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Jurisdição e competência

Moraes adia julgamento sobre atos de guerra cometidos no Brasil

O debate central do STF se dá em torno da possibilidade da Justiça brasileira julgar atos de guerra de outro país cometidos em território nacional

Da Redação

quarta-feira, 3 de março de 2021

Atualizado às 11:24

Pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes suspendeu o debate iniciado, no plenário virtual do STF, sobre a competência da Justiça brasileira julgar Estado soberano estrangeiro por atos de guerra cometidos dentro das fronteiras nacionais. O alcance da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro em relação a ato de império, que decorre do exercício direto da soberania estatal, ofensivo ao direito internacional da pessoa humana é o tema 944 de Repercussão Geral no Supremo.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Caso

O caso concreto trata de ação de ressarcimento de danos materiais e morais de autoria de descendentes de um tripulante de barco pesqueiro morto em decorrência de ataque de submarino alemão no mar territorial brasileiro, nas proximidades da Costa de Cabo Frio, em julho de 1943, durante a II Guerra Mundial.

O juízo da 14ª vara Federal do RJ declinou de sua competência e julgou extinto o processo, sem resolução do mérito. STJ negou seguimento ao recurso lá impetrado sob o argumento de que não cabe ao Judiciário brasileiro apreciar pedido de indenização contra o Estado estrangeiro. Para o STJ, em caso de ato de guerra, a imunidade de jurisdição é absoluta.

Em 2017, o plenário do STF reconheceu a repercussão geral da matéria. À época, o ministro Edson Fachin, relator, salientou que a controvérsia é inédita no âmbito da Corte. "É evidente a índole constitucional da matéria por envolver questões do Estado de Direito brasileiro em relação à sociedade internacional".

Para Fachin, a repercussão geral da matéria justifica-se do ponto de vista jurídico pela inédita controvérsia na Corte em relação à aplicação da imunidade. No âmbito social pela responsabilização de Estados por atos atentatórios à dignidade da pessoa humana e, no campo político, pela divergência de dois valores aos quais a República Federativa do Brasil comprometeu-se a seguir nas relações internacionais: a prevalência dos direitos humanos e a igualdade entre os Estados.

Direitos humanos

Sobre a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro no Direito brasileiro, o relator destacou que, no Brasil, a matéria é redigida por direito costumeiro, pois o país ainda não se vinculou à convenção das Nações Unidas. Assinalou, ainda que a Alemanha, país detentor do submarino que atacou a embarcação, também não é signatária da convenção.

"Eis, porém, a distinção do presente caso, controvérsia inédita no âmbito desta Suprema Corte, porquanto se coloca em questão a derrotabilidade de regra imunizante de jurisdição em relação a atos de império por Estado soberano, por conta de graves delitos praticados em confronto à proteção internacional da pessoa natural em espacialidade brasileira, à luz da igualdade jurídica entre os Estados na sociedade internacional e, especificamente, da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais."

O magistrado discorreu que a imunidade de jurisdição não é regra absoluta, e por essa razão assinalou que a relativização da imunidade de jurisdição estatal em caso de atos ilícitos praticado no território do foro em violação a direitos humanos permanece possível.

O ministro destacou que, no caso concreto, pescadores civis, trabalhadores, alheios à guerra, foram vítimas de um ato aleatório, e caso a jurisdição brasileira não tivesse competência para julgar o fato, a família nada poderia fazer para que o agressor fosse responsabilizado. S. Exa. afirmou que "negar esse direito ou exigir que a vítima busque a jurisdição estrangeira é reservar-lhe a anomia, o não-direito, o "estado de exceção".

""Um crime é um crime." A imunidade, assim, deve ceder diante de um ato atentatório aos direitos humanos. Não se trata, como visto, de uma regra absoluta."

O ministro entendeu que o Supremo, em respeito às regras constitucionais que conferem prevalência dos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas relações internacionais, deve afastar a imunidade de jurisdição no caso.

O relator concluiu por dar provimento ao RE para afastar a imunidade de jurisdição da Alemanha, e assim, anular a sentença que extinguiu o processo originário sem resolução de mérito. Votou pela fixação da seguinte tese:

"Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição."

Até o momento, os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli e Cármen Lúcia seguiram o relator.

Leia o voto do relator. 

Divergência

O ministro Gilmar Mendes, em entendimento contrário ao relator, destacou que a imunidade de jurisdição parte do pressuposto de que, se um Estado reconhece a soberania do outro, este não pode ser coagido a se submeter a julgamento decorrente da soberania daquele, porque, em regra, se submeter à jurisdição equivale, em tese, a relativizar sua própria soberania.

Para o ministro, deve ser mantida a integridade da jurisprudência do STF, a qual tem mantido a imunidade absoluta em se tratando de atos de império, como no caso em análise, sob pena de criação de incidente diplomático internacional.

"Ante o exposto, peço vênia ao relator para votar pelo desprovimento do recurso extraordinário, mantendo o acórdão do STJ, ao reconhecer a imunidade absoluta de jurisdição de Estados estrangeiros."

Confira a íntegra do voto.

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O ministro Marco Aurélio também entendeu contrariamente ao relator. Para S. Exa. seria, inclusive, inexistente a repercussão geral do tema.

O magistrado consubstanciou que o STF, durante décadas, consagrou entendimento no sentido do afastamento de qualquer exceção à regra da imunidade dos Estados estrangeiros, espelhando prática costumeira no direito internacional, considerada a ausência de norma a vincular o Brasil.

"Ainda que o Supremo tenha ressalvado exceção à imunidade jurisdicional para os atos de gestão, não é viável, no plano da lógica, a tentativa de relativizar a jurisprudência consagrada pelo Tribunal, no que tange aos atos de império, mesmo envolvendo afronta a direitos humanos em contexto de guerra."

Marco Aurélio explicou que, ou bem se tem a imunidade absoluta considerando ato de império, ou não se tem. Destacou que, sob sua óptica, "é impróprio cogitar a existência de terceiro grupo, no qual enquadrados atos que implicaram violação de direitos humanos, aos argumentos de que estes consubstanciam categoria especial a reclamar responsabilidade estatal".

O ministro propôs a fixação da tese:

"É absoluta a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro considerado ato de império praticado em contexto de guerra, ainda que em jogo violação de direitos humanos."

Leia o voto na íntegra. 

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