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O Supremo Tribunal Federal e extradição de associação mafiosa

O advogado aponta que no Brasil não há previsão legal para o deferimento de extradição de cidadãos italianos acusados ou condenados por associação mafiosa.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Atualizado em 6 de fevereiro de 2012 08:42

Marcelo Bettamio

O Supremo Tribunal Federal e extradição de associação mafiosa

O Brasil celebrou em 1993 através do decreto 863 com o Governo da República Italiana tratado bilateral para extradição, estabelecendo requisitos extradicionais, entre eles o que destacamos na presente análise, o da "dupla tipicidade".

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema belga de cognição limitada, ou seja, com exceção no exame de crime de tráfico internacional de drogas, o Supremo Tribunal Federal não examina a culpabilidade do extraditando e tampouco o teor probatório, seja de extradição para instrução processual ou para cumprimento de sentença condenatória definitiva do País requerente.

Tanto o Tratado Bilateral Brasil - Itália como o Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/80), garantem o direito de defesa com delimitação sobre autoria, prescrição, crime político e dupla tipicidade, com condição de procedibilidade a prisão do extraditando durante todo o período de julgamento.

Além de se não garantir ao extraditado a efetiva imunidade de liberdade através do princípio-garantia de presunção de inocência previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, principalmente na extradição de natureza instrutória, onde inexiste condenação definitiva do País requerente, se subtrai concomitantemente o direito fundamental de liberdade provisória, ante extenso lapso temporal em procedimento complexo, muitas vezes em locais insalubres e desumanos.

Mas o ponto nevrálgico ora objeto de exame é a violação ao princípio da dupla tipicidade, também previsto no artigo 77, inciso II da lei federal 6.815/80, que em outras palavras exige que o crime em que o extraditado esteja sendo acusado ou já condenado pelo País requerente seja previsto no ordenamento jurídico do País requerido.

No Brasil o Supremo Tribunal Federal ao examinar os requerimentos de extradições efetuados pela Itália em face de acusados de crime de associação mafiosa, tipo penal previsto no artigo 416 bis do Código Penal Italiano, vem deferindo tais requerimentos extradicionais com o entendimento que há dupla tipicidade entre o artigo 288 do Código Penal Brasileiro que prevê a conduta típica de formação de quadrilha que é uma tipificação substancialmente diversa da tipificação de associação mafiosa.

Sob o perfil objetivo são três os requisitos para se evidenciar a particularidade do modus operandi da associação de tipo mafioso:

a) da força de intimidação proveniente da associação;

b) da condição de submissão que tal força de intimidação deriva;

c) da lei do silêncio, induzida de tal atmosfera intimidativa, que circunda dos atos de associação no ambiente em que se procede.

O elemento subjetivo é representado do dolo específico caracterizado da consciente vontade de participar de associação com fim de realizar o particular programa e com o permanente conhecimento de cada associado de fazer parte da associação criminosa e de ser disponível a utilizar por atuação do programa comum delinquencial com qualquer conduta idônea a conservação, isto é, ao reforçamento da estrutura associativa. ( Cass., Sez.I, 27.6.1994, Clementi, in Riv.pen.1995,649 )

Feita esta digressão das especificidades do tipo penal de associação mafiosa, detecta-se a peculiaridade do modus operandi na esfera objetiva para a caracterização do método mafioso e do dolo específico como elemento subjetivo do tipo na atuação associativa específica mafiosa.

Neste flanco, tal singularidade repele qualquer possibilidade de similitude com tipos penais genéricos de associação para delinqüir, inclusive com os tipos penais previstos no ordenamento jurídico positivo brasileiro.

A doutrina italiana ratifica a necessidade da verificação do método mafioso na especificidade do artigo 416 bis do Código Penal no seguinte teor: "O tipo penal de associação mafiosa previsto no artigo 416bis do Código Penal Italiano foi introduzido após fatos ocorridos em 13 de setembro de 1982 na Itália e com a necessidade de se resolver o contraste emergido entre doutrina e jurisprudência para distinguir a conduta de organização mafiosa do tipo penal ordinário de associação para delinqüir, e também para adequar os instrumentos normativos às exigências de repressão dos fenômenos criminais gravíssimos e endêmicos" ( G.Turone, Il delito di associazione mafiosa, Giuffrè, 1995, 14 ss.).

"A figura delituosa de associação de tipo mafioso é uma relação de especialidade com aquela de associação para delinqüir, sendo forma de particular gravidade. A especialidade é constituída do complexo de elementos de fato, representado no parágrafo terceiro do artigo 416 bis c.p., em termos de efetividade e da necessária e precisa verificação que aqueles que fazem parte se envolvem da força de intimidação do vínculo associativo e da condição de submissão e de silêncio que se deriva para se cometer delitos. Estes elementos de fato , que constituem o "método mafioso" , não apenas qualificam mas também pressupõem a atividade delituosa de associação , com característica - de violência e difusão - tais a exercitarem intimidação e de determinar as condições de sujeição e conivência, ou seja, a situação de forte condicionamento ambiental do qual, ao ponto que, os associados estejam envolvidos.

Na falta pode ser configurado associação para delinqüir." ( Salvatore Aleo, Sistema penale e criminalità organizzata, Giuffré, 2005, 220 ss.).

A distinção entre o crime de ser associado a uma associação mafiosa com o crime de formação de quadrilha para delinqüir é cristalina surtindo o efeito de certeza jurídica em tal distinção. O bem jurídico tutelado pelo tipo penal de associação mafiosa é a ordem pública, apresentando em sua estrutura a necessidade de satisfação dos requisitos da especialidade do método mafioso através da força de intimidação do vínculo associativo e da condição de submissão e silêncio que pressupõem a existência de associação mafiosa, diferenciando-se substancialmente com o teor do tipo penal de associação para delinqüir previsto no artigo 288 do Código Penal Brasileiro.

Da estrutura normativa do artigo 416 bis do Código Penal italiano se infere a impossibilidade de se espelhar a dupla tipicidade seja com o artigo 288 do Código Penal Brasileiro e tampouco com a definição de crime organizado dada pela Convenção de Palermo.

O artigo 288 do Código Penal Brasileiro não traz a especialidade do núcleo do artigo 416 bis do Código Penal Italiano, sendo possível a sua similitude apenas com o delito de associação para delinqüir previsto no artigo 416 caput do estatuto repressivo italiano.

O artigo 1º da lei 9.034/95, com redação dada pela lei 10.217/2001, c.c. o decreto legislativo 231, de 29 de maio de 2003, que ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto n.º 5.015, de 12 de março de 2004 não encontra nenhuma similitude com o artigo 416 bis do Código Penal Italiano.

A definição de organização criminosa prevista no Tratado de Palermo além de ser genérica e violar o princípio da taxatividade, não se amolda com a especificidade do crime de associação mafiosa, aplicando-se somente para relações de criminalidade transnacional, além de ser defeso convenções ou tratados internacionais regerem relações com o ordenamento jurídico-penal interno em razão da garantia lex populi. O princípio da dupla tipicidade é o espelho entre os ordenamentos jurídicos dos países envolvidos na relação jurídico-extradicional, traduzindo a substância do princípio da estrita legalidade.

Como bem observa Luigi Ferrajoli em sua clássica obra Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal ( 2ª ed. - S.Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. ) "O princípio da estrita legalidade ocupa posto central no sistema de garantias. Taxatividade do conteúdo que resulta da conformidade com o sistema garantista de nível constitucional. É condição de validade e legitimidade."

Deveras o princípio cognitivista extraído da norma meta-legal em exame garante a taxatividade que tutela o jus libertatis, impossibilitando a distorção do sistema mediante uso simplista de analogia.

Infere-se que o princípio da dupla tipicidade é de reserva absoluta no senso substancial de conteúdo, não podendo o Estado requerido deferir uma extradição sem a satistação em tal sentido, independentemente de qual seja o delito em exame.

O Supremo Tribunal Federal através do precedente da ministra aposentada Ellen Gracie ( Extradição nº 818 ) vem deferindo pedidos de extradição com fulcro na similitude em tipos penais substancialmente diversos, violando o princípio da dupla tipicidade e de todo o sistema garantista consagrado na Constituição Federal.

A França que é um País membro União Européia, em precedente análogo, negou a extradição de suposto mafioso italiano por inexistir a previsão de tipicidade com a referida especificidade de associação mafiosa, há apenas o tipo de "bando de malfeitores" que não satisfaz o princípio da taxatividade

Em recente julgamento da Extradição nº 1234 ocorrido em 08/11/2011, reprisou a Corte Suprema sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli a violação do princípio da dupla tipicidade sob o prisma da satisfação da formação de quadrilha previsto no artigo 288 do Código Penal Brasileiro, externando um paradoxo em relação aos princípios constitucionais.

Conclui-se que no Brasil não há previsão legal para o deferimento de extradição de cidadãos italianos acusados ou condenados por associação mafiosa diante da impossibilidade da satisfação dos princípios da dupla tipicidade e da taxatividade em relação ao crime de associação mafiosa, espelhando o posicionamento da Corte Constitucional um conteúdo político-criminal diverso daquele almejado de natureza jurídico-constitucional, sob o color de evitar-se que o Brasil não se torne um porto seguro de supostos mafiosos, invertendo toda a lógica do sistema garantista consagrado nas sociedades jurídicamente organizadas.

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* Marcelo Bettamio é advogado criminalista, especialista em Direito Penal, mestre em Processo Penal e doutorando pela Universidade de Roma

 

 

 

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