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Texto do jurista italiano Piero Calamandrei debate a distração dos juízes como motivo de nulidade do julgamento

A câmara judicante não está legalmente composta quando integrada por um membro continuadamente incapaz de seguir o desenvolvimento do julgamento, e que, por via de consequência, o sono contínuo do juiz poderia ser arguido como motivo de nulidade da sentença em decorrência da violação do princípio da oralidade e da irregular composição da turma julgadora.

Da Redação

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Atualizado às 07:57

Sonolência

Texto do jurista italiano Piero Calamandrei debate a distração dos juízes como motivo de nulidade do julgamento

Um texto do jurista italiano Piero Calamandrei, traduzido por José Rogério Cruz e Tucci, discute a distração dos juízes como motivo de nulidade do julgamento.

O texto informa que tal questão foi amplamente analisada na Alemanha pela Reichsgericht, Supremo Tribunal do Império, que "patenteou que a câmara judicante não está legalmente composta quando integrada por um membro continuadamente incapaz de seguir o desenvolvimento do julgamento, e que, por via de consequência, o sono contínuo do juiz poderia ser arguido como motivo de nulidade da sentença em decorrência da violação do princípio da oralidade e da irregular composição da turma julgadora".

Na conclusão, o autor surpreende ao propor uma maneira sensata e sagaz para regular a questão sem precisar recorrer à Alta Corte.

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A distração dos juízes como motivo de nulidade do julgamento1

Piero Calamandrei*

Mais de uma vez foi seriamente examinada na Alemanha, e levada até à decisão do Supremo Tribunal do Império, a questão da relevância jurídica do sopor dos juízes durante o julgamento: discutiu-se se o cânone fundamental da oralidade, que reclama a presença de todos os componentes da turma julgadora durante os atos do julgamento, resta violado quando um dos juízes, embora fisicamente presente, busca refúgio naquela doce evasão psíquica que é o sono.

Em um primeiro momento a Reichsgericht entendia que o sono de um ou mais juízes durante os debates não poderia ser invocado (mesmo se documentado) como motivo de nulidade da sentença; todavia, em época posterior, por uma decisão de 22 de janeiro de 1922 (RGESt., LX, 63), patenteou que a câmara judicante não está legalmente composta quando integrada por um membro continuadamente incapaz de seguir o desenvolvimento do julgamento, e que, por via de consequência, o sono contínuo do juiz poderia ser argüido como motivo de nulidade da sentença em decorrência da violação do princípio da oralidade e da irregular composição da turma julgadora.

Advertia, outrossim, a Reichsgericht que não bastava para verificar-se tal nulidade o fato de um dos seus integrantes dar sinais de momentânea sonolência ou ressonar: isto porque o bocejo, se ocorre apenas uma vez (o que, infelizmente, pode acontecer a todos), não é suficiente para demonstrar a impossibilidade continuada de prosseguir-se a discussão.

Agora a questão foi reapresentada a Reichsgericht nos mesmos termos jurídicos, mas retratando hipótese um tanto diferente: não se tratava mais de um juiz adormecido, mas de um julgador que, durante os debates, ao invés de estar atento, encontrava-se imerso em outra atividade (imaginemos, para sermos otimistas, que se tratasse de atividade do ofício).

Desta vez a Reichsgericht, por uma decisão, estampada no Deutsche Rechtspflege, 1937, p. 29, entendeu que não se afigura possível controlar o grau de atenção que os juízes prestam à discussão da causa, e que a sua possível distração não pode ser invocada como motivo de nulidade do julgamento.

Todavia, essa orientação não satisfaz Trommer ("Schlafende oder übermüdete Schöffen und Geschworene", in ZA, 1938, 95), ao afirmar que não se coaduna ela com os princípios do nacional-socialismo, em atenção aos quais os presidentes das turmas julgadoras deveriam, segundo ele, durante as respectivas sessões, impedir qualquer outra ocupação dos juízes senão aquela de ouvir os debates, e, ainda, obstar a que as discussões se tornem extremamente enfadonhas.

Certo, esta derradeira decisão do Supremo Tribunal do Império, que parece reconhecer a liberdade dos juízes de ocuparem-se com outras tarefas durante o julgamento, e considerar os advogados como gente inoportuna que serve para disturbar, com alta voz, os seus próprios pensamentos, delineia-se um tanto perigosa: e me faz lembrar de um quadro, que creio ter visto em alguma galeria estrangeira, no qual um desconhecido pintor primitivo alemão retratou, com uma certa barroca ingenuidade caricatural, os componentes de uma sessão, não sei se judiciária ou acadêmica, que, enquanto um exaltado orador discorre perante eles, procuram, cada um a seu modo, distrair-se e passar tempo: é possível ver dois, que, nas opostas extremidades da sala, jogam arremesso com um grande livro muito bem encadernado; e um outro que, com sua espátula, sobre o ombro de seu vizinho adormecido, tenta obstinadamente espetar uma mosca que lhe incomoda; e um quarto que, em pé, treina esgrima voltado para a parede; e, ainda, um quinto, o presidente, que, com terna atenção, apoiado nos braços de sua alta cadeira, acaricia e alimenta um fantástico animal coberto de escamas e penas, meio faisão e meio serpente.

Concluindo: deve-se incomodar a Corte Suprema para discutir essas pequenas questões de tato e boa educação? Entre nós, quando o juiz está para reclinar a cabeça, o esperto advogado aumenta a voz, e aquele, ágil e prontamente, se recompõe; e quando o julgador encontra-se distraído, o causídico interrompe a sua sustentação, e o magistrado, sentindo o inesperado silêncio, logo compreende, e rapidamente se coloca atento...

São coisas que se resolvem caso a caso, com um gesto ou com uma pausa, sem necessidade de polêmicas teóricas ou de recorrer-se contra a decisão.

Para regular estes pequenos entendimentos entre advogados e juízes basta o bom senso: e, depois, mais amigos do que antes!

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1 Publicado na Rivista di Diritto Processuale Civile, 1938, pp. 255-256, trad. de José Rogério Cruz e Tucci.

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