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Exercício de direito ou indústria de ações ?

Fábio T. Nicolosi Serrão

Migalheiro assíduo, acredito ter sido um dos primeiros correspondentes cadastrados no Migalhas. Assim acredito porque tão logo a possibilidade surgiu, incontinenti a ela aderi. E a correspondência tem sido um salutar trabalho que passou a ser desenvolvido pela Sociedade de Advogados da qual faço parte.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Atualizado em 7 de abril de 2006 10:55


Exercício de direito ou indústria de ações ?



Fábio T. Nicolosi Serrão*


Migalheiro assíduo, acredito ter sido um dos primeiros correspondentes cadastrados no Migalhas.


Assim acredito porque tão logo a possibilidade surgiu, incontinenti a ela aderi.


E a correspondência tem sido um salutar trabalho que passou a ser desenvolvido pela Sociedade de Advogados da qual faço parte.


E foi justamente de um serviço de correspondência que me deparei com a situação que passo a expor.


Fui procurado no mês de dezembro de 2005 para atuar numa audiência designada perante o Juizado Especial Cível e Criminal de uma cidade do interior do Estado do Ceará.


Diligência difícil, não pelo ato em si, mas pelas condições que envolviam o seu cumprimento. Tratava-se, na ocasião, de comarca distante cerca de 500 Km da capital Fortaleza (sede de meu escritório) e, quem conhece um pouco as condições das estradas brasileiras, em especial as rodovias federais, já pode imaginar que rodar 1000 km num único dia e a maioria deles numa BR é garantia de aventura.


Partimos de manhã (alvorada mesmo) e cerca de cinco horas depois chegávamos na cidade.


Cidade pequena (cerca de 14.000 habitantes), vara única, um só juiz, um só conciliador e um só advogado.


A causa, indenização por danos morais.


Alegava o autor na sua petição que jamais havia saído daquela cidade e que se via prejudicado pois a ré (empresa) havia incluído o seu CPF nos registros dos órgãos de restrição ao crédito.


A pauta das audiências de conciliação do dia, uma considerável lista de feitos, tinha como requerente o tal cidadão e como requeridos, bancos e empresas variadas.


Até aí tudo normal, não fosse o fato de que todas as empresas eram da grande São Paulo e tinham negativado o CPF do autor em razão de terem em mãos cheques do mesmo, devolvidos duas vezes por insuficiência de fundos.


Olhando aqui, indagando ali e "assuntando acolá" como dizem no Ceará, não demorou muito para perceber que outras pessoas além daquele autor já vinham movimentando ações idênticas a essa.


Uma ação para cada empresa onde o pedido indenizatório é sempre no teto do Juizado (40 salários mínimos).


Pudemos observar que algumas empresas (como era o caso de minha patrocinada) comparecem e se defendem.


Outras incidem em revelia e muitas, numa política de custo-benefício, optam por um acordo celebrado por telefone e posteriormente homologado.


Saí da comarca um tanto quanto intrigado sobre como os dados daquelas "humildes pessoas" chegaram às mãos de alguém que em nome deles (pelo menos é o que parecer ter acontecido) abriram em SP contas correntes e fizeram várias compras, em diversos estabelecimentos como óticas, lojas de calçados, de roupas, supermercados, postos de gasolina, lojas de departamento etc.


Menos de um mês depois, recebo outra consulta de diligência para audiência e qual não foi a minha surpresa ao constatar que se cuidava da mesma situação, ou seja, ação de indenização por dano moral, movida por uma pessoa humilde contra uma empresa de SP, em razão de inclusão no Serasa do CPF do cidadão decorrente de cheque em nome do próprio, conta corrente da praça e devolvido sem fundos.


Ah ! poderíamos concluir que essas pessoas tiveram seus documentos furtados e alguém estaria usando os mesmos para abertura de contas e emissão de cheques em compras.


Não é o caso.


Não existe furto, roubo ou mesmo um simples extravio de documentos.


Existe sim, uma sistemática prática de abertura de contas correntes em nome de tais pessoas, junto a agências bancárias situadas na grande São Paulo, mediante, acredita-se, a utilização do RG e CPF falsificados.


Tudo parecer levar à conclusão de que essas pessoas foram vítimas de uma ardilosa ação criminosa.


O que causa espanto, todavia, é que essas pessoas não se preocupam - eu não vi um único Boletim de ocorrência em nenhum dos casos - em levar o fato à autoridade policial para apurar o tal crime.


A pergunta que não quer calar é no sentido de saber como os dados dessas pessoas chegam às mãos ou ao conhecimento dos "meliantes" que, em tese, falsificam os documentos, abrem a conta corrente e fazem compras.


Mais estranheza ainda vem da constatação de que não se cuida de uma ou outra vítima isolada. São várias pessoas que tem seu nome utilizado pela suposta ação dos supostos "bandidos".


Essas pessoas, que a princípio não buscam o distrito policial, buscam o judiciário pleiteando ações indenizatórias pela negativação efetuada.


Uma ação é movida contra o banco no qual a conta corrente foi aberta.


As outras são movidas contra cada um dos que levaram o nome da pessoa ao cadastro dos inadimplentes em razão dos cheques devolvidos por falta de fundos.


Essa prática rende números significativos.


Veja-se como exemplo a comarca que tem um único advogado.


Nela, com apenas 4 (quatro) autores foram acionadas cerca de 75 (setenta e cinco) empresas, todas elas situadas na grande SP.


Esses procedimentos acabam invariavelmente sendo altamente rentáveis.


Valem-se os autores, do fato das empresas serem sediadas no distante estado de São Paulo e lançam contra elas ações reparatórias utilizando os permissivos legais da lei 9.099/95 e os benefícios da gratuidade da justiça.


Esclarecendo, a dinâmica é mais ou menos esta:

A empresa que recebe o cheque sem fundos sofre aí o primeiro prejuízo. Essa mesma empresa buscando o recebimento do produto que vendeu e entregou leva o título (cheque sem fundos - alíneas 11 e 12) para protesto que, efetivado, gera a restrição no SPC/SERASA.


Os autores então, simplesmente alegando não serem eles os titulares dos cheques emitidos (devolvidos sem provisão de fundos), ingressam com ações reparatórias pedindo indenização por dano moral puro da ordem de R$ 12.000,00 (doze mil reais), tendo como foco as empresas (vitimas) que venderam, não receberam e levaram os cheques devolvidos a protesto.


Essas ações reparatórias, ao sofrerem seu andamento regular geram as seguintes possibilidades:

1º) Pelo alto custo de elaboração de uma defesa em localidade distante de sua sede, e avaliando o binômio custo-benefício, a empresa requerida mantém contato com o autor e propõe acordo. Acordo celebrado. Lucra o autor.


2º) A empresa não reúne condições de viabilizar defesa e acaba incidindo em revelia. Lucra do autor.


3º) A empresa se defende e busca demonstrar que não tem responsabilidade alguma sobre os eventuais danos causados ao autor, ao contrário, experimentou ela danos materiais consistentes em vender produto e não receber e, ainda, em suportar os ônus de uma defesa judicial a mais de 3.000 Km de sua sede. Novas despesas tem a empresa.

O quadro é assustador !


Em outra comarca, a incidência de situações análogas se repete, tudo obedecendo a mesma sistemática e nada garante que isso não esteja ocorrendo em outros localidades diversas das duas aqui citadas.


Importante destacar, ainda, que a cada mês novas demandas ingressam no judiciário criando e fomentando uma indústria de ações reparatórias.


Particularmente, entendo que não pesa responsabilidade alguma às empresas e pessoas que receberam os cheques devolvidos por falta de fundos e os levaram a protesto, pensamente esse compartilhado também por grande acervo jurisprudencial e ensinamentos doutrinários.


Entendo também que, mesmo isentas de responsabilidade, as empresas (credoras) ao procurarem uma composição para liquidação do feito, mediante o pagamento de verba indenizatória, fomentam a propositura de novas e reiteradas ações que acabam vitimando outras e, não raro, as mesmas empresas.


Será que vale o tal custo benefício ?


Entendo que aquele que contribui, mesmo não sendo devedor, assume parte da culpa, aquela que originalmente não tem por ser parte inocente, e aquela que adquire quando incentiva e fomenta ações - sob o meu ponto de vista - inapropriadas.


Não vejo como adaptar para o caso em tela o velho brocardo "mais vale um mau acordo do que uma boa demanda", pois incentivar, alimentar, fomentar o êxito - acordo é êxito - de ações como essas, jamais pode ser definido como uma boa solução.


Os nossos clientes e parceiros de correspondência são orientados a apresentar defesa e, opondo resistência, criar um freio a essas demandas.


Os custos de fato existem, da mesma forma que existem mecanismos para minimizar despesas.


Ponderei muito antes de trazer à tona os fatos narrados.


Acredito, entretanto, que o Migalhas, por sua projeção e conceito é o instrumento perfeito para tornar público o alerta ora feito o qual entendo relevante.


Saudações.

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*Advogado do escritório Flesch & Serrão Advocacia e Consultoria






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