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Ministério Público obtém decisão contra lei que restringia transporte público gratuito aos idosos de São Vicente

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Da Redação

quinta-feira, 8 de junho de 2006

Atualizado às 08:27


Ônibus gratuito

Ministério Público obtém decisão contra lei que restringia transporte público gratuito aos idosos de São Vicente


O Ministério Público de São Paulo obteve, no dia 5/5, decisão judicial que impede a prefeitura de São Vicente (litoral paulista) de exigir o cadastro prévio dos idosos para utilizar gratuitamente o serviço de transporte de lotações.


A inscrição obrigatória dos idosos estava prevista na lei municipal 1.660-A, e restringia o transporte gratuito dos idosos somente aos que estivessem "devidamente identificados" na Secretaria Municipal de Transporte.


A lei, considerada inconstitucional, limitava também em dois o número máximo de idosos por viagem.


"A lei municipal não pode criar um documento especial para que o idoso possa ingressar gratuitamente nos veículos de transporte coletivo urbano nem limitar o número de idosos por viagem", afirma o Promotor de Justiça Fernando Reverendo Vidal Akaoui, autor da ação.


A decisão da Justiça (íntegra abaixo), além de derrubar as duas restrições, fixa a multa diária de R$ 1 mil por idoso que não puder exercer seu direito ao transporte gratuito.


Íntegra da decisão:

Vistos.

Trata-se de ação civil pública proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO em face do MUNICÍPIO DE SÃO VICENTE visando a condenação em obrigação de fazer e não-fazer para garantia dos direitos fundamentais dos idosos quanto ao transporte público na comarca.

Aduz em síntese que a lei municipal 1660-A dispôs, quanto ao transporte coletivo de passageiros em lotação, que podem ser transportados no máximo 2 idosos com mais de 60 anos por viagem, impondo ainda cadastramento dos beneficiários e expedição de documento específico para utilização do serviço por parte da municipalidade. Entende que tais regras ferem a Constituição Federal e normas federais atinentes à espécie.

Pede a condenação da ré em obrigação de não fazer, consistente em se abster de aplicar o disposto na lei municipal citada com relação ao número de idosos a serem transportados e bem assim quanto a exigência de documento específico. Pede ainda condenação em obrigação de fazer, consistente em garantir acesso irrestrito de idosos, inclusive sem apresentação de documento específico mencionado na citada lei municipal. Tutela antecipada concedida a fls. 25/27.

Citada, a ré apresentou contestação (fls. 42/45). Na oportunidade argumentou em síntese que a Constituição Federal em momento algum utilizou a expressão idoso, prevendo que aos maiores de 65 anos seria garantida a gratuidade nos transportes. Igualmente o fez o Estatuto do Idoso.

Entende que a lei municipal não está restringindo, mas ampliando o direito dos idosos, ao considerar que os maiores de 60 anos terão o direito a vigem gratuita. Sustenta que a municipalidade tem a faculdade e a discricionariedade para impor requisitos à concessão da gratuidade.

Conclui que os maiores de 60 anos e menores de 65 é que são o alvo da norma, podendo gozar dos benefícios se atendidos os requisitos da lei municipal, e, portanto, não há violação às normas citadas pelo autor.

O autor, em réplica (fls. 47/50), procurou afastar um a um os argumentos trilhados pela ré em sua contestação, com destaque para o fato de que o Estatuto do Idoso considerou idoso pessoas com idade igual ou maior a 60 anos. Pleiteou pelo julgamento antecipado da lide. É o que de importante havia a relatar.

Passo a decidir.

O feito comporta julgamento antecipado, nos exatos termos do artigo 330, do Código de Processo Civil. É de direito a questão, não havendo necessidade de produção de outras provas em audiência a par das já produzidas nos autos, as quais permitem suficientes elementos de convicção para o julgamento da demanda.

Vejamos, pois, as normas atinentes ao tema, a fim de verificar se a discricionariedade administrativa constitui óbice ao conhecimento e julgamento do presente feito. Assim é que a Constituição Federal, em seu artigo 230, afirma o direito dos idosos, inclusive defesa de sua dignidade e bem estar. Igualmente seu parágrafo segundo dispõe sobre a gratuidade nos transportes coletivos urbanos aos maiores de 65 anos. Também o chamado Estatuto do idoso trata da matéria; afirma ser destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (artigo 1º).

Mais adiante, em seu artigo 39, capítulo X, trata em específico do transporte aos idosos, dispondo ser este gratuito aos maiores de 65 anos (artigo 39, "caput"). O parágrafo primeiro afirma que para ter acesso a tal gratuidade basta que o idoso apresente qualquer documento que faça prova de sua idade. Em seu parágrafo terceiro dispõe que no caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 e 65 anos a lei municipal poderá dispor sobre as condições para o exercício da gratuidade.

O artigo 42, do Estatuto do Idoso, assegura prioridade do idoso no embarque no sistema de transporte coletivo. Ora. Assim colocadas as normas de regência.

Vamos em frente.

Ao que parece, a Lei Maior determina de forma específica que a gratuidade nos transportes urbanos é restrita aos maiores de 65 anos. O Estatuto do Idoso, a par de se dizer destinado a regular os direitos dos maiores de 60 anos, dispõe em específico em seu capítulo X ("Do Transporte") que este deve ser gratuito aos maiores de 65 anos, podendo a lei municipal dispor sobre condições para gratuidade para os compreendidos na faixa etária entre 60 e 65 anos (artigo 39, p. 3º).

Há disposição específica dentro da regulação geral do transporte para os idosos. E, sabe-se, a norma especial prevalece sobre a geral.

A gratuidade ilimitada, decorrente de simples apresentação de documento comprobatório de idade é tratada em norma específica: somente aos maiores de 65 anos. E a Constituição Federal assim o dispõe expressamente.

Então extrai-se que aos maiores de 65 anos a gratuidade é garantida por norma constitucional, repetida em lei federal (o chamado Estatuto do Idoso, artigo 39, "caput"). Para estes (maiores de 65 anos) deve haver a gratuidade, de forma impositiva, sem espaço à discricionariedade administrativa ou quaisquer outras condições.

Ademais, para os maiores de 65 anos, ainda dispõe o Estatuto do Idoso (artigo 39, p. 1º) que para ter acesso a gratuidade, devem apenas apresentar documento que comprove sua idade. Ou seja: para os maiores de 65 anos o direito à gratuidade é condicionado tão somente a apresentação de qualquer documento que comprove sua idade; mais nada. Comprovada a idade, não podem ser impostos óbices relativos a número de idosos a serem transportados ou mesmo cadastramento perante a municipalidade. Este o regime jurídico aplicável aos maiores de 65 anos, no que diz respeito ao transporte.

Contudo, convenha-se, tanto a Lei Maior quanto o Estatuto do Idoso, em consonância, determinam este direito apenas ao maior de 65 anos. O Estatuto do Idoso, contudo, veio a ampliar este benefício, determinando que aqueles cuja faixa etária esteja situada entre 60 e 65 anos podem ter direito a gratuidade, desde que obedecidas condições impostas em lei municipal. Pois bem. Ao que parece, então, o município poderia impor as condições ora objeto do presente feito, com relação às pessoas com faixa etária entre 60 e 65 anos.

Contudo, o artigo 22, p. 1º, inciso II e p. 2º, de referida lei municipal, têm sua redação em desconformidade com as normas já citadas. Sim, porque "idosos com mais de 60 anos" abarca os que tenham mais de 65 anos também. Bem por isso não se pode dar a interpretação pretendida pela municipalidade.

A restrição - se cabível - há de ser unicamente aos maiores de 60 anos, até os 65 anos; não simplesmente "maiores de 60 anos". Vamos deixar claro: a lei municipal diz que "idoso com mais de 60 anos" podem gozar da gratuidade, desde que cumprindo com as condições ali impostas.

Não poderia fazê-lo por abarcar também os maiores de 65 anos, que ali estão incluídos. Aí que de discricionaridade não se fala. A lei (e a Lei Maior) impõe uma conduta; nem se vá interpretar de forma completamente bizarra que ao município é dado fazer o que bem entender; a norma impõe a gratuidade vinculada apenas a apresentação de qualquer documento comprobatório da idade aos maiores de 65 anos.Já por aí, por não haver na referida lei municipal qualquer distinção, no mínimo a parcial procedência já é de rigor.

Não há invasão de um dos Poderes em outro quando exercendo sua função típica o Judiciário entende divergente do mandamento legal superior certa conduta administrativa ou norma local. Aparentemente, não foi ao Poder Judiciário que competiu a escolha; menos ainda ao Executivo: a lei o fez - e notadamente o fez a Lei Maior. E ao fazê-lo retirou das mãos da administração a discricionariedade e entregou ao Judiciário a possibilidade concreta de exigir-lhe o cumprimento.

Ademais, "Se o Estado brasileiro está obrigado, segundo a própria Constituição, a construir uma sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e ainda a promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.º da CF), os fins da jurisdição devem refletir estas idéias" (RT 808/370) - grifei. E não é outro o sentido desta decisão: compelir a Administração ao cumprimento de seus deveres sociais, constitucional e legalmente assegurados. A jurisdição deve ser acima de tudo efetiva; este o sentido da presente decisão. E respeitosamente às opiniões em contrário, entendo não haver óbice à estipulação de multa cominatória ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer por parte de entes públicos.

O espírito da lei é o de buscar e dotar de efetividade as decisões jurisdicionais, tendência, aliás, em franco e largo crescimento. Nesse sentido, já decidiu o C. STJ: "As 'asteintes' podem ser fixadas pelo juiz de ofício, mesmo sendo contra pessoa jurídica de direito público, que ficará obrigada a suportá-las caso não cumpra a obrigação de fazer no prazo estipulado" (STJ, 6ª Turma, REsp 201.378-SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 1.6.99, não conheceram v.u. DJU 21.6.99) - grifei.

Nem poderia ser outro o entendimento.

A se partir da premissa do princípio básico e informativo da efetividade dos provimentos jurisdicionais, entendo acertado que haja mesmo multa pecuniária (sem prejuízo da eventual responsabilização pessoal do próprio administrador, com, aliás, é de lei).

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE o pedido formulado pelo Ministério Público de São Paulo contra o Estado de São Paulo e o faço para:

a) condenar a ré a abster-se de aplicar o conteúdo da norma (artigo 22, p. 1º, inciso II e p. 2º, da lei municipal 1660-A) com relação aos idosos de 65 anos em diante;

b) condenar a ré à fiscalização dos veículos de lotação para a manutenção da regra constitucional de acesso aos idosos de 65 anos de idade em diante independentemente das restrições de já citada norma;

c) fixar para o caso de descumprimento multa diária no importe de R$ 1.000,00 por idoso que não puder exercer seu direito ao transporte gratuito nos termos acima citados;

d) por fim, deixo de fixar condenação em honorários, uma vez que o autor da demanda é o Ministério Público, já remunerado por sua atuação pelo próprio Estado.

Oficie-se ao E.

Tribunal de Justiça dando conta desta decisão, para os fins que entender cabíveis, diante da notícia de agravo de instrumento interposto. Mantenho a tutela anteriormente concedida, em parte, consoante dispositivo desta decisão, restrita aos idosos de 65 anos ou mais.

Transitada em julgado, arquivem-se. P. R. I. C.

São Vicente, 5 de maio de 2006.

EDUARDO HIPÓLITO HADDAD

Juiz Substituto

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