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Motorista do Uber poderá ser considerado empregado no Brasil

José Eduardo de Resende Chaves Júnior

Em face da dominante corrente jurisprudencial e doutrinária relativa à subordinação estrutural, integrativa ou reticular, o sistema de produção do UBER pode, perfeitamente, configurar vínculo empregatício também no Brasil.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Atualizado em 19 de abril de 2016 16:38

A Corte do Distrito Norte da Califórnia admitiu uma class action1 contra o UBER. Na ação, o coletivo de motoristas alega a violação do Código do Trabalho da Califórnia e reivindica o ressarcimento de despesas com o carro, com o telefone, diferenças de tarifas e a declaração de vínculo de emprego com o UBER. O mesmo pode se passar no Brasil.

O capitalismo contemporâneo, dito cognitivo, desafia os institutos tradicionais do Direito do Trabalho, que foram concebidos para a proteção do trabalhador em face do sistema de produção da grande indústria, do chamado fordismo.

A partir dos anos 70, o toyotismo já começou a colocar em xeque alguns de seus preceitos, principalmente em face da flexibilidade que imprimiu à produção. A rigidez da organização produtiva do período da grande indústria já não era tão necessária. Flexibilidade, tanto da produção como do ordenamento trabalhista, passou a ser a palavra de ordem.

A partir do final do século XX, as novas tecnologias de comunicação e informação concebem uma nova forma de organização da produção, em rede, seja com a empresa pós-material, voltada para os serviços, seja como para a chamada Indústria 4.0, que conecta a produção industrial com a internet das coisas. É era do chamado terceiro capitalismo, ou capitalismo cognitivo.

Dentro desse cenário, para efeitos de uma efetiva proteção jurídica do trabalhador, é preciso repensar conceitos tradicionais do Direito do Trabalho, especialmente seu conceito-mor de «subordinação jurídica», que nunca existiu na tradição da CLT, até 2011. Tal conceito apareceu pela primeira vez na CLT justamente através do mesmo diploma legal, lei 12.551/11, que veio acrescentar o parágrafo único do art. 6º da CLT, chamando a atenção para «alienidade» da relação de emprego, conceito utilizado pelo grande PONTES DE MIRANDA e que foi relegado pela doutrina nacional.

«Subordinação jurídica» sempre foi um conceito puramente doutrinário, forjado especialmente para a grande indústria, e que tinha vantagem de estender ao trabalhador do empregador atípico, por equiparação, previsto no §1º do art. 2º da CLT, o mesmo tratamento dado ao trabalhador do empregador típico - a empresa - previsto no caput do art. 2º da CLT.

No início do século XXI o conceito de «subordinação jurídica» recebeu uma update, com o surgimento jurisprudencial da denominada «subordinação estrutural, integrativa ou reticular» no TRT-MG, que se espraiou pelo Brasil, o que já significou um grande avanço.

Entretanto, esse conceito precisa muito mais de um upgrade, do que uma mera atualização, para poder acompanhar o fenômeno da emergência da inovação na produção contemporânea. Os conceitos de «alienidade»2 ou mesmo de «dependência econômica»3 parecem mais adequados a essa nova realidade econômica.

A revisão doutrinária do conceito é importante, não apenas para a garantia de uma efetiva proteção do trabalhador, mas também para permitir que novas formas autênticas de produção emancipatórias, da Wikieconomia, possam ser desenvolvidas, sem receio de intervenção estatal indevida.

Em face da dominante corrente jurisprudencial e doutrinária relativa à subordinação estrutural, integrativa ou reticular, o sistema de produção do UBER pode, perfeitamente, configurar vínculo empregatício também no Brasil. Para facilitar, organizamos de forma didática os argumentos pró e contra a configuração do contrato de trabalho entre o UBER e o seu motorista habitual:

Argumentos favoráveis à existência do vínculo com o UBER:

1. Direção do Trabalho

É o UBER quem define exaustivamente o modo de produção:

a. define o preço do serviço;
b. define padrão de atendimento;
c. define a forma de pagamento;
d. define e recebe o pagamento;
e. paga o motorista e
f. centraliza o acionamento do colaborador para prestar o serviço.

2. Sistema Disciplinar do UBER.

UBER aplica as penalidades aos trabalhadores que infringirem suas normas de serviço.

Por exemplo, se o motorista pegar um passageiro na rua, sem ser acionado pelo aplicativo.

Estão sujeitos também a penalidade os motoristas mal avaliados pelos usuários do serviço.

Argumento contrário à existência do vínculo com o UBER:

O motorista tem total liberdade quanto a sua jornada de trabalho, que é absolutamente flexível. O motorista trabalha no dia e na hora que desejar. Essa característica é um traço marcante da autonomia da prestação do trabalho.

Os meios de produção (veículo e o celular) pertencem ao trabalhador e não à empresa.

Contraponto aos argumentos contrários à existência do vínculo empregatício com o UBER:

Meios de Produção. Primeiramente, é importante não confundir meio de produção, com ferramenta de trabalho. Os meios de produção são o conjunto material que condiciona, junto com a força de trabalho, o modo de produção. É o conjunto, não um objeto individualizado. A propriedade desse objeto individualizado de trabalho não configura o conceito de meio de produção.

No caso, o veículo e o celular do motorista são simples ferramentas de trabalho, cuja propriedade individualizada por parte do trabalhador não desconstitui juridicamente a possibilidade da existência do vínculo empregatício.

Jornada de Trabalho e Autonomia. A flexibilidade da jornada de trabalho e da assiduidade não é critério excludente da existência da subordinação. No sistema fordista a disciplina horária era e é fator preponderante da produtividade. Isso não é mais relevante desde o sistema de acumulação flexível do toyotismo.

A assiduidade e o controle de jornadas são dois fatores muito marcantes de subordinação, mas não são requisitos essenciais, ou seja, há outras modalidades de configuração da subordinação além do controle de jornada ou de assiduidade. Basta pensar no trabalho a domicílio, no qual os conceitos de controle de jornada e de assiduidade se revelam até mesmo incompatíveis com a garantia constitucional da inviolabilidade do lar.

Além disso, nos termos do art. 62 da CLT, os cargos de gestão e aqueles executados fora do estabelecimento do empregador, ainda que não sujeitos ao regime disciplinar de jornada, também não inviabilizam a existência do vínculo empregatício.

No capitalismo cognitivo o controle e a direção da produção se fazem independentemente do controle de jornada ou de assiduidade. No sistema fordista, da linha de produção, essa disciplina era essencial, para o eficiente desenvolvimento da produção.

A linha de produção só funciona adequadamente se cada um dos trabalhadores, individualmente, produzir de forma serial e coordenada. Se um falhar, o sistema linear, serial, é interrompido, onerando os custos de produção.

No sistema em rede, a falha individual não é determinante, pois o sistema funciona com uma lógica de equilíbrio similar a vasos comunicantes. Passa-se da rotina à flexibilidade. A própria internet foi criada com essa lógica de supremacia de um sistema descentralizado, que se revela, até mesmo do ponto de vista militar, mais eficiente que um sistema centralizado.

Nesse sentido, não é mais necessário, para fins de eficiência da produção, da disciplina individual, senão de um sistema de controle coletivo.

Autonomia, nesse contexto, só pode estar associada à não «alienidade» do trabalho, ou seja, ao fato de que o produto do trabalho resulte em proveito próprio e não seja alienado a outrem, tampouco que o trabalhador esteja sujeito a um sistema punitivo.

Num sistema efetivamente autônomo de trabalho, no capitalismo, não há sistema de punição, mas submissão às regras, aos riscos e às vicissitudes do mercado. Se o tomador de serviço se substitui ao mercado transmutando as regras, condições e riscos inerentes ao mercado, por um sistema interno de punições, ele passa a ser empregador.

Na empresa-rede do capititalismo cognitivo não é mais relevante para a produtividade a rigidez da jornada ou até mesmo a assiduidade individual. Nesse contexto, a subordinação é aferida apenas de maneira coletiva.

À Guisa de Conclusão

É importante evoluir os institutos do Direito do Trabalho, pois iniciativas autênticas de cooperação solidária, de compartilhamento efetivo de potencialidades, podem construir soluções positivas e alternativas para o trabalhador, alternativas essas que ao contrário de serem reprimidas devem ser incentivadas pelo ordenamento de proteção ao trabalho humano.

O conceito de «subordinação jurídica», ainda que com o update ocorrido no início do Século XXI, é incapaz de estabelecer de uma forma consistente a distinção entre a produção emancipatória e a produção exploratória.

O sistema produtivo atual do UBER, por exemplo, dá sinais claros de exploração quando, por exemplo, estipula um percentual entre 25 a 30% sobre o faturamento bruto de todos os trabalhadores, mas transfere a eles todos os ônus, tais como o investimento com compra do veículo, sua depreciação, abastecimento, manutenção, avarias, multas e impostos, além dos dias parados em função de acidentes e problemas no veículo.

Além disso, não se vislumbra no sistema do UBER atual qualquer perspectiva de uma cultura do compartilhamento, cooperativa, pois o motorista, ao ligar o aplicativo, não tem senão a opção de seguir estritamente as rígidas normas estabelecidas de forma heterônoma pelo algoritmo do aplicativo criado e gerenciado pela empresa.

Esse cenário está muito distante da economia solidária, da cooperação. O que se percebe é que se evolui simplesmente da cultura da sociedade disciplinária (FOUCAULT) para a sociedade do controle (DELEUZE). O capitalismo cognitivo tem por objetivo capturar não apenas o excedente do trabalho individual, mas também o produto da cooperação social.

Em síntese, se não se alterar o sistema de gestão exploratória do trabalho do motorista, é possível a configuração do vínculo de emprego entre o UBER e o seu motorista habitual.

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Referências

1 Antes disso, a Comissão do Trabalho do Estado da Califórnia já havia considerado os motoristas do UBER como empregados e não como autônomos https://www.nytimes.com/2015/06/18/business/uber-contests-california-labor-ruling-that-says-drivers-should-be-employees.html?_r=0

2 Indicamos o texto que escrevemos com o colega Marcus Barberino disponível no site do TST https://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/73990

3 Conceito desenvolvido em tese de doutoramento pelo Professor da UFBA e Juiz do Trabalho Murilo Oliveira. Resumo disponível em https://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/50179/011_oliveira.pdf?sequence=1 A tese completa disponível em https://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/30176

4 Em São Paulo ( https://idgnow.com.br/mobilidade/2016/03/21/irritados-com-ganhos-baixos-motoristas-do-uber-prometem-greve-em-sp/ ) e em Nova York ( https://codigofonte.uol.com.br/noticias/motoristas-do-uber-fazem-greve-em-nova-york ) começam a aparecer os primeiros movimentos grevistas dos próprios motoristas contra o sistema UBER.

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*José Eduardo de Resende Chaves Júnior é desembargador e presidente da 1ª turma do TRT/MG, doutor em Direitos Fundamentais e professor adjunto da pós-graduação IEC-PUCMINAS.


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