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Palestra

Luís Roberto Barroso: Cortes constitucionais devem captar sentimento social sem ser populistas

O ministro representa o STF no Seminário Constitucionalismo Global, na Universidade de Yale.

Da Redação

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Atualizado às 09:11

O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, cumpre agenda internacional esta semana. No sábado, falou em Washington, em reunião do escritório Arnold & Porter, onde trabalhou no final da década de 80. Na 5ª feira, participa de debate com o ministro da Suprema Corte americana Stephen Breyer sobre descriminalização da maconha.

E, na sequência, representa o STF no Seminário Constitucionalismo Global, na Universidade de Yale, que reúne juízes de Supremas Cortes e tribunais constitucionais de diversos países do mundo. Neste evento, S. Exa. apresenta a palestra "O papel das Supremas Cortes nas Democracias Contemporâneas".

  • Veja abaixo com exclusividade a versão em português das notas do ministro.

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OS PAPEIS DAS SUPREMAS CORTES E CORTES CONSTITUCIONAIS NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEASS

Luís Roberto Barroso

I. Introdução

1. Eu tenho muito prazer e muita honra de estar aqui e de compartilhar com todos algumas ideias e algumas reflexões sobre o papel das supremas cortes no mundo contemporâneo. Eu fui um foreign associate aqui no Arnold & Porter no distante ano de 1989, logo após haver concluído meu LL.M em Yale, e ter trabalhado aqui foi uma experiência que marcou a minha vida positivamente. De volta ao Brasil eu me dediquei simultaneamente à vida acadêmica e à advocacia, como é comum no meu país. Ao longo dos anos, meu escritório trabalhou em conjunto com o Arnold & Porter em alguns casos e eu mesmo assinei affidavits e atuei como expert witness em questões de direito brasileiro em litígios aqui. Em 2011 eu fui Visiting Scholar em Harvard e em junho de 2013 tomei posse na Suprema Corte do Brasil. A Suprema Corte brasileira tem tido um papel decisivo na preservação das instituições democráticas em tempos de crise econômica e muitas dificuldades políticas.

II. A prevalência no mundo do modelo americano de constitucionalismo

1. As duas primeiras Constituições escritas do mundo - a americana, de 1787, e a francesa, de 1791 - deram origem as dois modelos de constitucionalismo bastante diferentes. No modelo francês, que se irradiou pela Europa continental, a Constituição tinha uma dimensão essencialmente política, não comportando aplicação direta e imediata pelo Poder Judiciário. O grande princípio era o da supremacia do Parlamento e as leis não eram passíveis de controle de constitucionalidade.

2. Já o constitucionalismo americano, ao menos desde de Marbury v. Madison, julgado em 1803, caracterizou-se pelo reconhecimento de uma dimensão jurídica à Constituição, com a possibilidade de sua aplicação direta e imediata por todos os órgãos do Poder Judiciário. O grande princípio aqui, desde o começo, foi o da supremacia da Constituição, em que juízes e tribunais, e especialmente a Suprema Corte, podiam exercer o controle de constitucionalidade e, consequentemente, deixar de aplicar as normas que considerassem incompatíveis com a Constituição.

3. Após a Segunda Guerra Mundial, o modelo americano prevaleceu na maior parte do mundo democrático. Embora a fórmula dos tribunais constitucionais, adotada na Europa a partir da Alemanha (houve o precedente da Áustria, ainda antes da Guerra, mas sem repercussão para além de suas fronteiras), tenha estrutura e procedimentos diferentes do americano, o conceito subjacente é o mesmo: a Constituição é dotada de supremacia e os atos dos outros Poderes que sejam incompatíveis com ela podem ser invalidados por um tribunal.

III. Os papeis das cortes supremas e das cortes constitucionais

1. Como visto, Cortes Constitucionais zelam pela supremacia da Constituição, o que significa, essencialmente:

(i) assegurar o governo da maioria; (tribunais devem ser deferentes para com as decisões políticas tomadas pelos outros Poderes)

(ii) resguardar as regras do jogo democrático; (evitar que as maiorias mudem as regras para se perpetuarem no poder) e

(iii) proteger os direitos fundamentais de todos, inclusive os das minorias.

2. Para cumprir tais missões, as Cortes Constitucionais desempenham três grande papeis:

(i) contramajoritário: que é o apelido que a teoria constitucional dá ao fato de que juízes não eleitos podem invalidar decisões de agentes públicos escolhidos pelo povo;

(ii) representativo: que é o papel que as cortes exercem quando atendem a demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pela política majoritária (nos Estados Unidos, Griswold v. Connecticut e Lawrence v. Texas talvez sejam bons exemplos); e

(iii) iluminista: que é o papel que excepcionalmente as cortes constitucionais exercem, contra a vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história. Alguns exemplos americanos: Brown v. Board of Educations, Roe v. Wade e possivelmente Obergefell v. Hodges.

Þ Algumas dessas ideias são controvertidas, mas eu não vou aborrecer vocês com sutilezas da teoria constitucional.

IV. A judicialização da vida

1. Uma característica dos tempos atuais pelo mundo afora é a judicialização da vida. Em diferentes países, algumas das grandes questões políticas, sociais e morais estão tendo o seu último capítulo decidido perante Supremas Cortes ou Tribunais Constitucionais. Há causas diversas para este fenômeno.

2. Aponto três: a) após a 2a Guerra Mundial, muitos países se deram conta de que um Judiciário forte e independente era um componente necessário para a preservação da democracia; b) apesar da ascensão da democracia, o mundo experimentou um certo desencanto com a política majoritária e representativa; e c) em relação a muitos temas, sobretudo os moralmente controvertidos, o Legislativo muitas vezes não consegue produzir consenso nem decisões (casamento de pessoas do mesmo sexo, interrupção da gestação, morte assistida são bons exemplos). Nestes casos, o Judiciário termina precisando criar a norma que vai reger estas matérias.

3. Em alguns países, este fenômeno da judicialização da vida é potencializado por Constituições mais analíticas, como Brasil, África do Sul e Índia. Em todos eles - e particularmente no Brasil - se tem verificado um fenômeno que é a exigência perante o Poder Judiciário de direitos sociais previstos na Constituição, um dos mais complexos e intricados fenômenos nos países em desenvolvimento.

V. Complexidade da vida moderna e indeterminação do Direito

1. Além da ascensão institucional do Poder Judiciário e da acentuada judicialização da vida, há um outro fenômeno que aumentou o protagonismo de juízes e tribunais. É que, na medida em que as sociedades vão ficando mais complexas, a Constituição e as leis perdem a capacidade de prever, antecipadamente, soluções para todos os problemas jurídicos. Isso potencializa, em certa medida, a subjetividade ou discricionariedade judicial, pela necessidade de aplicação de cláusulas vagas (conceitos jurídicos indeterminados) ou princípios abstratos.

2. Alguns exemplos de casos reais inusitados: a) pode um casal surdo-mudo, mediante engenharia genética, pretender gerar um filho surdo-mudo, para que a criança habite o mesmo universo existencial que eles?; b) pode uma mulher pretender engravidar do sêmen do seu marido morto, e que deixou o material em um banco de esperma? c) um caso concreto ocorrido em São Paulo: uma senhora chegou ao primeiro lugar na fila de transplante de fígado e recebeu o órgão. A fila andou, e um cavalheiro chegou ao primeiro lugar na fila. Quando um novo fígado se tornou disponível e ia ser entregue ao primeiro da fila, a senhora que recebera o fígado anterior sofre uma rejeição e reivindica o novo fígado. Quem tem direito?

3. O traço comum entre todas estas situações é a ausência de uma solução pré-pronta em uma prateleira jurídica, onde o juiz pudesse recolhê-la. Em todos estes casos, ele terá de construir argumentativamente a melhor solução. O mesmo se passa quando há colisões de valores ou interesses constitucionalmente protegidos, como por exemplo entre: a) liberdade de expressão v. direito de privacidade; b) liberdade de contratar v. controle de preços de medicamentos; c) proteção ambiental v. construção de usinas hidrelétricas. São situações que se multiplicam, assumindo feição diferente em cada país.

VI. Exemplos mundiais de judicialização

1. Os exemplos de judicialização da vida, de questões políticas ou morais se multiplicam pelo mundo, em casos de grande visibilidade:

(i) no Brasil, foi a Suprema Corte que (a) estabeleceu o procedimento que o impeachment da Presidente da República deveria seguir, (b) afastou o presidente da Câmara dos Deputados e (c) abriu caminho para o casamento de pessoas do mesmo sexo ;

(ii) nos Estados Unidos, foi a Suprema Corte que a) decidiu as eleições de 2000, b) validou recentemente uma drástica interferência no sistema prisional da Califórnia e c) assegurou o direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo;

(iii) em Israel, foi a Suprema Corte que deu a palavra final sobre a constitucionalidade de se construir um muro na fronteira com o território palestino;

(iv) na Coréia do Sul, a Suprema Corte restituiu o mandato de presidente destituído por impeachment;

(v) no México, foi a Suprema Corte que abriu o caminho para a legalização da maconha;

(vi) na África do Sul, a Suprema Corte considerou inconstitucional a legislação que instituía a pena de morte.

2. Como se constata singelamente, o mundo se judicializou largamente e muitas decisões com grande repercussão política, social e moral são tomadas pelas cortes supremas ou tribunais constitucionais. Esta é uma situação nova que interfere com a visão tradicional da separação de Poderes e suscita discussões importantes acerca da legitimidade democrática. Embora a fronteira entre direito e política tenha ficado bastante menos nítida nas últimas décadas, a separação entre uma coisa e outra continua a ser essencial no Estado constitucional democrático. A política é o espaço da vontade da maioria. Já no direito deve prevalecer a razão, a razão pública. A despeito da clara percepção teórica de que são coisas diferentes, no mundo real nem sempre é fácil distinguir o espaço que é próprio da interpretação constitucional e aquele que deve ser reservado para a discricionariedade do legislador.

3. Em outra ocasião nós discutiremos estas questões. Agora é hora de encerrar.

VII. Conclusão

1. O Poder Judiciário e particularmente as supremas cortes, em muitas partes do mundo, vivem um momento importante de ascensão política e institucional. É preciso lidar com esse fenômeno com maturidade e grande equilíbrio, seja para evitar a omissão em momentos decisivos, seja para escapar de uma indevida politização. A vida é feita de prudências e ousadias e nem sempre é fácil encontrar a mediania, o caminho do meio. Mas é por ele que se deve caminhar. Cortes constitucionais não devem ser nem excessivamente tímidas nem tampouco arrogantes. Devem ser capazes de captar o sentimento social, mas não podem ser populistas.

2. Eu gosto de enfatizar esse papel com uma pequena parábola. A gente na vida está sempre se equilibrando. Vale para pessoas e para instituições, para gente famosa e para gente anônima. Viver é equilibrar-se em uma corda bamba, fazendo escolhas a cada passo. Por vezes, alguém na plateia pode achar que o equilibrista está voando. Não há muito problema nisso, pois a vida é feita de certas ilusões. Mas o equilibrista, ele tem de saber que está se equilibrando. Porque se ele achar que está voando, ele vai cair. E na vida real não tem rede.

3. A jurisdição constitucional, o poder das supremas cortes deve ser exercido do mesmo modo que a vida deve ser vivida: com valores, com determinação e com humildade. Muito obrigado.

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