer a saúde pública em detrimento da justiça penal na forma como o Estado lida com as pessoas que usam drogas ilícitas.

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Referências

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635.659. Relator: Min. Gilmar Mendes. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4034145. Acesso em: 18 set. 2023.

BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 18 set. 2023.

BASTOS, Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro et al. III Levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614. Acesso em: 18 set. 2023.

BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane (Orgs.). Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. Disponível em: https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20o%20Uso%20de%20Crack.pdf. Acesso em: 18 set. 2023.

Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC),link: unodc.org

SOARES, Milena Karla et al. Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de justiça comum. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/247/criterios-objetivos-no-processamento-criminal-por-trafico-de-drogas-natureza-e-quantidade-de-drogas-apreendidas-nos-processos-dos-tribunais-estaduais-de-justica-comum. Acesso em: 18 set. 2023.