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Resultado do sorteio da obra "Onde os Pombos Dormem"

Trata-se de uma obra com temas atuais tratados de forma bem-humorada, com uma linguagem original.

Da Redação

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Atualizado em 6 de junho de 2016 12:40

Paula Mandel reúne alguns contos em "Onde os Pombos Dormem" (Benfazeja - 61p.). Sua escrita é fluída, leve, peculiar, com um toque de ironia, mas sem perder o senso da realidade.

Os textos descompromissados vão dos pensamentos psicanalistas de Lacan até o autor dos Lusíadas. E ainda complementa seus pensamentos com teorias de Freud, Nietzsche e Schopenhauer.

Os personagens de seus contos enfrentam conflitos internos universais de uma forma realista, inquieta e inquietante.

Uma mulher abandonada, um vizinho psicopata, uma mãe em crise de identidade, um escritor diante de um dilema moral, um casal à procura de privacidade, uma filha diante do abandono do pai homossexual, entre outros, são personagens que inspiram empatia por suas reflexões honestas.

Confira na íntegra o conto "Onde os Pombos Dormem" :

Uma casa infestada de pragas a minha cabeça. No forro o barulho de asas. Asas batendo como se pudessem erguer teto cérebro colunas alicerce. Eu todo. O barulho alado numa casa de vigas podres. Vigas cruzadas em caminhos túneis escavados nas meninges do teto.

Quando o desejo arrulha alto, trato de escondê-lo. E me escondo junto. Eu todo. Não é pra lá que devemos ir? É sim. É pra onde vamos. Praquele lugar escuro e sujo. Onde nos abrigamos do frio e do terror da noite. Fugindo dos predadores e dos primos ratos. E o uivo do vento faz tremer as calhas, mas não entra. Onde o medo é nudez e também cobertor. E a ideia do dia é só mais um fantasma. Lá mesmo, onde dormem os pombos. Onde medo e desejo dão as mãos. Onde matar morrer nascer são apenas verbos. Onde não há julgamento e o tempo é círculo.

O meu impulso cru é pombo asqueroso. E depois do recalcamento é pombo escondido. Asqueroso ainda. Porque nenhuma ideia-desejo pode ser maior que seu dono e, quando acontece, vitória da loucura. Tudo isso enquanto finjo dormir, enquanto agarro e prendo o final da noite nas masmorras das minhas pestanas.

Nesses segundos da manhã nascida ele se levanta. O fio de baba escorre da boca e pousa macio na fronha. Um verme na marca de maçã que sua bochecha deixou no travesseiro. Ele tosse fundo. Fundo demais pra superficialidade de suas ideias. Mas não tão fundo quanto o lodo em que o pesquei. Lodo profundo em que pesco peixes frescos fresquinhos às quartas-feiras com minha vara de pescar movida a viagra.

Não esgrimo mais. Tremor das mãos roubou a precisão dos movimentos. E os troféus da prateleira espetam meu orgulho. Assim como a máscara e o sabre pendurados na parede do quarto. Ideia tola de ex-amante arquiteto, achou que seria decorativo. Museu. Tremor das mãos impedem que o sabre fique reto. Parece chiste. Esgrimista brocha. Em campeonato e na cama.

Não esgrimo mais, por isso virei pescador de fresquinhos no lodo da quarta-feira com minha vara flácida. Atrás do Detran a feira de fresquinhos da quarta. Pesco nádegas. Analiso fundilhos escamas ossos cartilagens dos meus fresquinhos.

Pequenos deleites de um velho pederasta. Migalhas para o membro movido a viagra. Seus músculos e cabelos e pelos dourados e coxas firmes balestrando e estocando minha decrepitude. Dois oponentes na esgrima, sua juventude contra minha podridão.

E o fresquinho desta quarta-feira entra no banheiro. Som de água escorrendo. Lavando músculos cabelos pelos dourados.

Queria comê-lo inteiro. Não só o cu o pau a boca e os cantinhos. Quero engolir tudo. Digerir a alma e o tempo que lhe resta, sobretudo este. Quero o tempo dele pra mim. Como selvagem que mastiga o oponente para herdar sua coragem, quero devorar o ponteiro para bater as horas do seu relógio. O ponteiro ereto no meio de suas pernas. As pernas do fresquinho da quarta-feira que pesquei com minha vara flácida movida a viagra. Uma casa infestada de pragas a minha cabeça.

Desejo arrulhando em mim. Pombo asqueroso.

O barulho de asas farfalhando nos caminhos túneis escavados nas meninges do meu teto. Dessa vez as asas vão levantar o teto as vigas. Eu todo. Porque pombo asqueroso também quer voar.

Meus olhos procuram o sabre. Museu espetando meu orgulho. Hora da reviravolta. Meus dedos abraçam a empunhadura da arma. Como uma punheta afiada. Entro no banheiro. Em guarda, ensaio um primeiro movimento, encurralando o fresquinho da quarta-feira. Ainda consigo. Sei que consigo. Uma estocada certeira em seu coração. Ainda consigo. Ainda dotado de destreza na técnica milenar do combate-arte. Sabia. Ainda consigo. Fresquinho escorrega no chuveiro e cai no chão de ponteiro ereto.

Um leve volteio do punho e os testículos foram arrancados. Espetei a iguaria na ponta do sabre e levei à boca. Difícil mastigar. Viscosidade de jaboticaba com travo de banane verte. Digno do La Casserole. Agora o pênis. Corpo esponjoso me lembrou o Suntory, onde rodeávamos o tepan regados a saquê importado. Eu e meu grupo de velhos pederastas agora mortos. Peças de museu como o sabre pendurado em minha parede, ideia tola de ex-amante arquiteto. Eu e grupo de pederastas de museu jantávamos no Suntory, melhor restaurante japonês da cidade. Jantávamos em todos os melhores restaurantes da cidade. Todos museus. Corpo esponjoso em consistência de robata de lula, mas com o ferro terroso do foi gras. A pele sobressalente do saco escrotal depilada, mas ainda rugosa, lembra um coq au vin do La Cocagne. Saudades do maître e dos escargots escondidos que trazia nas surubas do Maksud Plaza. Peças de museu, como meu sabre.

Uma casa infestada de pragas a minha cabeça.

Barulho de água cortada no chuveiro aguou meu devaneio. Devaneio ralo abaixo.

Fresquinho da quarta-feira abre a porta do banheiro, volta à cama sacudindo os cabelos fartos, na boca um touché de sorriso, E aí, vovô, ainda na cama? Aguenta mais uma?

Escondo pombo junto com o orgulho o sabre a vara mole. Escondidos naquele lugar escuro e sujo. Onde o medo é nudez e também cobertor. E a ideia do dia é só mais um fantasma. Lá mesmo, onde matar morrer nascer são apenas verbos. Onde não há julgamento e o tempo é círculo. Lá mesmo, onde os pombos dormem.

Sobre a autora :

Paula Mandel mora em SP. É escritora com textos publicados em revistas e veículos literários. Atualmente estuda psicanálise, mas em suas muitas vidas já escreveu petições, um livro, poemas e até seu epitáfio. Sua única redundância é escrever. É também mãe de dois filhos, com quem compartilha histórias e versinhos, todos os dias, desde que nasceram e até que completem 45 anos. No mínimo...



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Ganhador :

Henrique Fiuza Cichetto, de Santa Cruz do Rio Pardo/SP