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Direito de Família

Morte de Vaqueirinho por uma leoa expõe impactos da perda do poder familiar

Caso do jovem morto em zoológico da Paraíba evidencia limites, critérios legais e efeitos da destituição do poder familiar sobre crianças e adolescentes.

Da Redação

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado às 06:25

No último dia 30/11, a morte de Gerson de Melo Machado, conhecido como Vaqueirinho, aos 19 anos, após entrar no recinto de uma leoa em João Pessoa, trouxe para o centro do debate público uma das intervenções mais delicadas do Estado na vida privada: a perda do poder familiar.

A última carta escrita por ele ainda adolescente, intitulada "Desejo do Coração", foi divulgada nas redes sociais pela conselheira tutelar Verônica Oliveira.

Nela o jovem expressou anseio por afeto, por visitas da mãe, por amor - desejos básicos que contrastam com uma trajetória marcada por abandono, extrema vulnerabilidade social e demora no diagnóstico de esquizofrenia.

A mãe de Gerson, também diagnosticada com transtorno mental, teve destituído o poder familiar em relação a ele e aos outros quatro filhos, que acabaram adotados por famílias distintas.

O caso, longe de ser excepcional, ilumina as ambiguidades e limites de um sistema jurídico que atua sob o signo da proteção, mas cujas decisões produzem efeitos profundos e irreversíveis na vida de crianças e adolescentes.

 (Imagem: Reprodução/Instagram)

Conselheira tutelar publicou em seu perfil no Instagram a última carta escrita por "Vaqueirinho"(Imagem: Reprodução/Instagram)

O que é o poder famliar?

Do ponto de vista legal, o poder familiar é exercido pelo pai e pela mãe em igualdade de condições, conforme dispõe o art. 21 do ECA.

A legislação assegura a qualquer um deles o direito de recorrer ao Judiciário em caso de divergência quanto ao seu exercício, reforçando que se trata de um instituto jurídico regido por deveres e controlado pelo Estado.

O CC (arts. 1.630 a 1.638), a seu turno, estabelece que os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores, competindo aos pais, independentemente de estarem casados, em união estável ou separados, o seu pleno exercício.

Entre as atribuições que integram o poder familiar estão:

  • dirigir a criação e a educação dos filhos;
  • exercer a guarda unilateral ou compartilhada;
  • representá-los judicial e extrajudicialmente;
  • conceder ou negar consentimento para casamento, viagens ao exterior ou mudança de residência;
  • nomear tutor em determinadas hipóteses; e
  • exigir obediência, respeito e os serviços próprios da idade e condição.

O que não causa a perda do poder familiar?

A dissolução do casamento ou da união estável não altera essas relações, tampouco o fato de o pai ou a mãe contrair novas núpcias, hipótese em que o exercício do poder familiar permanece inalterado em relação aos filhos do relacionamento anterior.

O ECA (art. 23) estabelece limites claros à atuação do Judiciário ao afirmar que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.

Nessas situações, não existindo outro fundamento que autorize a medida, a criança ou o adolescente deve ser mantido na família de origem, a qual deve ser obrigatoriamente incluída em serviços e programas oficiais de proteção, apoio e promoção.

O mesmo dispositivo prevê que a condenação criminal do pai ou da mãe, por si só, não implica a destituição do poder familiar, exceto nas hipóteses específicas de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão praticado contra o outro genitor igualmente titular do poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente.

Quando pode haver a suspensão ou perda do poder familiar?

A perda e a suspensão do poder familiar dependem sempre de decisão judicial, proferida em procedimento contraditório, e somente podem ser decretadas nas hipóteses previstas na legislação civil ou diante do descumprimento injustificado dos deveres inerentes ao exercício do poder familiar.

O CC disciplina as causas de extinção, entre elas a morte dos pais ou do filho, a emancipação, a maioridade, a adoção e a decisão judicial fundada nos casos expressamente previstos em lei.

A legislação civil também autoriza o juiz a suspender o poder familiar quando o pai ou a mãe abusar de sua autoridade, faltar aos deveres inerentes à função ou arruinar os bens dos filhos, sempre que a medida se mostrar necessária à segurança do menor e de seus haveres.

O exercício do poder familiar pode ainda ser suspenso quando houver condenação criminal por sentença irrecorrível em virtude de crime cuja pena exceda dois anos de prisão.

Já a perda do poder familiar, por sua natureza definitiva, está restrita a hipóteses taxativamente previstas no CC. Nos termos do art. 1.638, perderá o poder familiar o pai ou a mãe que:

  • castigar imoderadamente o filho;
  • deixar o filho em abandono;
  • praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
  • incidir, reiteradamente, nas faltas que justificariam a suspensão do poder familiar;
  • entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção.

A lei 13.715/18 ampliou essas hipóteses ao prever, também, a perda do poder familiar nos casos de crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão praticados:

  •  contra o outro genitor igualmente titular do poder familiar;
  •  contra filho, filha ou outro descendente.

Nessas situações, estão incluídos crimes como homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando envolverem violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher, bem como estupro, estupro de vulnerável ou outros crimes contra a dignidade sexual.

A mesma lei alterou o CP para prever, como efeito da condenação, a incapacidade para o exercício do poder familiar nessas hipóteses.

Como vem decidindo o STJ?

A Corte da Cidadania tem reafirmado que a perda do poder familiar constitui medida extrema e somente se justifica quando demonstrada, de forma concreta e atual, a inviabilidade de manutenção do vínculo jurídico entre pais e filhos.

O tribunal tem destacado que decisões dessa natureza não podem se apoiar exclusivamente em fatos pretéritos, vulnerabilidade econômica ou avaliações abstratas, devendo considerar a situação presente da família, os pareceres técnicos e, sempre que possível, a vontade da própria criança ou adolescente.

Em 2024, a 3ª turma do STJ restituiu o poder familiar a uma mãe em relação aos seus três filhos, revertendo decisão que havia decretado a destituição com base em circunstâncias passadas.

No caso, o pai havia perdido o poder familiar por violações aos direitos dos menores, enquanto a mãe teve o exercício suspenso temporariamente, com previsão de retomada gradual. A instância ordinária, contudo, decretou também a destituição materna, sob alegação de negligência.

Ao reformar a decisão, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, ressaltou que o ECA prioriza a família natural e que a colocação em família substituta deve ser excepcional.

Em 2023, o mesmo colegiado autorizou o início imediato do procedimento para colocação de três crianças em família substituta após mais de cinco anos de acolhimento institucional, diante de sucessivos episódios de negligência, abandono e recusa dos pais em aderir às orientações da rede de proteção.

O relator, ministro Moura Ribeiro, destacou que o longo período de abrigamento é ilegal e prejudicial aos interesses dos menores, lembrando que o ECA impõe prazo máximo para a conclusão do procedimento de perda ou suspensão do poder familiar.

Esses entendimentos dialogam com precedente da 4ª turma, de 2019, no qual o STJ concedeu ordem em HC para impedir o acolhimento institucional de uma bebê, garantindo sua permanência com os guardiães até decisão definitiva das instâncias ordinárias.

O relator, ministro Luis Felipe Salomão, ressaltou que o acolhimento institucional é medida excepcional e provisória e deve ceder quando houver alternativa que melhor atenda ao interesse da criança.

No mesmo ano, a 4ª turma também reconheceu a possibilidade de adoção unilateral sem a extinção absoluta do poder familiar do pai biológico, desde que ausentes hipóteses legais de destituição e preservado o melhor interesse da criança.

E no caso de Vaqueirinho?

No caso de Gerson de Melo Machado, a destituição do poder familiar em relação à mãe não pode ter decorrido da pobreza nem, isoladamente, do diagnóstico de esquizofrenia da genitora.

A legislação é expressa ao vedar a carência material como fundamento suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar e não autoriza a destituição automática em razão de transtornos mentais.

O que a lei admite é a intervenção judicial quando há abandono ou descumprimento injustificado dos deveres parentais, aferidos a partir da situação concreta vivida pela criança ou adolescente.

Reportagem de O Globo mostrou que, ao longo da infância e da adolescência de Gerson, houve falhas reiteradas no reconhecimento de sua condição psíquica e na articulação de uma rede de proteção capaz de garantir cuidado contínuo.

Em vídeos divulgados após a morte do jovem, a conselheira tutelar Verônica Oliveira afirmou que, apesar de laudos e sinais evidentes de transtorno mental, o Estado frequentemente tratava o caso apenas como "problema comportamental" durante os períodos de acolhimento institucional.

Segundo ela, foram cerca de dez anos de atuação do Conselho Tutelar tentando garantir os direitos de Gerson, sem que o jovem recebesse o tratamento adequado.

Ao O Globo, Verônica relatou que profissionais da saúde resistiam em reconhecer a gravidade do quadro psiquiátrico, o que impactava diretamente as decisões sobre acolhimento e acompanhamento.

A ausência de uma resposta consistente do Estado acabou por empurrar Gerson para sucessivas institucionalizações, sem solução definitiva, cenário que, à luz da legislação, pode caracterizar abandono não apenas familiar, mas também institucional.

Esse conjunto de elementos ajuda a compreender por que, no plano jurídico, a perda do poder familiar foi decretada.

Após a destituição, o ECA prevê a adoção de medidas de proteção, como acolhimento institucional ou familiar e, quando possível, a colocação em família extensa ou substituta.

No caso dos irmãos de Gerson, a adoção foi o caminho encontrado. Para ele, contudo, o percurso foi marcado por uma sequência de instituições - acolhimentos, unidades socioeducativas, presídios e serviços de saúde mental - sem que se consolidasse uma solução definitiva de pertencimento e cuidado.

A história de Vaqueirinho evidencia que a destituição do poder familiar, embora juridicamente concebida como instrumento de proteção, não é suficiente por si só.

Sem uma rede efetiva de saúde mental, assistência social e acompanhamento continuado, a intervenção judicial corre o risco de se tornar apenas mais uma etapa formal em trajetórias já atravessadas pelo abandono, pela institucionalização e pela exclusão.

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