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Voto de Minerva

Entenda como a CF/88 deu ao Judiciário legitimidade para invalidar leis

Transição democrática redesenhou o equilíbrio entre Poderes e deu ao Judiciário protagonismo no controle de constitucionalidade.

Da Redação

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Atualizado às 07:11

"A história é uma resposta a perguntas que o homem de hoje necessariamente se põe"
Lucien Febvre
Historiador francês 

Há algum tempo, a atuação do Poder Judiciário vem sendo contestada e tornou-se, cada vez mais, pauta pública, despertando interesse não apenas de especialistas, mas também do público leigo.

Entre os inúmeros enfoques possíveis, destaca-se a discussão sobre até que ponto o Poder Executivo, nas diferentes esferas federativas, pode, por ato próprio, decretar a invalidade de uma lei e como, ao longo do tempo, essa prerrogativa deixou de ser exercida diretamente, passando a depender de decisão do Judiciário.

Trocando em miúdos: por que, em determinado momento histórico, foi possível que o Executivo sustasse atos do Legislativo sem passar pelo crivo judicial e, hoje, isso já não acontece?

Recorreremos à história, tomando como ponto de partida uma discussão ocorrida no plenário do STF, para compreender parte das atribuições atuais do Judiciário.

Experiência tocantinese

Na última quinta-feira, 14, o STF entendeu, por unanimidade, que um decreto do governador do Tocantins seria inconstitucional. A medida pretendia afastar a validade de lei que aumentava o valor do subsídio dos delegados da Polícia Civil do Estado.

Os ministros entenderam que, ainda que a referida lei fosse inconstitucional, o chefe do Executivo não poderia sustá-la por decreto. Deveria, na verdade, recorrer ao Judiciário para afastá-la.

O debate, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, acabou se transformando em uma aula sobre a construção histórica da jurisdição constitucional no Brasil, e sobre as razões pelas quais, hoje, a palavra final cabe ao Judiciário.

Veja o momento:

Centralismo do Executivo

Segundo afirmou Moraes, a Constituição de 1967, com as alterações de 1969, forjada durante o regime militar, admitia, em caráter excepcional, que governadores suspendessem leis que afetassem apenas a administração pública.

Essa possibilidade refletia dois fatores: a concentração de poder no Executivo, em um contexto em que presidentes e governadores eram eleitos indiretamente, e a fragilidade da jurisdição constitucional.

À época, o controle concentrado de constitucionalidade - isto é, o julgamento, por um único tribunal, da validade de leis ou atos normativos em tese, com efeito geral (erga omnes) - era incipiente no Brasil.

Seu principal mecanismo era o controle abstrato, introduzido pela EC 16, de 1965, que permitia a análise da constitucionalidade de uma lei sem ligação com um caso concreto.

No entanto, o alcance desse instrumento era extremamente restrito: apenas o Procurador-Geral da República podia propor a ação, e o cargo era de livre nomeação e exoneração pelo presidente da República, funcionando, na prática, como posto de confiança do Executivo.

Assim, as Constituições de 1967 e 1969, mantiveram esse desenho, com pequenas alterações herdadas da Carta de 1946.

A Constituição de 1967, por exemplo, aboliu a competência originária dos Tribunais de Justiça para o controle direto de leis ou atos municipais que contrariassem a Constituição estadual e, pelo art. 11, § 2º, transferiu para o presidente da República (e não mais para o Senado Federal) a competência para suspender atos estaduais em representação interventiva.2

Já a Constituição de 1969, no art. 15, § 3º, d, admitiu o controle da constitucionalidade de lei municipal que atentasse contra princípios sensíveis previstos nas Constituições estaduais, seguindo o modelo Federal.2

E, com a Emenda Constitucional 7/77, foi expressamente prevista a possibilidade de concessão de medida cautelar (liminar) nas representações promovidas pelo PGR, conforme o art. 119, I, p.2

Mesmo quando o Supremo declarava uma lei inconstitucional, a decisão não produzia automaticamente efeitos gerais.

Era necessário que o Senado Federal, ou, em alguns casos, o próprio presidente da República, editasse ato formal suspendendo a norma, o que muitas vezes não ocorria por decisão política. Assim, leis incompatíveis com a Constituição podiam continuar vigendo por tempo indeterminado.3

Resistência

Durante o julgamento, nesta quinta-feira, 14, ministra Cármen Lúcia recordou que, mesmo sob a Constituição de 1969, o STF já fazia um movimento de resistência contra as arbitrariedades do governo militar.

O cenário se agravou com o AI-5, editado em 13/12/1968. Inspirado na Doutrina de Segurança Nacional, o AI-5 atribuía ao presidente poderes quase absolutos: fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos, suspender direitos políticos, decretar estado de sítio sem restrições e, especialmente, suspender a garantia do HC para crimes contra a segurança nacional.

A medida atingiu em cheio o Judiciário. Ao impedir o STF de apreciar recursos de acusados enquadrados na legislação de segurança nacional, o regime retirou da Corte uma de suas funções constitucionais mais tradicionais, o controle da legalidade das prisões e dos atos do Executivo.

Pouco depois, a repressão alcançou diretamente a cúpula do Supremo: três ministros, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, foram aposentados compulsoriamente.

Outros dois, Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, renunciaram em protesto. 

 (Imagem: Correio Braziliense)

Já o ministro Adaucto Lúcio Cardoso, apesar de ter sido nomeado pelo próprio regime militar, protagonizou alguns gestos contra o establishment.

Em 1968, por exemplo, votou pela concessão de HC ao líder estudantil Vladimir Palmeira e ao ex-ministro Darcy Ribeiro, contrariando a orientação mais restritiva que se consolidava na Corte.

O episódio mais emblemático, porém, ocorreu em 1971, quando Cardoso renunciou ao cargo em protesto contra uma medida que, a seu ver, feria a própria razão de ser do Supremo: o controle de constitucionalidade das leis.

Na ocasião, o STF discutia a impugnação do decreto-lei 1.077, editado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, que instituía censura prévia a livros e periódicos.

O MDB havia ajuizado arguição de inconstitucionalidade, mas o PGR - figura de confiança do Executivo e único legitimado à época para propor ações diretas - arquivou o pedido, alegando ser descabido.

Inconformado, o MDB apresentou a reclamação 849, sustentando que caberia ao STF, e não ao Procurador-Geral, decidir se uma ação era admissível.

O julgamento não chegou ao mérito da censura: por maioria, os ministros validaram a prerrogativa exclusiva do Procurador-Geral de decidir previamente se a ação seguiria ao plenário.

Cardoso foi voto vencido, defendendo que esse filtro comprometia a independência da Corte e submetia o controle abstrato de constitucionalidade ao crivo político do Executivo.

A renúncia de Cardoso não se deu por discordância quanto à censura em si, mas pela convicção de que a Suprema Corte não poderia abdicar de decidir sobre a validade de leis e atos normativos.

 (Imagem: O Estado de S. Paulo)

Na prática, esse arranjo concentrava nas mãos do Procurador-Geral, escolhido e demissível ad nutum pelo presidente, o poder de bloquear qualquer ação de inconstitucionalidade, restringindo severamente o alcance do controle concentrado previsto na Constituição de 1967 e moldado pela EC 16/65.

O caso ilustra como, sob a ditadura, a jurisdição constitucional não apenas era limitada pelo desenho legal, mas também vulnerável a interferências políticas diretas, esvaziando a função contramajoritária do Supremo.

A renúncia de Adaucto foi rememorada por Cármen Lúcia, na sessão plenária:

"[...] Se pediu ao Supremo que, então, mandasse que o Procurador-Geral fosse obrigado a trazer qualquer representação, o que levou a renúncia ao cargo, numa sessão neste Supremo, de um dos ministros. Exatamente por conta disso, ele disse: 'se eu não posso julgar a inconstitucionalidade, e isto é o Supremo, eu não quero também continuar aqui'."

Novo balanço de Poderes

Com a transição democrática, a Constituição de 1988 mudou radicalmente esse cenário.

Ela fortaleceu a independência do PGR, instituiu mandato e exigiu aprovação pelo Senado, criou novos instrumentos de controle, como a ADPF e a ADC, e, sobretudo, ampliou o rol de legitimados para propor ações no STF.

Passaram a ter acesso direto à Corte governadores, mesas legislativas, entidades de classe nacionais, partidos políticos, entre outros.

Na prática, isso significa que, se um presidente ou governador deseja afastar a aplicação de uma lei já aprovada, há dois caminhos legítimos:

  • Controle preventivo: antes da promulgação, vetar o projeto aprovado pelo Legislativo, seja por inconstitucionalidade (veto jurídico) ou por contrariedade ao interesse público (veto político). Esse veto, no entanto, pode ser derrubado pelo Legislativo.
  • Controle repressivo: após a lei entrar em vigor, provocar o Judiciário para que declare a inconstitucionalidade da norma. No plano Federal, o presidente pode propor ADIn ou ADC no STF; no plano estadual, o governador pode acionar o Tribunal de Justiça local. Em ambos os casos, é possível pedir medida cautelar para suspender de imediato os efeitos da lei até a decisão final.

Esse novo desenho tornou o Brasil um dos países com maior acesso à jurisdição constitucional no mundo.

O caso tocantinense, julgado nesta quinta-feira, 14, ilustra um fenômeno consolidado desde 1988: a centralidade do Judiciário, especialmente do STF, na resolução de conflitos constitucionais.

Com ampla legitimidade ativa, histórico de proteção da jurisdição e desenho institucional que afasta interferências políticas diretas, a Corte se tornou o espaço para dirimir, em última instância, disputas sobre a validade das leis.

Diante de tantos questionamentos sobre os limites de atuação do terceiro Poder da República, especialmente no que se refere às Cortes constitucionais, é importante lembrar e reconhecer que essa posição não surgiu de forma repentina, tampouco foi conquistada pela força.

Um longo processo histórico moldou e distribuiu as atribuições de cada um dos Poderes, hoje consolidadas nos dispositivos da Constituição Federal.

Como todo processo histórico, esse percurso não é estático: continua a se desenrolar até os dias atuais. Portanto, não se trata aqui de simplesmente "dar a mão à palmatória" e aceitar o status quo dos poderes constituídos, mas de compreender o que levou cada um deles a ser legitimado para exercer suas funções.

Críticas são bem-vindas, propostas também, desde que apoiadas no substrato histórico, que tanto pode nos ensinar.

Referências

1 - CARVALHO, Lucas Borges de. A censura política à imprensa na ditadura militar: fundamentos e controvérsias. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.
2 - MARQUES, Andreo Aleksandro Nobre. Evolução do instituto do controle de constitucionalidade no Brasil: da Constituição Imperial à Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 43, n. 171, p. 17, 2006.
3 - SLAIBI FILHO, Nagib. Breve história do controle de constitucionalidade. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 20, p. 284-319, 2002.

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