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Migalheiros em pauta

História de migalheiro: Com trator, juiz derruba cadeia e solta preso

No quadro Migalheiros em pauta, conheça boas histórias do juiz aposentado Ronaldo Tovani.

Da Redação

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Atualizado às 10:38

Imagine que, a fim de garantir a liberdade de um cidadão, um juiz "empunha" um trator e derruba logo a cadeia toda. Parece história de migalheiro... E é! O caso aconteceu na cidade de Ipuiuna, cidade do interior de Minas pertencente à comarca de Caldas.  

O juiz era Ronaldo Tovani, a quem tivemos a honra de entrevistar no primeiro episódio do nosso novo quadro, Migalheiros em pauta, por meio do qual conheceremos um pouco mais os leitores que nos acompanham diuturnamente.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Tovani conta que, por essas e outras, figurou algumas vezes no banco dos réus. Em nenhuma delas, deixa claro, foi processado por fatos que arranharam sua honra. Tratam-se, conforme esclarece, de episódios em que ele "simplesmente contestou o sistema".

O mesmo juiz, hoje aposentado, tem uma sentença famosa, escrita na década de 80 em versos de poesia. O caso era de um ladrão de galinhas, que não pôde devolver o fruto do furto porque as penosas já haviam ido parar na panela.

Pelas boas histórias e pelas críticas contundentes - não lhe escapam o sistema penal, políticos, e até, veja, o Migalhas -, o migalheiro Ronaldo Tovani já esteve também no sofá do Jô Soares. Ele, agora, nos concede uma conversa exclusiva e imperdível.

Assista:

Ronaldo Tovani nos conta um curioso caso que aconteceu na década de 80, quando era juiz de Direito em Minas Gerais. O caso era de um homem que furtou duas galinhas para comer, e por isso estava preso.

O inspirado magistrado acabou por escrever a sentença em versos, não sem aproveitar a deixa para fazer críticas ao governo, citando escândalos da época em que os envolvidos nunca foram presos. Ele citou também o polêmico sequestro do vice-presidente do Bradesco, o banqueiro Beltran Martinez, ocorrido em 86. "Desde quando furto é crime / neste Brasil de bandidos?"

Leia, na íntegra: 

No dia cinco de outubro

Do ano ainda fluente

Em Carmo da Cachoeira Terra de boa gente

Ocorreu um fato inédito

Que me deixou descontente.

O jovem Alceu da Costa

Conhecido por "Rolinha"

Aproveitando a madrugada

Resolveu sair da linha

Subtraindo de outrem

Duas saborosas galinhas.

Apanhando um saco plástico

Que ali mesmo encontrou

O agente muito esperto

Escondeu o que furtou

Deixando o local do crime

Da maneira como entrou.

O senhor Gabriel Osório

Homem de muito tato

Notando que havia sido

A vítima do grave ato

Procurou a autoridade

Para relatar-lhe o fato.

Ante a notícia do crime

A polícia diligente

Tomou as dores de Osório

E formou seu contingente

Um cabo e dois soldados

E quem sabe até um tenente.

Assim é que o aparato

Da Polícia Militar

Atendendo a ordem expressa

Do Delegado titular

Não pensou em outra coisa

Senão em capturar.

E depois de algum trabalho

O larápio foi encontrado

Num bar foi capturado

Não esboçou reação

Sendo conduzido então

À frente do Delegado.

Perguntado pelo furto

Que havia cometido

Respondeu Alceu da Costa

Bastante extrovertido

Desde quando furto é crime

Neste Brasil de bandidos?

Ante tão forte argumento

Calou-se o delegado

Mas por dever do seu cargo

O flagrante foi lavrado

Recolhendo à cadeia

Aquele pobre coitado.

E hoje passado um mês

De ocorrida a prisão

Chega-me às mãos o inquérito

Que me parte o coração

Solto ou deixo preso

Esse mísero ladrão?

Soltá-lo é decisão

Que a nossa lei refuta

Pois todos sabem que a lei

É prá pobre, preto e puta...

Por isso peço a Deus

Que norteie minha conduta.

É muito justa a lição

Do pai destas Alterosas.

Não deve ficar na prisão

Quem furtou duas penosas,

Se lá também não estão presos

Pessoas bem mais charmosas.

Afinal não é tão grave

Aquilo que Alceu fez

Pois nunca foi do governo

Nem seqüestrou o Martinez

E muito menos do gás

Participou alguma vez.

Desta forma é que concedo

A esse homem da simplória

Com base no CPP

Liberdade provisória

Para que volte para casa

E passe a viver na glória.

Se virar homem honesto

E sair dessa sua trilha

Permaneça em Cachoeira

Ao lado de sua família

Devendo, se ao contrário,

Mudar-se para Brasília.

A sentença fez tanto sucesso que virou notícia de jornal. O Jornal do Brasil de 1º de dezembro de 1987 noticiou o fato:

 (Imagem: Arquivo)

Jornal do Brasil - 1º de dezembro de 1987(Imagem: Arquivo)

O mesmo fez a Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, que em 15 de dezembro daquele mesmo ano publicou os versos na íntegra:

 (Imagem: Arquivo)

Tribuna da Imprensa - Rio de Janeiro - 15 de dezembro de 1987(Imagem: Arquivo)

E essas não foram as únicas saborosas histórias contadas por Ronaldo Tovani ao Migalhas. Em episódio que prova que é migalheiro antigo, em 2014 o então juiz nos enviou uma carta comentando reportagem na qual reunimos curiosos "causos" do Judiciário contados pelos nossos leitores. Ele, então, nos mandou esta: 

"Melhor do que essas eu tenho a minha para contar. Fui delegado, depois promotor de Justiça e por último juiz de Direito, cargo este que exerci durante 13 anos. Lá pelos idos de 1990/1991, na condição de juiz de uma cidadezinha chamada Caldas, no sul de Minas Gerais, estava eu a interrogar um réu, de nome Antonio da Silva Sobrinho, acusado de ter praticado lesões corporais de natureza leve em um amigo, durante uma briga decorrente de uma discussão boba.

Minha agenda, naquele dia, estava lotada, e o tal réu, a cada pergunta que eu fazia 'esticava' imensamente a resposta. Terminado o interrogatório e eu já irritado com a demora havida, entreguei o 'termo de interrogatório' para o réu e disse-lhe secamente: leia e assine.

O réu demorou uma imensidão de tempo para ler e depois me perguntou: assino aonde? E eu respondi, apontando, assine aqui. E aí nova pergunta dele: assino o meu nome? Eu, mais irritado ainda, respondi-lhe: não, assine o meu. E qual o nome de V. Exa.?, perguntou ele. Eu prontamente respondi: Antonio da Silva Sobrinho (em verdade este era o nome dele; o meu é Ronaldo Tovani). Poxa!, respondeu ele. O seu nome é igual o meu! E assinou, devolvendo-me a folha (diante do riso de todos, inclusive dele, que até hoje não sei se sabia por que também riu)."

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