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A ADPF 54 e a moralidade kantiana

Daniel Pinheiro Longa

Sendo moral e universal, a decisão proferida na ADPF 54 está em perfeito acordo com os preceitos morais definidos pelo imperativo categórico kantiano.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Atualizado em 25 de setembro de 2019 17:28

O objetivo do presente artigo é analisar se a Decisão Proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54/DF ("Decisão") frente à teoria moral construída por Immanuel Kant.

 

O caso sob análise, tem por objeto a discussão sobre a constitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria tipificada nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal Brasileiro. O STF decidiu pela inconstitucionalidade de tal interpretação. Vejamos a ementa:

FETO ANENCÉFALO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - MULHER - LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA - SAÚDE - DIGNIDADE - AUTODETERMINAÇÃO - DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRIME - INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Para fins desse trabalho, e em que pesem as valorosas discussões travadas nos votos, optamos por abordar a decisão pela perspectiva do imperativo categórico, conceito abordado por Kant, em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Nossa pretensão é avaliar se a decisão prolatada pelo STF obedece aos requisitos considerados por Kant para o estabelecimento de um princípio supremo de moralidade1.

 

Feitas essas considerações iniciais, abordaremos a seguir os conceitos discutidos por Kant na obra supramencionada e, na sequência, discorreremos sobre a Decisão à luz de tais conceitos.

 

O primeiro ponto a ser abordado é o que diz respeito à fundamentação da moralidade Kantiana. Para compreender o imperativo categórico é primeiro necessário traçar o seu paralelo com a Regra de Ouro da ética da reciprocidade, entendendo também as suas semelhanças e divergências.

 

A "Regra de Ouro", que serve como fundamento moral para muitas das religiões de fundamentação judaico-cristã, determina que "cada um deve tratar os outros como gostaria que ele próprio fosse tratado". Como exemplo prático, retira-se da frase bíblica, atribuída à Jesus em seu Sermão da Montanha: "tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles".2

 

Assim, à primeira vista o imperativo categórico de Kant, que determina que cada indivíduo deve agir "como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza"3, guarda identidade com a "Regra de Ouro" já proferida por Confúcio quase que 5 séculos antes de Cristo4.

 

A grade inovação trazida por Kant no século XVII foi a noção de que a moralidade somente pode ser exercida por seres autônomos, pois essa seria o "o princípio supremo da moralidade". Nesse caso, Kant entende que a base da moral é a liberdade individual de pautar suas próprias ações de forma autônoma e racional, estabelecendo que esse princípio da autonomia é a possibilidade de cada um escolher sempre de modo tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis universais, no ato de querer.5

 

A moralidade de Kant pressupõe que aquele que a exerça, seja diretamente ou indiretamente, seja sempre um ser autônomo e racional, capaz de discernir por conta própria a máxima universal que deve pautar suas atitudes a ponto de essas serem capazes de se tornar regras universalmente aplicáveis.

 

De modo distinto daquele preconizado na "Regra de Ouro", não basta poder "amar o outro como se ama a si mesmo", mas é necessário que essa atitude seja universalmente tomada de maneira autônoma e racional.

 

Voltando ao julgamento da ADPF 54, a Decisão colocou frente a frente princípios que, à priori, seriam colidentes: a liberdade dos pais, e sobretudo da mulher, de optar por terminar uma gestação x o direito à vida do feto e o poder/dever do estado de garantir esse direito do feto frente à argumentos com bases religiosas.

 

No entendimento do ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, não haveria colisão entre os princípios acima, pois, "a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, (...) a resposta é desenganadamente negativa."

 

Portanto, não seria possível falar na imposição do poder estatal em apenar a mulher de mais envolvidos no procedimento por conta de acepções religiosas que seriam simplesmente estranhas ao Estado de Direito.

 

Quanto ao direito à vida do feto anencefálico, esse também não pode ser tutelado. Por nascer com uma má formação em seu tubo neural, caracterizado pela ausência de parcial do encéfalo e do crânio, o feto anencéfalo não é capaz de se desenvolver plenamente. Muitas vezes ele morre ainda no ventre materno, sendo incapaz de sobreviver por muito tempo depois do parto.

 

Assim, o feto anencéfalo não pode ser sujeito moral à luz do imperativo categórico, pois falta a esse a capacidade de racionalizar. Sem a racionalidade, não há autonomia. Assim, como não é um ser racional, ou mesmo capaz de um dia adquirir racionalidade própria, a decisão quanto à possibilidade de se permitir o aborto dos fetos anencéfalos jamais poderá ter como base o ponto de vista do feto.

 

Nesse ponto, Marco Aurélio Mello cita o seguinte trecho dos ensinamentos de Kant para afastar a aplicabilidade da lei penal ao caso: "o homem, e, de maneira geral, todo o ser racional, existe como fim de si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade (...). Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios, e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio."

 

Toda e qualquer decisão sobre essa questão terá o enfoque na mulher como o sujeito que sofre os efeitos da gestação. E a pergunta que se faz aqui é: terminar uma gravidez que nunca será capaz de prosperar plenamente atende ao imperativo categórico? Ao nosso ver, atende.

 

O ato da mulher, no livre exercício da sua autonomia, abortar um feto que não tem o potencial de prosperar é um ato perfeitamente moral do ponto de vista ético-kantiano. A universalidade desse ato é evidente, sobretudo quando se pensa que o contrário seria obrigar toda e qualquer mulher a continuar por nove meses uma gravidez que, no final, sempre será frustrada.

 

Lembre-se ainda que não há imposição de abortar. Todavia, o elemento volitivo, a escolha entre abortar ou não, não entra no imperativo categórico, constituindo somente um imperativo hipotético.

 

Sendo moral e universal, a decisão proferida na ADPF 54 está em perfeito acordo com os preceitos morais definidos pelo imperativo categórico kantiano.

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1 Canto - Sperber, Monique (organizadora), Dicionário de Ética e Filosofia Moral, pg 92.

2 Mateus 7:12.

3 Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 59.

4 Não façais aos outros aquilo que não quereis que vos façam. - Confúcio, Analectos, 12.2 e 15.24.

5 Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 81.
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*Daniel Pinheiro Longa é advogado do escritório Cescon Barrieu Advogados.

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