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Dom Casmurro

Da Redação

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Atualizado às 10:55


Dom Casmurro*

O cerne de "Dom Casmurro" o leitor já conhece. Capitu teve ou não um caso extraconjugal com Escobar, melhor amigo de Bentinho ? Não creia que iremos aqui discorrer sobre isso. Mesmo porque o Código Penal já excluiu de seu texto o então sem uso tipo penal do adultério1, o que se lhe retira o que havia nisso de jurídico.

Aliás, se Ezequiel é ou não filho bastardo, uma investigatória de paternidade daria cabo da dúvida. E nem seria preciso um renomado causídico. Bastava um dos típicos advogados machadianos, mesmo aqueles que...

Era tarefa até para Cosme, tio de Bentinho. Conquanto fosse criminalista, resolveria o problema. Aliás, Tio Cosme por certo nem cobraria honorários, pois era "formado para as serenas funções do capitalismo" e por isso "não enriquecia no foro: ia comendo".

E seria missão até para o próprio Bentinho, agora em causa própria. Ora, leitor, não se lembra de que ele era também um bacharel ?

E o era não sem muito esforço. De fato, precisou, antes, demover sua mãe de promessa feita de fazê-lo padre. E não seria tão árdua a tarefa não fosse sua mãe "tão devota, tão temente a Deus", ter buscado "testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares".

E não poucas foram as volteadas diligências que Bentinho tomou para que sua mãe se convencesse a desistir da promessa.

O fato é que quando ela assumiu a dívida (promessa outra coisa não é), o filho era pequeno, e haveria tempo para cumpri-la. Ademais, ela sabia que os "prazos largos são fáceis de subscrever". Por outro lado, o prazo largo dá ensejo a muitos sucessos. E um deles deu-se na precoce viuvez. Lá se via ela "diante do contrato, como única devedora".

Não fosse pouco, o documento estava feito, justo e contratado na presença de testemunhas. E a contraparte era ninguém menos que Deus. E uma das testemunhas era também ninguém menos que o personagem que morava graciosamente em sua casa como agregado, José Dias. Este, vendo Bento se engraçar com a vizinha Capitu, agora em idade já crescida, cuidou de recordar D. Glória de sua promessa. E justo ele, que "serviu de endossante2 da letra", foi falar a ela "da necessidade de entregar o preço ajustado".

Se foi ou não por maldade, não vem ao caso. O fato, bastante para mostrar a fragilidade do ser, é que se antes defendia o pagamento da letra, José Dias depois tergiversa, e muda de lado. Com efeito, foi ele que advogou mais tarde os interesses de Capitu e de Bentinho. Um verdadeiro patrocínio infiel, necessário no enredo machadiano. E necessário porque, imagine leitor, se Bentinho vira padre!

E como ser padre se o que ele mais queria contemplar era o coração de Capitu ?

A saída era estudar leis em São Paulo. E, só de pensar nisso, já estremecia de prazer: "São Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna".

E o que fez o agregado vestir a camisa do time adversário foi a ambição em acompanhar Bentinho, fosse estudar leis em S. Paulo, fosse em Coimbra. Convenientemente, o agregado suspirava: "Oh! As leis são belíssimas !"

Belas são, mas não tanto quanto os olhos e tudo mais de Capitu.

E antes de Capitu e da beca, vinha a batina. Ele teve, na inversão do ônus da prova, de provar a não-vocação, indo para o seminário. Chegou, pois, a freqüentá-lo. E foi lá que conheceu o amigo Escobar, a quem mais tarde acresceu outro qualificativo: comborço3.

Mas que praga é essa de se voltar, a todo tempo, à cisma que fez de Bentinho casmurro ? Já falamos que isso, aqui, não. Não e não !

Os sonhos de Bentinho "já não pertenciam à sua jurisdição", e por isso precisamos, logo e logo, tirá-lo do seminário para pô-lo na Academia.

E é com olhos jurídicos que o vocacionado Bentinho entabula a saída do seminário, desobrigando a mãe:

"Neste caso, eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguém a importância de uma dívida para levá-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro".

No fim do ano, enfim, vê-se dispensado do encargo materno, para gáudio da literatura brasileira que quase deixa um dos maiores personagens do romance enclausurado no seminário... Agora ele continuaria de saias. Mas em vez da branca, a preta.

E Bento segue para o estudo das leis. Após 5 anos e duas páginas, volta bacharel. Tinha 22 anos.

E é egresso da Academia de Direito de S. Paulo (Turma de 1864?), o que mais de uma passagem comprova. Numa delas, na que narra a volta dele e do agregado José Dias (este fez a fineza de assistir à colação de grau), quando "desceram juntos a serra"4. E, em outro momento, ao se referir ao tempo de estudante em S. Paulo.

Os estudos de Bentinho fizeram com que a mãe quase estalasse de felicidade. Sobretudo quando ouvia chamarem seu filho doutor. Tio Cosme, adulador, chamava-o doutor, José Dias também, e todos na casa...

A troca da batina pela beca fez-lhe bem. Bentinho deu um bom advogado. Pelo menos é o que ele mesmo diz:

"Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando. Escobar contribuíra muito para as minhas estréias no foro. Interveio com um advogado célebre para que me admitisse à sua banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo espontaneamente".

"Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado rendia-me bastante."

Mas era em cima dos autos que lhe nascia a cisma. Fechava-se em seu gabinete com a escusa de estudar os processos. Ali vivia largamente em seus mundos. E foi assim quando se viu diante de uma inexplicável atração por Sancha, esposa do amigo Escobar e amiga de Capitu. Desejou-a por uma noite, se tanto.

"Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos."

E, quando relata como foi que a figura de Sancha se desanuviou por completo, permeia com questões dos autos que estudava.

"A figura de Sancha se desapareceu inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda, consultei Dalloz, Pereira e Sousa..."

Desfeita a nuvem, segue advogado. E num momento, quando ia ter com Escobar, trata de um feito.

"- Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos... Eram uns embargos de terceiros; ocorrera um incidente importante..."

E se a vida tem o alfa, tem também o ômega. Quem sabe isso é Escobar, que falece.

A Bentinho coube o discurso, alguns bens inventariados e a posição de segundo testamenteiro.

E, com a morte do amigo, Bentinho assume a alcunha que dá nome ao excelente romance. De fato, vendo Capitu debruçar-se sobre o caixão em tímidas lágrimas, constrói a afamada cena do livro. Já casmurro, conclui que Capitu e Escobar o teriam traído, gerando como fruto Ezequiel, a quem passa a ver como imagem e semelhança do finado comborço5.

E então, após se debruçar em autos e deles extrair suas cismas, decide-se, definitivamente, pela separação liminar, sem dar a Capitu chance de defesa.

É com a separação que se encerra o entrave jurídico. Agora, como bem sabe o douto leitor, este é um dos típicos casos de exceção ao princípio da publicidade que vigora (pelo menos deveria ser assim) nos feitos. É, pois, segredo de justiça.

Assim, aqui vai o que lhe podemos dizer, e é tudo.

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1 - A lei 11.106, de 28 de março de 2005, alterou o Código Penal, revogando o artigo 240, cujo tipo penal era "cometer adultério", cominando-lhe a "pena de detenção, de quinze dias a seis meses". O tempora, o mores!

2 - Não, Machado, ele não era endossante. Ele era testemunha.

3 - Segundo o dicionário Aurélio, comborço é o "amante de uma mulher, em relação ao marido ou outro amante dessa mulher". Este último caso, até onde se sabe, não se aplica à Capitu.

4 - Em crônica de 25 de março de 1864, ele explica que "os estudantes de Direito desciam a serra de Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio". E no conto intitulado "O Caminho de Damasco", o personagem "voltara de S. Paulo com um diploma de bacharel na algibeira (...) mas o pouco que aprendeu ficou na serra de Cubatão". Almeida Nogueira também fala da serra, contando que a estrada para Santos se fazia pela histórica serra do Cubatão. "Por esta estrada tinham de transitar, ao menos duas vezes por ano, os estudantes rio-grandenses, catarinenses, paranaenses, os do norte do Brasil, uma parte dos fluminenses e mineiros e mesmo os paulistas dos municípios do litoral". Como havia grande movimento, estabeleceu-se um esquema comercial, com serviços a passageiros e bagagens. Havia três empresas, com correspondentes pelo caminho. Alugavam animais, cargueiros e camaradas. Fazia-se o trajeto em dois dias, com pouso nos lugares de correspondência. Quando chegavam ao destino, os estudantes deixavam soltas, pelas ruas, as cavalgaduras, que em verdade eram "esqueléticos rossinantes". E, nesse tempo, o transporte de Santos ao Rio de Janeiro era marítimo, feito em dois vapores nacionais, o Santa Maria e o Paulista, aos quais mais tarde acresceu o Alice. A viagem durava de 18 a 24 horas. Como se vê, eram tempos difíceis.

5 - Para José Leme Lopes, em sua "Psiquiatria de Machado de Assis", há na "personalidade de Bentinho as predisposições básicas para o desenvolvimento psicopatológico, no sentido de um ciúme delirante".

* Extraído da obra "Doutor Machado - o direito na vida e na obra de Machado de Assis" - 2a parte, Migalhas Jurídicas, p. 161. (Clique aqui)

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