MIGALHAS QUENTES

  1. Home >
  2. Quentes >
  3. Justiça Federal anula política de cotas para pessoas trans na FURG
Políticas afirmativas

Justiça Federal anula política de cotas para pessoas trans na FURG

Magistrado entendeu que a política violou os princípios da legalidade, impessoalidade e isonomia por ausência de motivação adequada, dados verificáveis e critérios objetivos de seleção.

Da Redação

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Atualizado às 17:46

A Justiça Federal do Rio Grande do Sul anulou a política de cotas voltadas a pessoas transgênero criada pela FURG - Universidade Federal do Rio Grande. Em sentença proferida em 25 de julho, o juiz Federal substituto Gessiel Pinheiro de Paiva, da 2ª vara Federal de Rio Grande, declarou a nulidade da resolução CONSUN/FURG 11/22 e dos editais dos processos seletivos de 2023, 2024 e 2025. 

Segundo o magistrado, embora ações afirmativas destinadas à população trans sejam juridicamente possíveis, a política adotada pela FURG foi considerada inválida por carecer de fundamentação adequada, basear-se em dados não verificáveis, não apresentar vínculo claro com o problema que se propunha enfrentar e adotar critérios de seleção subjetivos. Esses elementos, segundo a decisão, afrontam os princípios da legalidade, impessoalidade, isonomia e capacidade.

 (Imagem: Altemir Vianna/FURG)

Justiça Federal anula política de cotas para pessoas trans na FURG.(Imagem: Altemir Vianna/FURG)

A ação popular foi ajuizada por dois advogados que questionaram a legalidade da política adotada pela FURG para reservar vagas a pessoas trans nos cursos de graduação e pós-graduação.

Alegaram ausência de respaldo legal, falta de correlação entre a medida e a desigualdade enfrentada por esse grupo, e afirmaram que a universidade não teria competência normativa para criar esse tipo de ação afirmativa.

Motivação insuficiente e critérios subjetivos

O juiz considerou a motivação apresentada pela FURG inadequada, especialmente por não demonstrar relação direta entre o benefício concedido e os problemas efetivamente enfrentados pela população trans. Embora reconheça a dificuldade de obtenção de dados públicos sobre esse grupo, o magistrado enfatizou que tal ausência não autoriza conclusões generalizadas ou decisões administrativas sem lastro empírico:

"É verdade que a falta de dados públicos oficiais dificulta a instituição de políticas afirmativas em favor dos transexuais e travestis, mas justamente a ausência de dados oficiais não pode levar à conclusão de que tal população é desfavorecida em relação à média da população no que diz respeito à possibilidade de ingressar na universidade, através dos concursos regulares."

Com base nos próprios dados apresentados pela universidade, o juiz destacou que cerca de 90% da população trans estaria contemplada pelas cotas sociais atualmente vigentes e mais de 50% pelas cotas raciais. Apenas 28% teria escolaridade compatível com o ingresso no ensino superior, o que restringiria significativamente o alcance efetivo da política criada.

Portanto, afirmou que "as cotas raciais e sociais já abrangeriam uma grande parte da população trans, não havendo justificativa aparente para que venham a ser ainda mais favorecidos ou favorecidos de forma diversa do que tais grupos."

Além disso, a sentença reprovou o uso de dados sobre violência, exclusão social e marginalização para justificar o ingresso em política de cotas universitárias. Embora reconheça a gravidade desses fenômenos, o juiz pontuou que tais fatores não guardam nexo direto com o acesso ao ensino superior:

"Questões como falta de acesso a políticas públicas de saúde, evasão escolar nos ensinos fundamental e básico, violência doméstica e outros tipos de violência de gênero, etc., embora alarmantes, graves e que devem ser objeto de atenção pelo Estado, não possuem correlação lógica com o acesso à universidade, e não podem servir de motivação para a criação de políticas afirmativas nesse sentido."

Dados 

A decisão também criticou distorções nos dados utilizados para embasar a política, como a tentativa de qualificar a região Sul como mais violenta para pessoas trans com base em um percentual isolado de assassinatos. O juiz refutou essa leitura, apontando que a população da região representa cerca de 14,7% da população brasileira, o que invalida a conclusão de que seria proporcionalmente mais perigosa.

"O que se percebe na motivação apresentada pelo proponente é um aglomerado de dados sem maior correspondência correlacional com a política afirmativa adotada pela FURG com base nessa motivação, e ainda, a distorção e uso de tais dados sem uma necessária valoração lógica e sistêmica."

O magistrado alertou que pesquisas que embasam políticas públicas devem seguir metodologia rigorosa, com busca de imparcialidade e fundamentação técnica, e advertiu contra o uso seletivo de estatísticas.

"Dados recortados podem ser utilizados para validar o que se quiser, basta se trazer à tona os dados que respaldem o que se quer defender e se omitir aqueles que não respaldam. Toda pesquisa destinada a embasar políticas públicas deve possuir uma metodologia baseada na busca da objetividade e na imparcialidade em seus resultados."

Por fim, alertou sobre o viés cognitivo, que pode direcionar as conclusões de um estudo, mesmo que de forma inconsciente, pelas preferências pessoais, crenças e experiências prévias do pesquisador. 

"Decisões judiciais, elaboração de leis e políticas públicas frequentemente se apoiam em pesquisas científicas, (...) Se essas pesquisas forem intrinsecamente enviesadas pelas preferências dos pesquisadores (veja-se que no presente caso todas as pesquisas que embasam a ação afirmativa foram produzidaspor entidades manifestamente interessadas em determinados resultados), a validade das conclusões e, consequentemente, a justiça e a eficácia das medidas adotadas podem ser comprometidas."

Avaliação subjetiva e falta de base normativa

Outro ponto criticado foi o modelo de seleção adotado nos editais, que atribuía 40% da nota a um memorial descritivo com base em vivências pessoais, restando apenas a redação como critério objetivo. Para o juiz, essa forma de avaliação viola os princípios da impessoalidade e da capacidade, comprometendo a isonomia do processo seletivo.

A universidade também invocou tratados internacionais e princípios constitucionais para justificar a política, mas, segundo o magistrado, não foi demonstrada a conexão normativa entre esses instrumentos e a criação de vagas exclusivas com critérios distintos:

"Apesar demencionar diversos tratados internacionais e outras normas infralegais, não especificou em qual parte específica decada tratado ou norma justificaria a criação de vagas exclusivas para pessoas trans e travestis na universidadefederal, com meio de acesso diverso dos demais candidatos, e que não observa o princípio da impessoalidade naavaliação, nem o princípio da capacidade no acesso, como exige a Constituição."

O juiz associou essa exigência à regra do art. 489, §1º, do CPC, que exige que qualquer fundamentação - judicial ou administrativa - esteja vinculada à realidade concreta e não se limite à simples citação de normas.

Conclusão

Com base nesses elementos, o juiz declarou a nulidade da resolução CONSUN/FURG 11/22 e dos editais dos anos de 2023 a 2025. A política foi considerada inválida por falta de motivação adequada, ausência de correlação com o problema alegado e utilização de dados não verificáveis.

O vício foi classificado como hipótese de ilegalidade nos termos do art. 2º, parágrafo único, "d", da lei da ação popular.

A decisão afastou a aplicação da teoria do fato consumado, por considerar que os cursos ainda estão em andamento e que a política estava sob questionamento desde sua origem. Os alunos já matriculados poderão concluir as disciplinas em que estão inscritos, e os créditos obtidos poderão ser aproveitados em eventual reingresso por via regular.

Por fim, foi concedida tutela de urgência para impedir a realização de novos processos seletivos com base na política anulada. O juiz ressaltou, contudo, que a universidade poderá propor nova ação afirmativa voltada à população trans, desde que esteja amparada em dados oficiais, com critérios objetivos e correlação comprovada com a realidade enfrentada pelo grupo beneficiado.

Leia a decisão.

Patrocínio

Patrocínio

FREDERICO SOUZA HALABI HORTA MACIEL SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA

FREDERICO SOUZA HALABI HORTA MACIEL SOCIEDADE INDIVIDUAL DE ADVOCACIA

CCM Advocacia de Apoio
CCM Advocacia de Apoio

Escritório Carvalho Silva & Apoio Jurídico. Fundado na cidade de Marabá pela advogada Regiana de Carvalho Silva, atua com proposito de entregar para cada cliente uma advocacia diferenciada, eficaz e inovadora. Buscamos através do trabalho em equipe construir dia após dia uma relação solida...