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Magistrado em férias: atos ilegais

A partir do princípio da identidade física do juiz, a autora defende a nulidade dos atos praticados por magistrado em gozo de férias.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Atualizado em 29 de agosto de 2011 11:27

Carla Domenico

Magistrado em férias: atos ilegais

Recentemente o colendo Superior Tribunal de Justiça dando vida ao princípio constitucional do devido processo legal concedeu ordem de habeas corpus impetrado pelo ilustre advogado CÉZAR ROBERTO BITENCOURT reconhecendo a ilegalidade dos atos praticados por magistrado em gozo de férias. A discussão não é nova e é um acalanto ao Estado Democrático de Direito o seu reconhecimento.

A atuação de magistrado em período de férias, mais do que uma mera irregularidade, constitui conduta ilegal por desrespeitar à Constituição Federal, à legislação processual penal e, os dispositivos que norteiam a atividade jurisdicional, sendo razão de nulidade dos atos processuais.

É nesse sentido, aliás, o artigo 381 do decreto 848 (clique aqui), de 1890, que criou a Justiça Federal: "Durante as férias se suspendem as funções dos juízes e do Supremo Tribunal, devendo ser considerados nulos todos os actos praticados nesse período". Da mesma forma a lei 5.010/66 (clique aqui), que organiza a Justiça Federal estabeleceu em seu artigo 14, que "Aos Juízes Federais Substitutos incumbe substituir os Juízes Federais nas suas férias, licenças e impedimentos eventuais e auxiliá-los, em caráter permanente, inclusive na instrução e julgamento de feitos, na forma que o Conselho da Justiça Federal estabelecer". E, em seu artigo 28 definiu que: "É vedado aos Juízes Federais e Juízes Federais substitutos: (...) IV- exercer funções de árbitro ou de juiz, fora dos casos previstos em lei".

Apenas como exemplo, vale citar o Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 4° região, que ao regulamentar de forma pormenorizada a matéria, deixa expresso que somente por estrita necessidade de serviço a Corregedoria poderá interromper as férias, uma vez concedida. Em seu artigo 112 prescreve: "As férias dos Magistrados de Primeiro Graus serão marcadas em escala semestral (...) §3°: Publicada a escala de férias, somente serão admitidas alterações em situações justificadas, com antecedência de, no mínimo, 30 (trinta) dias. (...) §4°: As férias somente poderão ser interrompidas por estrita necessidade de serviço, a critério do Corregedor-Geral ou do Presidente do Tribunal" (Provimento 04/06- CG, de novembro de 2006, da Corregedoria- Geral da justiça Federal do Tribunal Regional Federal da 4° região).

Como parece indiscutível, as férias só poderão ser interrompidas por estrita necessidade de serviço, não satisfazendo tal requisito, a simples complexidade do feito e a urgência na conclusão da instrução. Lembra-se que o magistrado não é dono do processo e a magistratura tem uma estrutura organizacional que deve ser respeitada. Não é à toa que existem juízes substitutos em todas as varas, para, dentre outros inúmeros motivos, realizarem os atos judiciais no período das férias do magistrado titular da vara.

De outra parte, a decisão de interromper as férias não é do próprio magistrado que subjetivamente analisa a necessidade de cuidar de determinado feito. A interrupção sempre deverá ser concedida pelo órgão competente.

E nem se diga, que o advento da lei 11.719/08 (clique aqui), que introduziu no sistema processual penal o princípio da identidade física do juiz, determinando que aquele que fizer a instrução deverá sentenciar o feito (art. 399, §2º), se sobrepõe aos mandamentos antes descritos. Isto porque, como decidiu recentemente o colendo Superior Tribunal de Justiça: "é certo que o aludido princípio não tem aplicabilidade absoluta, já que a prestação jurisdicional dos magistrados investidos na competência para a apreciação e julgamento das causas criminais passaria a ser, necessariamente, ininterrupta, impedindo-os de afastar-se temporariamente de suas funções, seja por motivo de férias, licença médica e até mesmo a progressão funcional, que é inerente à carreira. Para contornar tal situação, em razão da ausência de outras normas regulamentando o primado em apreço, esta Corte Superior de Justiça vem admitindo a mitigação do aludido princípio nos casos de convocação, licença, promoção ou de outro motivo que impeça o juiz que tiver presidido a instrução de sentenciar o feito, mediante aplicação por analogia - permitida pelo artigo 3º da Lei Adjetiva Penal -, da regra contida no artigo 132 do Código de Processo Civil, que assim preconiza: 'Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. (Redação dada pela lei 8.637, de 31/3/1993). Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas'. Dessa forma, observa-se que em respeito ao princípio da identidade física do juiz consagrado no sistema processual penal pátrio, a sentença deverá, de regra, ser proferida pelo magistrado que participou da produção das provas durante o processo criminal, admitindo-se, excepcionalmente, que juiz diverso o faça, quando aquele estiver impossibilitado de realizar o ato em razão das hipóteses de afastamento legal narradas" (Rel. Min. JORGE MUSSI, HC 184.838, DJ 25/8/2011).

Assim, também por imposição do artigo 132 do Código de Processo Civil (clique aqui), que deve ser aplicado subsidiariamente, por força do artigo 3º do Código de Processo Penal, o magistrado no gozo das férias obrigatoriamente encaminhará os autos a seu sucessor. Caso contrário, os atos praticados por magistrado no período de férias são inexistentes ou, no mínimo, nulos de pleno direito. Como decidiu também a 3ª seção do STJ: "A adoção do princípio da identidade física do Juiz no processo penal não pode conduzir ao raciocínio simplista de dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração de outro juízo na realização de atos judiciais, inclusive do interrogatório do acusado, sob pena de subverter a finalidade da reforma do processo penal, criando entraves à realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos que pretendem se furtar à aplicação da Lei." (CC 99023/PR, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJU de 28/8/2009).

E, como lembrou a Min. LAURITA VAZ no julgamento do Habeas Corpus 184.938: "entre as exceções à aplicação do princípio da identidade física do juiz, previstas no art. 132 do CPC, insere-se o afastamento por motivo de férias, período em que é possível ao substituto proferir sentença, ainda que colhida prova oral em audiência de instrução e julgamento pelo magistrado originário, que a presidiu" (REsp 995.316/PB, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª turma, DJe 1/12/2010). Precedentes: AgRg no REsp 744.426/AL, Rel. Min. Castro Meira, 2ª turma, DJe 27/11/2008; REsp 20.475/RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Felipe Salomão, 4ª turma, DJe 6/10/2008; AgRg no Ag 632.742/MA, Rel. Min. Massami Uyeda, 4ª turma, DJ 22/10/2007" (AgRg no AG 1.353.635/RO, 1ª turma, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe de 20/5/2011).

Como se vê, o princípio da identidade física do juiz atualmente expresso em nossa legislação processual penal não é absoluto, devendo ser sopesado sempre à luz da Constituição Federal.

É por isso que o eminente desembargador Federal LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO destacou que "... naquilo que diz respeito à prática de atos, estando o Magistrado em férias, penso que preservar a legalidade é garantir o sistema, e o sistema objetiva ordenar a vida em continuidade, preservar o indivíduo da tirania alheia e do Estado, além de preservar o indivíduo - e aqui incluo o Juiz - inclusive das próprias razões e emoções. Então, qualquer que seja a justificativa e a importância dos fundamentos, da motivação que levou o juiz à prática destes atos, vejo um prejuízo presumido, porque naquele momento o órgão jurisdicional era outro, o Juiz não possuía jurisdição. O perigo do precedente está nisto: permitir que se convalide atos praticados mediante usurpação de jurisdição alheia. Assim, o prejuízo é presumido, o prejuízo é do sistema, o prejuízo é da legalidade, o vício está na insegurança gerada. Por isso concedo em parte a ordem, declarando a nulidade dos atos praticados naquele período em que o Magistrado estava em férias" (TRF 4ª região, HC 2007.04.00.004356-0, DJ 14/5/2007).

Assim, o ato de deixar ou não o processo aos cuidados do magistrado substituto não configura mera conveniência do Magistrado Titular, mas sim imposição legal e regimental e, no limite, o apego a determinado feito chega a comprometer a isenção do magistrado e a segurança jurídica que deve ser garantida ao sistema.

Nesse sentido, aliás, as considerações externadas no voto do ministro Jorge Mussi na recente decisão do Superior Tribunal de Justiça: "Aliás, conveniente registrar que o julgamento da causa pelo Juiz durante as suas férias, e mesmo após ter sido removido para outra Vara, poderia caracterizar até mesmo a sua suspeição, na medida em que, ao revelar a intenção de se manifestar sobre o feito quando não era obrigado a prestar a jurisdição, por estar temporariamente afastado de suas funções, poderia demonstrar possível atuação parcial em relação a determinado processo criminal. Isto porque, embora não se possa negar que o aludido magistrado estivesse investido de jurisdição, a qual, como é cediço, é una, a sua atuação se deu em desconformidade com as normas de divisão e organização judiciária, implementadas para dar efetividade à distribuição de competência regulada na Constituição Federal, exsurgindo daí a ofensa ao princípio do juiz natural, já que, se não é dado ao jurisdicionado escolher previamente o Juízo ao qual a causa será levada à apreciação e julgamento, veda-se igualmente que este vá ao encontro dos feitos que pretende sentenciar" (Rel. Min. JORGE MUSSI, HC 184.838, DJ 25/8/2011).

O princípio da identidade física do juiz, portanto, não pode ser manto para atuação processual dos magistrados em período de férias em absoluto desrespeito aos mandamentos constitucionais da legalidade e do devido processo legal, devendo ser considerados nulos todos os atos praticados.

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*Carla Domenico é advogada do escritório Carla Domenico Escritório de Advogados, em São Paulo/SP

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