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Responsabilidade civil dos bancos por cheques devolvidos de seus clientes

Ontem divulgamos que a 4ª Câmara de Direito Civil do TJ/SC condenou uma instituição financeira a ressarcir os danos materiais causados a terceiro, que recebeu cheques sem fundo passados por correntista.

Da Redação

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Atualizado às 09:22


"Tese discutível"

Responsabilidade civil dos bancos por cheques devolvidos de seus clientes

Ontem divulgamos que a 4ª Câmara de Direito Civil do TJ/SC condenou uma instituição financeira a ressarcir os danos materiais causados a terceiro, que recebeu cheques sem fundo passados por correntista.

Para o relator da matéria, desembargador Eládio Torret Rocha, o banco prestou um serviço defeituoso ao ter concedido cheques a cliente que não tinha o "respaldo monetário". Ele também teria, segundo o informe, considerado "um contra-senso os bancos lucrarem com a devolução de cheques e se eximirem da indenização aos beneficiários" (Apelação Cível n. 2005.038361-7).

Hoje, o advogado Pery Saraiva Neto traz decisão semelhante, proferida pela 1ª Câmara de Direito Civil do TJ, relator Carlos Prudêncio (Apelação Cível n. 2005.005907-7).

No caso, informa o migalheiro, o banco requerido foi condenado (em apelação que, provida, reformou a sentença de primeiro grau) a reparar os danos causados ao terceiro beneficiário de cheque emitido por cliente do banco, em importância equivalente ao valor do cheque.

Para o professor de Direito Comercial III - Títulos de Crédito na UNISUL, tal tema é relevante. "O enfoque da decisão, naturalmente, não se dá à luz do direito cambiário, mas com amparo em princípios constitucionais e do direito do consumidor. A tese é discutível, especialmente por romper com a previsão legal (Lei do Cheque) de que o banco sacado não é responsável pelo pagamento do título, já que não assume obrigação cambiária."

Para o professor, "a argumentação desenvolvida no julgado (v. abaixo) é bastante coerente, com o seguinte destaque: não se trata de ação cambiária de cobrança, mas ação de reparação de danos contra a instituição financeira, em razão dos (de)efeitos dos produtos e serviços que disponibiliza, sobre os quais, bem sabemos, não mantém grandes controles."

___________________

Apelação Cível n. 2005.005907-7, de Brusque
Relator: Des. Carlos Prudêncio

APELAÇÃO CÍVEL. MODERNIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. GARANTIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO NORTE DE TODA A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.

"Neste momento histórico de fortes tensões, os autores atribuem ao Poder Judiciário a função de garantir um Estado Democrático de Direito, o que supõe cumprir o Direito Positivo de forma compromissada com os interesses da população brasileira, colocando o respeito à Constituição como o norte de toda a prestação jurisdicional. Daí resultará, então, um Poder direcionado à efetivação de Direitos e não, ao abandono dos cidadãos e cidadãs a sua própria sorte." (Prudêncio, Carlos; Rosa de Andrade, Lédio; Faria, José Eduardo. Modernização do Poder Judiciário, a Justiça do Futuro. Tubarão: Editorial Studium, 2003, p. 31 e 32)

REALIDADE ATUAL. RESPONSABILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO EM NÃO PERMITIR ABUSOS CONTRA O INTERESSE COLETIVO.

"No Brasil, vigorou uma ditadura imposta por generais mandatários até a eleição de Tancredo Neves e, de lá para cá, persistem os ranços ditatoriais que estão impregnados na precária cultura brasileira, pois os que mandam continuam entendendo que o povo se mantém em sua prolongada passividade.

Temos que romper com essa letargia e isso só acontecerá se o judiciário cumprir rigorosamente seu papel, que é o de expurgar das leis e dos costumes referidos atos ditatoriais, determinando que as autoridades públicas ? infelizmente aí incluídos os banqueiros, pois estes mandam mais que aqueles devido à simbiose que há entre ambos ? se acordem para o fato de que a grande transformação social por que passa o mundo não permite que a maioria numérica com direitos democráticos se submeta aos poucos que ainda estão impregnados de conceitos da monarquia absolutista.

Penso estar na hora de enfrentarmos uma realidade atual, qual seja a da supremacia das teses das instituições financeiras em detrimento da interpretação as leis. Acredito que devemos repensar as decisões que interfiram no setor econômico, até mesmo para darmos uma resposta aos empresários e à população em geral no sentido de que o Poder judiciário não permitirá abusos contra quem quer que seja e que somente a lei,
aliada ao seu fim social, prevalecerá. Nada mais de obedecermos resoluções, portarias e demais atos administrativos em detrimento da lei. É de se atender ao mínimo as expectativas e os anseios sociais no que pertine ao asseguramento, dos direitos garantidos na Constituição Federal, notadamente no que diz respeito ao princípio do devido processo legal." (AI n. 1999.017295-3, Relator Des. Carlos Prudêncio, DJ de 25-5-2000)

DIREITO DO CONSUMIDOR. DIREITO FUNDAMENTAL. ART. 5, INC. XXXII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROTEÇÃO PELO ESTADO.

A Constituição Federal estabelece no art. 5, XXXII, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Erigiu, portanto, essa defesa ao patamar de direito fundamental e, assim o fazendo, impôs também ao Poder Judiciário, quando intérprete e aplicador da legislação infraconstitucional, o dever de considerar e valorar essa hierarquia constitucional quando o consumidor estiver em litígio.

ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO DA DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 170, INC. V, DA CF. INTERPRETAÇÃO AMPLIADA.

"A par de consubstanciar, a defesa do consumidor, um modismo modernizante do capitalismo ? a ideologia do consumo contemporizada (a regra "acumulai, acumulai" impõe o ditame "consumi, consumi", agora porém sob proteção jurídica de quem
consome) ? afeta todo o exercício da atividade econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da leitura do parágrafo único, II do art. 175. O caráter constitucional conformador da ordem econômica, deste com os demais princípios que tenho cogitado, é inquestionável." (Grau, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, interpretação e crítica. Editora Malheiros, 9 ed., p. 225)

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. SUJEIÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ÀS CHAMADAS OPERAÇÕES SECUNDÁRIAS. ENTENDIMENTO DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

"1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. "Consumidor", para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua abrangência." (STF, ADI 2591, relator Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJ de 29-09-2006, p. 031)

LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. EXEGESE DOS ARTS. 2, 17 E 29. EXTENSÃO DO CONCEITO DE CONSUMIDOR. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. FORNECEDOR. VÍCIO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. OPERAÇÕES BANCÁRIAS ACESSÓRIAS. COBRANÇA DE TAXA NA DEVOLUÇÃO DE CHEQUE. LIBERAÇÃO SEM QUALQUER CONTROLE DE TALONÁRIO. RISCO DA ATIVIDADE. ALCANÇE DO BANCO PARA RESPONDER. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA.

"Se, no sistema do CDC, todos estes "terceiros" hoje se incluem como "consumidores, consumidores stricto sensu do art. 2 (quem "utiliza um serviço"), consumidores equiparados do parágrafo único do art. 2 (coletividade de pessoas ainda que indetermináveis, que haja intervindo na relação de serviço), do art. 17 (todas as vítimas dos fatos do serviço, por exemplo os passantes na rua quando avião cai por defeito do serviço) e do art. 29 (todas as pessoas determináveis ou não expostas às praticas comerciais de oferta, contratos de adesão, publicidade, cobrança de dívidas, bancos de dados, sempre que vulneráveis in concreto), então temos que rever nossos conceitos sobre estipulações em favor de terceiro e, no processo, sobre legitimação destes terceiros para agir individual ou coletivamente". (Marques, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2002)

Revendo o conceito da legitimação, considerando o direito do consumidor como norma fundamental e princípio informador do ordenamento jurídico, é perfeitamente admissível, por meio de interpretação lógico-sistemática, considerar o recebedor de cheque sem fundo como consumidor vítima de serviço mal prestado por instituição financeira; e, por sua vez, a legitimidade passiva da casa bancária, considerada fornecedora, ao gerir as operações bancárias acessórias que revelam cunho de prestação de serviços secundários, sempre destinados a atrair clientes, principalmente com a cobrança da taxa de devolução de cheque à câmara de compensação o que evidencia, sem qualquer dúvida, a liberalidade e a ânsia desmedida do banco para, ao não impor qualquer limitação ao cliente no tocante a disponibilização de talões de cheques, cobrar mais e mais tarifas a fim de obter lucros estratosféricos.


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. INDENIZAÇÃO. CHEQUE DEVOLVIDO SEM FUNDOS. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE DEVERIA SER DILIGENTE NA LIBERAÇÃO DE CHEQUES A SEUS CLIENTES. PRODUTO DEFEITUOSO. DEFEITO POR SEU MODO DE FORNECIMENTO E OS RISCOS DA FRUIÇÃO (ART. 14, § 1º, I E II, DO CDC). DEVER DE INDENIZAR. RECURSO PROVIDO.

Estabelecida a aplicabilidade da responsabilidade civil objetiva do fornecedor, prevista no Código de Defesa do Consumidor, necessário para a sua incidência no caso concreto comprovar tão-somente a existência do dano e do nexo de causalidade, pois irrelevante a conduta (dolo ou culpa) da instituição financeira.

Ocorre dano ao consumidor, que recebe cheque sem provisão de fundos e fica privado do valor nele constante, e evidente o nexo etiológico entre este e a conduta do fornecedor de serviço, instituição financeira, que presta serviço defeituoso por seu modo de fornecimento e os riscos da fruição, quando o banco sem qualquer cuidado pela atividade que desenvolve, até para que não se eleve o risco do mercado financeiro, admite sem qualquer controle interno a liberação de vários talonários de cheques exigindo para tanto tão-somente documento de identificação (RG e CPF) e comprovante de residência, a teor do art. 14, § 1º, I e II, do Código de Defesa do Consumidor.

Dessarte, verificado o dano e o nexo causal, exsurge a responsabilidade do banco pela reparação do dano ao prestar serviço defeituoso quando libera talões de cheques sem qualquer
limitação e estes são devolvidos sem fundos.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2005.005907-7, da comarca de Brusque (2ª Vara), em que é apelante Cristiano Pires Pereira, e apelado Banco do Estado de Santa Catarina S/A - BESC:

ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Civil, por maioria de votos, dar provimento ao recurso. Custas legais. Vencida a Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, que votou no sentido de negar provimento ao recurso e manifestou o interesse de declarar voto vencido. O Desembargador Joel Figueira Júnior manifestou o desejo de declarar voto vencedor.

RELATÓRIO

Cristiano Pires Pereira propos ação de indenização por perdas e
danos contra o Banco do Estado de Santa Catarina na qual tem por objetivo receber os valores constantes de cheque emitido por cliente correntista deste que foi devolvido por insuficiência de fundos.

Ao sentenciar, o magistrado de primeiro grau julgou extinta a ação, acatando a tese de ilegitimidade passiva ad causam da instituição financeira para responder pela devolução do cheque.

Inconformado, apela o autor reafirmando a tese da obrigação do
banco à indenização dos valores constantes do cheque emitido e não pago pelo seu correntista, por força do princípio da responsabilidade social da livre iniciativa e em virtude de seu atuar negligente na concessão de talonários de cheques aos correntistas.

Argumenta que a exploração de uma atividade lucrativa deve sempre estar pautada por tal princípio fundamental, não podendo o empreendedor utilizar-se da sociedade ou da pessoa humana como meros instrumentos de captação de riquezas.

Aduz que o fornecimento de cheques constitui atrativo de clientela e meio de captação de recursos, além de propiciar a venda de seus inúmeros serviços, culminado, assim, em exagerados lucros, sendo que a falta de cautela nesse proceder atrairia a sua responsabilidades pelos títulos devolvidos.

Afirma que o banco, mediante propagandas ilusórias, força o consumo irresponsável, contribuindo sobremaneira para a inadimplência de seus correntistas, não podendo ser afastado de seu compromisso social, argüindo, também, ser necessário expurgar do cotidiano as atividades espoliativas e egoísticas, exigindo-se maior responsabilidade dos bancos, os quais contribuem, em grande parcela, para inadimplência do comércio.

Requer seja reconhecida a legitimidade do banco e, por conseqüência, a procedência do recurso para condenar o banco ao ressarcimento do prejuízo causado.

VOTO

Inicialmente, cumpre-me reiterar breves comentários por mim exarados em diversos arestos nesta Corte, por demais adequados ao caso no meu entender, antes de apreciar o mérito deste recurso, in verbis:

"No Brasil, vigorou uma ditadura imposta por Generais mandatários até a eleição de Tancredo Neves e, de lá para cá, persistem os ranços ditatoriais que estão impregnados na precária cultura brasileira, pois os que mandam continuam entendendo que o povo se mantém em sua prolongada passividade.

Temos que romper com essa letargia e isso só acontecerá se o judiciário cumprir rigorosamente seu papel, que é o de expurgar das leis e dos costumes referidos atos ditatoriais, determinando que as autoridades públicas infelizmente aí incluídos os banqueiros, pois estes mandam mais que aqueles devido à simbiose que há entre ambos se acordem para o fato de que a grande transformação social por que passa o mundo não permite que a maioria numérica com direitos democráticos se submeta aos poucos que ainda estão impregnados de conceitos da monarquia absolutista.

Acredito firmemente que o Poder Judiciário está perdendo o bonde da história ao fechar os olhos nas inúmeras vezes que chancela os atos do Executivo, e aí incluídos os banqueiros e poderosos, pois os membros daquele são meros fantoches nas mãos destes. O Judiciário está se renovando através de seus novos membros e temos que pensar seriamente que há uma pequena parcela que deposita confiança nas decisões judiciais, pois tem a certeza que um dia os dirigentes brasileiros trabalharão a favor: a) dos trinta milhões que passam fome no seu território; b) da criação de postos de trabalho; c) de segurança, habitação, saúde e educação. Mas, para isso, é necessário que todos sejam tratados igualmente e não como vemos atualmente, onde os dirigentes massacram os empresários e/ou comerciantes em favor de maiores taxas de juros e privilégios legais e jurisprudenciais em favor dos bancos, fazendo com que o povo continue a acreditar que são estes que realmente governam o Brasil.

Todos sabemos que o governo, para favorecer os bancos, é o responsável pelo fechamento de milhares de fábricas exemplo Santa Catarina e notadamente no vale do Itajaí , que nada mais representa o fechamento de milhares de postos de trabalho e o conseqüente empobrecimento dos catarinenses. A recessão está instalada no sul do Brasil há vários anos somente porque o dirigente maior do Executivo nacional pretendia reeleger-se com a bandeira da estabilização da moeda e/ou eliminação da inflação.

Penso estar na hora de enfrentarmos uma realidade atual, qual seja a da supremacia das teses das instituições financeiras em detrimento da interpretação as leis. Acredito que devemos repensar as decisões que interfiram no setor econômico, até mesmo para darmos uma resposta aos empresários e à população em geral no sentido de que o Poder judiciário não permitirá abusos contra quem quer que seja e que somente a lei, aliada ao seu fim social, prevalecerá. Nada mais de obedecermos resoluções, portarias e demais atos administrativos em detrimento da lei.

É de se atender ao mínimo as expectativas e os anseios sociais no que pertine ao asseguramento, dos direitos garantidos na Constituição Federal, notadamente no que diz respeito ao princípio do devido processo legal. (AI n. 1999.017295-3, DJ de 25-5-2000)

1 - Da defesa do consumidor à luz dos ditames constitucionais

A melhor forma de iniciar assunto sobre os direitos do consumidor é partir da Constituição Federal. Tais direitos constam em dois principais artigos. O primeiro deles, dentre os direitos e garantias fundamentais, estabelece que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (art. 5, inc. XXXII); o segundo, já ao tratar de ordem econômica e financeira, fixa como princípio "a defesa do consumidor" (art. 170, V).

Atraindo esses ditames, já tive a oportunidade de me manifestar,
juntamente com os ilustres doutrinadores Lédio Rosa Andrade, hoje Desembargador desta Corte de Justiça, e José Eduardo Faria in Modernização do Poder Judiciário. Tubarão: Editorial Studium, 2003, p. 31 e 32, que:

Neste momento histórico de fortes tensões, os autores atribuem ao Poder Judiciário a função de garantir um Estado Democrático de Direito, o que supõe cumprir o Direito Positivo de forma compromissada com os interesses da população brasileira, colocando o respeito à Constituição como o norte de toda a prestação jurisdicional. Daí resultará, então, um Poder direcionado à efetivação de Direitos e não, ao abandono dos cidadãos e cidadãs a sua própria sorte.

Ao lado, impossível não citar preciosa lição do atual ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau ao doutrinar sobre defesa do consumidor na ordem econômica:

A par de consubstanciar, a defesa do consumidor, um modismo modernizante do capitalismo ? a ideologia do consumo contemporizada (a regra "acumulai, acumulai" impõe o ditame "consumi, consumi", agora porém sob proteção jurídica de quem consome) ? afeta todo o exercício da atividade econômica, inclusive tomada a expressão em sentido amplo, como se apura da leitura do parágrafo único, II do art. 175. O caráter constitucional conformador da ordem econômica, deste com os demais princípios que tenho cogitado, é inquestionável. (A Ordem Econômica na Constituição de 1988, interpretação e crítica. Editora Malheiros, 9 ed., p. 225)

Então, o consumidor foi elevado a um sujeito possuidor de direitos fundamentais e, dessa feita, merece a completa proteção do Estado. Da mesma forma, sendo considerado princípio da ordem econômica, este também emitirá reflexos sobre o ordenamento jurídico. E é por isso que eu, como intérprete e aplicador da legislação, devo levar em consideração tais ditames quando for analisar o caso em concreto afeto a direitos do consumidor.

Diante dessas premissas, o melhor método de interpretação a ser aqui empregado é o lógico-sistemático, ou seja, aquele que recai sobre a norma jurídica considerando o lugar no qual está inserta, unida aos demais preceitos a fim de conferir homogeneidade ao sistema.

De acordo com Paulo Bonavides:

Doravante, colocados na esfera jusconstitucional, as posições se
invertem: os princípios, em grau de positivação, encabeçam o sistema, guiam e fundamentam todas as demais normas que a ordem jurídica institui e, finalmente, tendem a exercitar aquela função axiológica vazada em novos conceitos de sua relevância" (op. cit. p. 263).

A função orientadora da interpretação desenvolvida pelos princípios "decorre logicamente de sua função fundamentadora do direito. Realmente, se as leis são informadas ou fundamentadas nos princípios, então devem ser interpretadas de acordo com os mesmos, porque são eles que dão sentido às normas [rectius, regras]. Os princípios servem, pois, de guia e orientação na busca de sentido e alcance das normas [regras]" (ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. São Paulo. Atlas, 2003, p. 47). Tanto que "as normas que se contraponham aos núcleos de erradiação normativa assentados nos princípios constitucionais, perderão sua validade (no caso da eficácia diretiva) e/ou sua vigência (na hipótese de eficácia derrogatória), em face de contraste normativo com normas de estalão constitucional". (Espíndola, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 67)

O Supremo Tribunal Federal, aos poucos, vem captando essa dimensão funcional dos princípios, conforme se observa no voto do Min. Celso de Mello, proferido na PET-1458/CE (DJ 04-03-98):

O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores - que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos - introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder.

Posta a forma de interpretação, adentro ao tema. Tenho posição
firme de que não podemos centrar a fundamentação deste caso tão-somente nas velhas teorias do direito comercial, e deixar ao largo os princípios constitucionais vigentes e a inafastável carga normativa implícita que lhes são inerentes. Igualmente, se fecharmos os olhos para a realidade social e para os preceitos constitucionais, chegaremos à conclusão de que o empreendedor não está subordinado a dever de comportamento ético relativamente ao bem-estar social e aos interesses da coletividade.

Mas a Constituição Federal quer dizer mais do que isso. Ela impõe ao empreendedor o dever de observar o princípio da responsabilidade social como um princípio de natureza ética e ampla, devendo o empreendedor, como ser integrante da comunidade, atuar de forma a produzir efeitos positivos para o bem-estar social, inclusive suportando ônus para que o mercado se harmonize dentro de um círculo fechado de responsabilidades, caso contrário, estaremos remando contra um desenvolvimento social e sustentável, vale dizer, contra o desenvolvimento nacional previsto no artigo 3º, inciso II, da Constituição da República.

Reitero, aqui minha posição já externada em vários outros arestos desta Corte, o que se percebe, na atualidade, é um constante e expressivo crescimento patrimonial dos bancos e instituições financeiras, os quais, sob verdadeiros escudos legislativos, eximem-se da responsabilidade social que lhes impõe a Carta Política, alegando que têm livre autorização constitucional para empreender e produzir seus lucros.

É por isso que repito, os valores universais que informam tais direitos devem ser necessariamente observados por todos os intérpretes e aplicadores do direito, vez que todos os integrantes da sociedade, sem exceção, estão subordinados aos princípios constitucionais e à observância dos direitos fundamentais, considerando-se não só os expressamente previstos, mas também os implícitos e os decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Carta Maior (art. 5º, § 2º).

Vale lembrar que, muito embora possam existir normas infraconstitucionais cujos enunciados textuais autorizem as instituições bancárias a utilizarem-se de seus recursos de forma livre e objetivando a desenfreada produção de riquezas, tais normas só serão legitimamente interpretadas e aplicadas se de conformidade com os preceitos emanados da Constituição da República, técnica esta denominada de "hermenêutica de interpretação conforme à Constituição".

Os números da economia nacional e do mercado financeiro têm demonstrado que há um deslocamento dos recursos da população em favor dos cofres das instituições bancárias, as quais tão-somente se preocupam em proporcionar lucros aos investidores estrangeiros, o que, por si só, já denota que a política dos bancos é no sentido de, a qualquer custo, atrair os cidadãos a aderir a seus onerosos serviços.

Superado esse breve desabafo, não nego, que a tese a ser defendida neste recurso estaria contrária aos ditames do direito comercial, porquanto "O sacado de um cheque não tem, em nenhuma hipótese, qualquer obrigação cambiária. O credor do cheque não pode responsabilizar o banco sacado pela existência ou insuficiência de fundos disponíveis" (Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 16 ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 273). Nada obstante, essa exclusão não é absoluta, pois "o banco responde por ato ilícito que venha a praticar, mas não pode assumir qualquer obrigação cambial referente a cheques sacados por seus correntistas." (op. cit. p. 273)

Eis aqui o ponto nodal da questão. Tomando como rumo a própria linha de argumentação do ilustre professor de direto comercial, enfatizo que a questão em debate não será tratada sob a ótica do direito cambiário (obrigação cambial), mas sim sob o enfoque constitucional, como já definido anteriormente (princípio e direito fundamental do direito do consumidor), para responsabilizar civilmente o banco por descumprimento de um dever (vício de serviço), com a incidência do Código de Defesa do Consumidor.

2 - Da legitimidade ativa e passiva ad causam

Antes de adentrar a questão da legitimidade, mister ressaltar que está pacificada a matéria acerca da aplicação do Código de Defesa do Consumidor para as instituições financeiras, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal exarada na ADI 2591, relatada pelo Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJ de 29-9-2006,
p. 31, no sentido de que:

1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. "Consumidor", para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua abrangência.

Definiu, portanto, a Suprema Corte, ao entender pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor à instituições financeiras, que: os bancos estão incluídos no conceito de "fornecedor"; "consumidor" é toda pessoa física ou jurídica que se utiliza da atividade bancária; e atividade bancária se limita aos serviços secundários dos bancos.

Com efeito, é com base nos ditames do CDC que pretendo reconhecer a legitimidade passiva do banco para responder pela devolução de cheque sem fundo.

Outro ponto relevante que faço menção neste momento, é o fato
de estar tramitando no Congresso Nacional, agora na Comissão de Constituição e Justiça, o que atesta a possibilidade de legalização do que está aqui sendo defendido, o Projeto de Lei n. 4.780/1998, que altera a Lei n.º 7.357, de 2 de setembro de 1985, que "dispõe sobre o cheque e dá outras providências". De sua justificativa, destaco: "A emissão de cheques sem fundos é um problema bem antigo, mas assumiu dimensões alarmantes nos últimos meses, atingindo principalmente os comerciantes, que são suas grandes vítimas. A correção do problema requer que o sistema bancário tenha maior responsabilidade no processo, através do rigor nas exigências para abertura de contas e, principalmente, na entrega do talonário de cheques. Além do grande número de cheques sem fundos, o comércio vem sendo duramente atingido pela prática de sustação do pagamento. Isto porque a Lei nº 7.357, que dispõe sobre o cheque, estabelece o direito de o depositante fazer sustar o pagamento, fundado em "relevante razão de direito", a qual, porém não compete ao banco julgar (Art. 36). Desta forma, pessoas de má-fé podem facilmente sustar o pagamento de cheque, alegando falsos motivos."

Tal projeto tramita com vários apensos os quais possuem os mesmo objetivo: Projeto de lei n.º 4.864, de 2001, de autoria do Deputado Gastão Vieira; Projeto de lei n.º 5.085, de 2001, de autoria do Deputado Roberto Argenta; Projeto de lei n.º 5.340, de 2001, de autoria do Deputado Givaldo Carimbão; Projeto de lei n.º 794, de 2003, de autoria do Deputado Chico da Princesa; Projeto de lei n.º 1.087, de 2003, de autoria do Deputado Enio Bacci; Projeto de lei n.º 2.024, de 2003, de autoria do Deputado Julio Delgado; Projeto de lei nº 3.666, de 2004, de autoria do Deputado Ivan Ranzolin, Projeto de Lei nº 4.435, de 2004, de autoria da Deputada Juíza Denise Frossard, e Projeto de Lei nº 6.326, de autoria do Deputado Renato Casagrande.

Várias são as formas de se "moralizar" a indiscriminada emissão
de cheques, como se vê:

1. Projeto de lei n.º 4.864, de 2001, de autoria do Deputado Gastão Vieira: propõe a alteração da Lei do Cheque (Lei n.º 7.357, de 1985), para definir que as instituições financeiras "são responsáveis pelo pagamento dos cheques emitidos por seus correntistas até metade do valor do salário mínimo vigente". Além disso, propõe que os "emitentes de cheques sem fundos pagos pela instituição financeira na forma do disposto no caput podem ser executados pela instituição financeira", além de continuarem sujeitos "às sanções administrativas e penais cabíveis";

2. Projeto de lei n.º 5.085, de 2001, de autoria do Deputado Roberto Argenta: permite aos bancos a contratação de modalidade especial de cheques - "cheque garantido" -, e dá outras providências;

3. Projeto de lei n.º 5.340, de 2001, de autoria do Deputado Givaldo Carimbão: acrescenta parágrafo ao art. 4º da Lei n.º 7.357/85, estabelecendo a obrigatoriedade do pagamento pelos bancos, independentemente de fundos disponíveis, de cheque emitido por seus clientes;

4. Projeto de lei n.º 794, de 2003, de autoria do Deputado Chico da Princesa: obriga as instituições financeiras a honrarem, dentro do limite de garantia expresso, os cheques especiais emitidos por seus clientes; e,

5. Projeto de lei n.º 1.087, de 2003, de autoria do Deputado Enio Bacci: determina que as instituições financeiras com agências no Brasil sejam responsabilizadas, solidariamente, ao entregar talões de cheques aos clientes e dá outras providências.

6. Projeto de lei n.º 2.024, de 2003, de autoria do Deputado Julio Delgado: dispõe sobre a garantia de cheque emitido por cliente titular de conta corrente com limite de crédito rotativo.

7. Projeto de lei nº 3.666, de 2004, de autoria do Deputado Ivan Ranzolin: dispõe sobre a responsabilidade solidária das instituições bancárias na emissão de cheques.

8. Projeto de lei nº 4.435, de 2004, de autoria da Deputada Juíza Denise Frossard: dá nova redação ao parágrafo único do art. 39 e ao art. 40, e acrescenta inciso ao artigo 47, todos da Lei nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, que dispõe sobre o cheque.

9. Projeto de Lei nº 6.236, de 2005, de autoria do Deputado Renato Casagrande: acrescenta dois incisos ao parágrafo único do art. 39 e dá nova redação ao art. 40, da Lei nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, que dispõe sobre o cheque.

O projeto aguarda votação em plenário, e teve voto do seu relator pela rejeição da proposição principal e das demais a ela apensadas. Nada obstante, tal fato só demonstra a preocupação dos Congressistas com o total descontrole da emissão de cheques no País.

Como é sabença de todos, as instituições financeiras exercem vários "serviços bancários". Dentre eles o contrato de conta corrente oferece inúmeros benefícios aos correntistas, porém escondem a voracidade por lucros dos bancos.

É por meio dele que o correntista paga suas contas sem a necessidade de dinheiro, realiza operações comerciais evitando o deslocamento até outras praças, o pagamento de toda a espécie de tributos, dentre outras.

Por trás de toda essa facilidade, o banco aumenta consideravelmente a sua receita ao cobrar tarifas pelos mais variados serviços ou ao aplicar tais valores na intermediação de créditos.

Esse atrativo é utilizado pelo banco tanto para captar depósitos em dinheiro e fornecer empréstimos a terceiros, mediante cobrança de altos juros, quanto para captar clientes, os quais proporcionam os desarrazoados lucros em virtude da adesão aos onerosos e espoliativos contratos de crédito.

Ocorre que, para se proceder a abertura de um contrato de conta corrente é necessário tão-somente que o interessado compareça a uma agência bancária munido de documento de identidade, o cadastro de pessoas físicas - CPF e comprovante de residência, isso provavelmente sem qualquer análise de eventual registros nos órgãos de proteção do crédito, exigidos somente para o contrato de "cheque especial".

Feito isso, sem qualquer outra garantia ou acuidade do banco, o, agora correntista, já é possuidor de um talonário de cheques e passível, também, de verdadeira pressão psicológica do banco para que ele adquira, a fim de atingir as metas de contratação de correntistas, os mais diversos tipos de serviços, o que contribui para a negligência e a imprudência na oferta que, ao fim e ao cabo, surtirá efeitos negativos ao mercado empresarial e de consumo.

Nesse ínterim, sabe-se que a Resolução 2.025, do Banco Central do Brasil dispõe em seu artigo 2º, que: "A ficha-proposta relativa a conta de depósitos à vista deverá conter, ainda, cláusulas tratando, entre outros, dos seguintes assuntos: I - saldo médio mínimo exigido para manutenção da conta (...)".

Ora, considerando que a conta corrente é composta por todos os serviços disponibilizados pela Instituição Financeira ao consumidor, inclusive o fornecimento de talonários de cheque, ao se exigir um saldo mínimo para sua manutenção, evidencia-se a discricionariedade e a responsabilidade dos bancos nos casos de cártulas devolvidas por insuficiência de fundos, haja vista ser o saldo médio mínimo na conta, pressuposto para a sua manutenção, por conseguinte de seus serviços.

Mas onde quero chegar com essa argumentação é simples. Os bancos, agindo sem cautelas efetivas no fornecimento de cheques a seus clientes, pensando tão-somente na maximização de seus lucros e no cumprimento de metas exclusivamente capitalistas, acabam prestando um serviço viciado. Digo viciado por que ao não ter qualquer espécie de controle sobre a liberação dos cheques, hoje retirados em qualquer caixa eletrônico e em quantidade ilimitada, está-se incitando o calote geral, mascaradamente, para obter lucro quando cobra tarifa por cada cheque devolvido sem provisão de fundos.

De igual forma, estabelece a Resolução n. 1.682 do Banco Central do Brasil no art. 14 que Será cobrada, pelo executante do serviço de compensação de cheques e outros papéis, taxa de serviço equivalente a 1 (um) BTN, pela devolução de cheque à câmara de compensação.

Então, se o banco é remunerado pela atividade de manutenção de conta corrente com fornecimento de cheques, produzindo lucro com a devolução destes cheques, tanto de quem os emite quanto de quem suporta o infortúnio, deve ser ele responsabilizado como um verdadeiro risco da atividade, na medida em que é o próprio banco quem autoriza a emissão de tais títulos ao entregar o talão ao correntista.

Não se mostra justo - aliás, é um contra-senso - que os bancos lucrem com a devolução de cheques e se eximam de indenizar os indigitados beneficiários dos títulos, vez que são aqueles que detêm todos os instrumentos para vedar o locupletamento ilícito do emitente, devendo melhor analisar as condições patrimoniais deste antes do fornecimento de talões.

Estabelece o parágrafo único do art. 2º do Código de Defesa do
Consumidor, após o caput definir o conceito de consumidor, que "Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo". Ao lado desse artigo, temos o art. 17 que diz: "Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento." E, por fim, o art. 29, ao tratar das disposições gerais das práticas comerciais disciplina:

"Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas."

Resumindo com propriedade essa conjugação de artigos, a doutrinadora Cláudia Lima Marques, arremata:

"Se, no sistema do CDC, todos estes "terceiros" hoje se incluem como "consumidores, consumidores stricto sensu do art. 2 (quem "utiliza um serviço"), consumidores equiparados do parágrafo único do art. 2 (coletividade de pessoas ainda que indetermináveis, que haja intervindo na relação de serviço), do art. 17 (todas as vítimas dos fatos do serviço, por exemplo os passantes na rua quando avião cai por defeito do serviço) e do art. 29 (todas as pessoas determináveis ou não expostas às praticas comerciais de oferta, contratos de adesão, publicidade, cobrança de dívidas, bancos de dados, sempre que vulneráveis in concreto), então temos que rever nossos conceitos sobre estipulações em favor de terceiro e, no processo, sobre legitimação destes terceiros para agir individual ou coletivamente". (Marques, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2002)

Deste modo, revendo o conceito da legitimação, considerando o
direito do consumidor como norma fundamental e princípio informador do ordenamento jurídico, é perfeitamente admissível, por meio de interpretação lógico-sistemática, considerar o recebedor de cheque sem fundo como consumidor quando vítima de serviço mal prestado por instituição financeira; e, por sua vez, a legitimidade passiva da casa bancária fornecedora quando gere as operações bancárias acessórias que revelam cunho de prestação de serviços secundários, como a custódia de valores e as caixas de segurança, sempre destinados a atrair clientes, principalmente com a cobrança da taxa de devolução de cheque à câmara de compensação o que evidencia, sem qualquer dúvida, a liberalidade e a ânsia desmedida do banco para, ao não impor qualquer limitação ao cliente no tocante a disponibilização de talões de cheques, cobrar mais e mais tarifas a fim de obter lucros estratosféricos.

Diante do exposto, reconheço a legitimidade passiva ad causam do Banco do Estado de Santa Catarina para responder perante consumidor por cheque emitido sem provisão de fundos.

3 - Da aplicação art. 515, § 3º, do Código de Processo Civil

Impende, por oportuno, salientar que é aplicável ao caso, o disposto no § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil, o qual estabelece que "A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada. § 3º Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.", haja vista que o presente caso preenche o pressuposto referido na norma legal.

4 - Da responsabilidade civil objetiva e da reparação do dano

Iniciando o tema da responsabilidade, mister citar a lição do doutrinador Nelson Nery Júnior:

Dois são os sistemas de responsabilidade civil que foram adotados pelo CC: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva. O sistema geral do CC é o da responsabilidade civil subjetiva (CC 186), que se funda na teoria da culpa: para que haja o dever de indenizar, é necessária a existência do dano, do nexo de causalidade entre o fato e o dano e a culpa lato sensu (culpa - imprudência, negligência ou imperícia; ou dolo) do agente. O sistema subsidiário do CC é o da responsabilidade civil objetiva (CC 927 par. ún.), que se funda na teoria do risco: para que haja o dever de indenizar, é irrelevante a conduta (dolo ou culpa) do agente, pois basta a existência do dano e do nexo de causalidade entre o fato e o dano.Haverá responsabilidade civil objetiva quando a lei assim o
determinar(v.g., CC 933) ou quando a atividade habitual do agente, por sua natureza, implicar risco para o direito de outrem (v.g., atividades perigosas). Há outros subsistemas derivados dos dois sistemas, que se encontram tanto no CC como em leis extravagantes [...]. (Código Civil anotado, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 239).

Considerada lei extravagante, o Código de Defesa do Consumidor fixa para o caso a responsabilidade objetiva do banco, porquanto na condição de prestadora de serviços, possui ele obrigação de zelar pela perfeita qualidade dos serviços ofertados aos seus clientes, consoante dispõe o art. 14, que diz:

O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Desse modo, o Código de Defesa do Consumidor privilegiou a responsabilidade objetiva do fornecedor, daí por que para a caracterização do ilícito basta tão-somente a existência do dano e do nexo de causalidade, pois irrelevante a conduta (dolo ou culpa) do agente.

Sobre a responsabilização da atividade bancária enfatiza Rui Stocco, verbis:

se não se exige a culpa, em qualquer de seus graus, impõe-se a existência de liame causal, ou do nexo de causalidade entre a atuação ou omissão do depositário (banco) e o resultado danoso. Impõe-se, também, que se identifique 'defeito' ou má prestação nos serviços. (in Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial: Doutrina e Jurisprudência, 4. ed. rev. atual. e ampl., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 345).

Por expressa disposição legal no Código (art. 14, § 1º), "O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam (...);".

Sendo assim, ocorre dano ao consumidor, que recebe cheque sem provisão de fundos e fica privado do valor nele constante, e evidente o nexo etiológico entre este e a conduta do fornecedor de serviço, instituição financeira, que presta serviço defeituoso por seu modo de fornecimento e os riscos da fruição, quando o banco sem qualquer cuidado pela atividade que desenvolve, até para que não se eleve o risco do mercado financeiro, admite sem qualquer controle interno a liberação de vários talonários de cheques exigindo para tanto tão-somente documento de identificação (RG e CPF) e comprovante de residência, a teor do art. 14, § 1º, I e II, do Código de Defesa do Consumidor.

Dessarte, verificado o dano e o nexo causal, exsurge a responsabilidade do banco pela reparação do dano ao prestar serviço defeituoso quando libera talões de cheques sem qualquer limitação e estes são devolvidos sem fundos.

Ainda, para reforçar a argumentação, o professor Vilson Rodrigues Alves admite a possibilidade da responsabilização do banco em situações mais graves, como no caso do emitente de cheque sem fundo contumaz:

A responsabilidade civil ocorrerá se vier a ser definida segundo os princípios da responsabilidade civil subjetiva, como se de hipótese outorga o talonário de cheques a correntista useiro habituado à pratica ilícita de emissão de cheques fraudulenta a terceiros, porque então havia dever jurídico preexistente de recusa a essa entrega. (Responsabilidade civil dos estabelecimentos bancários. Campinas, SP: Servanda Editora, 2005, 2v. p. 355)

Outro ponto de destaque, para corroborar a tese, são as decisões no sentido de não cabimento de dano moral quando o banco nega a entrega de talão de cheque ao correntista, pois é de sua liberalidade. Senão vejamos:

Indenização. Responsabilidade civil. Estabelecimento bancário. Cliente que emite cheque sem fundos. Impedimento tão-só, de acesso ao talonário de cheques. Liberdade para promover operações de mercado financeiro. Ausência de prejuízo material. Sentença confirmada. Inexiste prejuízo material quando correntista de banco fica impedido de acesso ao talonário de cheques, pois tal não significa proibição de movimentar sua conta bancária (TJSP ? 5ª C ? Ap. ? Rel. Silveira Neto ? j. 29-10-1992 ? JTJ-LEX 142/104)

Por fim, apenas para argumentar, a instituição financeira tem direito de regresso contra o emitente do cheque sem fundo, o que acarreta o retorno ao estado anterior das relações jurídicas.

Posto isso, voto no sentido de dar provimento ao recurso para, reformando a sentença, julgar procedente o pedido formulado por Cristiano Pires Pereira para condenar o Banco do Estado de Santa Catarina ao pagamento de R$ 341,00 (trezentos e quarenta e um reais) acrescido de correção monetária (índices da CGJ) a partir do vencimento e da devolução do cheque (8-10-2001) e juros moratórios a contar da citação, invertendo-se também a sucumbência.

Condeno-o, também, ao pagamento de honorários advocatícios na importância de R$ 500,00, tendo em vista ser a causa de pequeno valor, com base no artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil.

DECISÃO

Nos termos do voto do relator, decide a Câmara, por maioria de votos, dar provimento ao recurso.

Participaram do julgamento, realizado no dia 13 de novembro de
2007, a Exma Sra. Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, com voto vencido, e o Desembargador Joel Figueira Júnior.

Florianópolis, 3 de junho de 2008.

Des. CARLOS PRUDÊNCIO
Presidente e Relator

Des. Carlos Prudêncio
DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR

Assinalo, de início, ter feito questão de declarar voto para deixar
consignado o meu entendimento, mesmo que de maneira singela e modesta, por se apresentar em perfeita sintonia com a fundamentação e conclusão formuladas pelo eminente Relator, Desembargador Carlos Prudêncio, em seu lapidar acórdão.

Em que pese o Código Consumerista estar completando 18 anos de vigência, as suas normas e princípios que se originam na Lei Maior, lamentavelmente, ainda não foram absorvidos de maneira cabal pelos fornecedores de produtos e prestadores de serviços, notadamente a instituições bancárias e financeiras.

No que tange, especificamente, às hipóteses de abertura de contas bancárias e fornecimentos de talonários de cheques à clientes de toda a ordem e grandeza, o que se constata é um afã ganancioso voltado ao aumento incomensurável da carteira que irá reverter, em curto período de tempo, em notáveis lucros que advirão da utilização da "cesta de produtos", com a contrapartida certa da cobrança de diversas taxas pelos serviços prestados, onde se incluem, entre tantos outros, o fornecimento de talonários e receitas decorrentes da devolução de cheques.

Como parece viger no País, errônea e ilegalmente, a crença da irresponsabilidade civil dos bancos no fornecimento de talonários de cheques para seus clientes, independentemente da forma como as cártulas são por ele utilizadas, não raramente de maneira fraudulenta e criminosa, terceiros beneficiários de cheques emitidos com falta de provisão de fundos, conta encerrada ou contra-ordem de pagamento, permanecem num escuro vazio de carência de alternativa para obterem o ressarcimento pelos prejuízos sofridos, salvo se for para dirigirem pretensão contra o emitente da malsinada cártula.

Ocorre que, nestas circunstâncias, o emitente, na maior parte das vezes, não tem condições de responder civilmente pelos prejuízos causados, ou, sequer é localizado para fins de tentativa de cobrança ou eventual composição amigável.

Neste quadro dantesco, os bancos aparecem pintados com matizes multicores, representadas pelo superior privilégio que beira a inaceitável ilicitude pelos danos causados por seus cliente à terceiros, como se fosse possível, em pleno século XXI, encobrir-se pelo manto da impunidade civil, mesmo quando se mostra evidente a formação de uma seqüência de fatos e relações de natureza eminentemente de consumo, portanto, protegidas pelo Código do Consumidor.

Através de interpretação lógico-sistemática dos artigos 2º, 17 e 29 do CDC , não resta a menor dúvida de que o terceiro beneficiário do cheque emitido com mácula pelo correntista figura nesta cadeia relacional bancária e cambial como consumidor vítima em face do evento danoso por ele sofrido.

Aliás, outra não é a redação insculpida no art. 17 da Lei 8.078/1990, in verbis: "Para efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento." Na mesma linha, complementa o art. 29 do aludido Diploma: "Para os fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas".

Por conseguinte, elementar afigura-se a conclusão de que o terceiro lesado pelo cliente da Instituição Bancária recorrida é parte passiva legítima para postular a indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência do não recebimento da cártula por insuficiência de fundos, pois, em relações desta natureza, a condição de sujeito legítimo à persecução deste tipo de demanda há de ser vista pelo prisma das normas estatuídas no Código de Defesa do Consumidor.

Oportunamente, e de forma regressiva, poderá a Instituição bancária buscar do emitente do cheque o ressarcimento pela indenização por ela paga à vítima.

Ilógico e totalmente contrário ao microssistema que rege as relações de consumo, é imaginar-se que o prestador de serviços e fornecedor de cheques ao seu cliente não se responsabilize perante terceiros por atos praticados por ele.

A responsabilidade da Instituição bancária recorrida é objetiva, e, estando comprovado o nexo causal e o dano, mister se faz, por ser medida de inteira justiça e evidente legalidade, conceder-se provimento ao recurso, a fim de condenar-se a Ré ao pagamento de indenização ao Recorrente, na qualidade de terceiro, porquanto vítima de desastrosa relação de consumo.

Por estes motivos, acompanha-se integralmente o voto do eminente Relator, Desembargador Carlos Prudêncio.

Florianópolis, 28 de Julho de 2008.

JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR
Desembargador Substituto

Declaração de voto vencido da Exma. Sra. Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta:

Ementa Aditiva da Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS AFORADA CONTRA O BANCO SACADO IMPUTANDO-SE-LHE RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DOS CHEQUES EMITIDOS POR SEUS CLIENTES. DESCABIMENTO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

O sacado de um cheque não tem, em nenhuma hipótese, qualquer obrigação cambiária. O credor do cheque não pode responsabilizar o banco sacado pela inexistência ou insuficiência de fundos disponíveis (Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 272).

Divergi da douta maioria por entender que "o sacado de um cheque não tem, em nenhuma hipótese, qualquer obrigação cambiária. O credor do cheque não pode responsabilizar o banco sacado pela inexistência ou insuficiência de fundos disponíveis" (Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 272).

Assim, bem andou o magistrado sentenciante ao afastar o réu - Banco do Estado de Santa Catarina S/A - BESC - da relação jurídica, haja vista sua ilegitimidade passiva, in verbis (fls.56/57):

No presente caso torna-se viável o reconhecimento, de ofício, da ilegitimidade passiva ad causam, posto que se trata de uma das condições da ação, assim, nos termos do art. 267, § 3º do CPC, o juiz reconhecerá, de ofício, em qualquer grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, a matéria constante dos nºs. IV, V, e VI.

Em se tratando das condições da ação, não ocorre preclusão, mesmo existindo explícita decisão a respeito (vide Theotonio Negrão, CPC e Legislação processual em Vigor, 27ª ed., Saraiva, p. 241/242).

É que, havendo dúvidas acerca da presença dos elementos e das
condições da ação, deve o juiz verificar a presença de tais requisitos, até mesmo de ofício, para depois dar seguimento válido e regular ao processo, eis que ditas questões são de ordem processual e, portanto, de ordem pública e não podem ser relegadas a segundo plano e se constituem em pré-requisito de admissibilidade para a eficaz provocação da prestação jurisdicional.

Assim, para ver prosperar qualquer ação, seu autor deverá ser o
titular da pretensão deduzida em juízo, sendo a parte demandada, de outro lado, aquela que, por ela própria, tenha que suportar os efeitos da sentença, que acolher a pretensão articulada.

As condições da ação, como é sabido, dizem respeito ao próprio exercício do direito de ação e à existência e regularidade da relação jurídica processual. As condições da ação possibilitam ou impedem o exame do mérito.

Ausente uma ou mais das condições ocorre a carência de ação, ficando o juiz impedido de examinar o mérito. A carência de ação tem como conseqüência a extinção do processo sem julgamento de mérito.

No caso em análise, salvo melhor juízo, entendo que falece à parte requerida legitimidade para estar em juízo e responder pela tutela jurisdicional pretendida pela parte autora.

É que, não consta dos autos, a existência de qualquer relação jurídica entre o autor e o réu. O negócio foi realizado com a pessoa de Cenira Bueno da Silva, pessoa física totalmente diversa da ora requerida.

Portanto, não vejo como possa o autor questionar contra o banco réu, em negócio jurídico realizado entre terceiros, não sendo parte legítima passiva para a demanda.

Estas as razões da divergência.

Maria do Rocio Luz Santa Ritta

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