Circus

Mors Omnia Solvit

Mors Omnia Solvit

4/4/2008

 

"Os ladrões de galinha sempre olham os arrombadores com certo respeito. Se os ladrões simples são os bacharéis dessa faculdade e os escroques são os licenciados, estes serão ou doutores ou eméritos professores".

Honoré de Balzac, Código dos Homens Honestos

Era, segundo meu interlocutor, uma Santa Casa como tantas outras que ainda existem no interior de muitos de nossos Estados, em especial ali no sul da Bahia : janelões compridos, pé direito triplo, cadeiras e camas de metal que um dia haviam sido pintadas de branco, pois agora havia nelas mais o marrom da ferrugem do que a cor do esmalte. Pelos corredores alguns móveis inservíveis que ali aguardavam destino melhor, ou seja, o lixão da cidade. Nas paredes e no teto as temerárias fiações elétricas improvisadas, prontas para desencadear curto-circuito e, com ele, até um incêndio. Ao longo do corredor, portas com tabuletas indicando o que deveria haver no interior de cada um daqueles cômodos e que as minguadas contribuições dos beneméritos transformavam em mera expectativa. Num canto, ao fundo, uma imagem do Senhor do Bonfim iluminada por uma luzinha fraca, que permitia ver umas flores murchas deixadas por algum parente aflito, que não renovara a oferta, por inútil ou suficiente a já feita. Naquilo que poderia chamar-se sala de espera, algumas pessoas muito feias e mal-vestidas, descalças ou calçando chinelo de dedo, aguardando a chegada do doutor. Os casos mais urgentes costumavam ser cuidados pelos enfermeiros ou mesmo pelo pessoal encarregado da faxina, pois tudo ali se confundia, naquela miséria bizarra.

Quando a moça chegou, amparando aquele velho que mal podia andar, os olhares se voltaram para ela, pois sua vestimenta não era como a dos demais e seu perfume não poderia deixar de ser notado. Vestia, na verdade, roupa extremamente simples, mas, em confronto com a pobreza dos freqüentadores habituais, chamava a atenção, coisa de gente chique, vinda da cidade grande. Perguntou pelo médico e os atendentes se desdobraram para saber dele, telefonando para vários locais antes de informar que ele chegaria logo logo, tivesse um pouco de paciência. Telefone celular ali nem pensar. Quiseram até atendê-los, dada a notória urgência, mas ela preferia aguardar a vinda do médico.

Educadamente ela foi pedindo licença aos demais pacientes e acabou por sentar-se com o velho num canto da sala, ele com evidente dificuldade para respirar. Vez que outra o velho fazia um esforço enorme, como se quisesse armazenar um bocado maior de ar no pulmão, para não ter de repetir o esforço constante para aspirar o seu alimento. Magro como estava, parecia que se alimentava de ar e água, como se fosse orquídea. E respirava com muita dificuldade, produzindo um barulho incômodo. Era um ronco estranho, que rebatia nas paredes nuas da sala. Em seguida, ele pendia a cabeça, como que adormecido. O estado do velho era, de fato, preocupante, as pessoas concordavam.

Quando o homem de branco chegou, os funcionários apontaram para o canto onde estava a moça e o velho, o que parecia indicar que se tratava do caso mais grave a ser atendido. O jovem médico olhou-os, disse algo ao atendente e entrou numa das salas do longo corredor. O funcionário fez um sinal ao casal, cuja necessidade de atendimento preferencial foi, ao que parece, entendido pelos demais pacientes, que não se consideravam em estado assim tão grave. Nada como alguém em pior estado para diminuir nosso sofrimento.

Foi com grande dificuldade que o velho conseguiu arrastar-se, amparado pela filha, ou pela moça que parecia ser sua filha, até a sala onde o médico os aguardava. Quem a anunciou como filha foi o atendente, ao que parece depois de consultá-la. A moça, gentilmente, acomodou o pai numa cadeira e se pôs a falar em voz baixa ao médico, salientando que o estado dele era muito grave e que, no fundo no fundo, a família desejava apenas que ele morresse em paz. Indicou nome completo, local de nascimento e idade. "Tão moço ?", estranhou o profissional. "Sempre viveu da capina e trabalhava de sol a sol. Ele, em realidade, é meu irmão mais velho, mas passa facilmente por meu pai. Devo muito a ele, que me permitiu ir para a cidade e estudar. Daí meus cuidados com ele, que está no fim da vida. Faço por ele uma parcela mínima do que ele já fez por mim".

O médico concordou com a observação, depois de admirar uma vez mais o rosto da moça e revoltar-se pelas condições desumanas com que os fazendeiros tratam seus peões. "Mas que morresse na própria casa, onde ele morara tantos anos e onde todos se haviam criado", eis o desejo dos familiares, insistiu ela. Depois, ela falou de si. Necessitando de estudar, fora para a cidade grande próxima, onde atualmente mora, trabalha e estuda à noite. Vida de roça nem pensar. Hoje, porém, sua mãe telefonou-lhe aflita, supondo que o filho não passaria desta noite. Daí sua presença, enfatizou mais uma vez.

O médico preencheu uma ficha, redigindo com os dados que lhe foram passados pela moça. Muitas informações ela desconhecia, pois quase não tinha tido mais contato com a família. Veio hoje à cidade como ato de caridade, a pedido da mãe, repetiu. Nem mesmo documentos de identidade ela trouxe na pressa, desconhecendo se o doente era ou não inscrito no INSS. "Isso, no entanto, não me impedirá de dar a ele a assistência de que ele necessita", concluiu ela, emocionada.

O jovem, mais atencioso do que seria razoável esperar de um médico nas circunstâncias, talvez pelo aspecto diferenciado da moça que, no meio de tanta gente feia, até parecia bonita, levou o paciente até a cama de exame, onde auscultou demoradamente seus principais órgãos. O velho respirava com grande dificuldade e o coração, viria a dizer a ela o médico depois de testar os chamados sinais vitais do paciente, não agüentaria muito tempo mais. Indagou sobre os remédios que ele tomava, mas ela não sabia informar, repetindo a mesma ladainha anterior.

"Com todo respeito, pense num carro bem velho, uma Brasília, por exemplo, dessas que ainda circulam pelas nossas estradas vicinais, caindo aos pedaços. Se formos substituir todas as peças que não funcionam a contento, o preço do conserto será maior do que o preço do carro. Melhor comprar um novo. Tudo o que podemos fazer é andar com o carro, mas tendo muito cuidado, sabendo que, mais dia menos dia". A moça o interrompeu educadamente. Sim, ela sabia que a comparação era exata, mesmo porque a família não tinha dinheiro para um tratamento numa cidade com mais recursos. Esperava apenas que o médico indicasse algum remédio que aliviasse o mal-estar do velho, para que, dizia com pesar mas sendo muito prática, ele morresse sem sofrer muito.

O jovem médico elogiou a objetividade da moça e rabiscou algo num papel timbrado, onde constava seu número de telefone particular. Qualquer emergência, que a jovem não tivesse dúvida em consultá-lo. Se necessário, iria até o sítio onde ele morava. Qual era mesmo ? Que ela não fizesse luxo com ele.

Naquela noite, de fato, o telefone da casa do médico tocou e confirmou-se o que já era esperado. Ela informou que precisaria de um documento para providenciar o enterro do falecido no dia seguinte, já que tinha compromissos inadiáveis na cidade onde morava. Passaria no consultório dele no outro dia, para poder regularizar a situação do defunto. Que viesse à sua casa assim que pudesse, propôs o médico. E realmente assim foi : logo pela manhã, lá estava o automóvel reluzente dela diante da casa do médico, onde ela obteve a declaração do óbito de Severino José de Albuquerque Cavalcanti, com o qual se dirigiu ao cartório local e providenciou o necessário atestado de óbito. Foi declarante sua esposa, que ali se identificou, Sandra Maria Cavalcanti.

Com o atestado na mão, a moça tomou o rumo da estrada e seguiu para a capital, onde, depois de devolver o automóvel à locadora, tomaria o avião cujo vôo fosse o mais próximo para a capital do Estado nordestino onde, na verdade, ela morava e de onde viera. Uma vez lá, entregou o atestado de óbito ao advogado, que requereria a extinção da punibilidade do temível criminoso, ora foragido, conhecido na região como Severo Mau, matador profissional que, condenado a mais de quarenta anos de prisão, escafedera-se dali, após fugir do presídio, em circunstâncias ainda não esclarecidas, sem ameaça a quem quer que seja e sem arrombamento algum, coisa mais espantosa. E cujo nome de batismo pouquíssima gente sabia ser Severino José de Albuquerque Cavalcanti.

O qual, outrossim, aguardava pela esposa num rancho de gado que havia adquirido na Argentina, cujo endereço só ela conhecia. E onde seriam, por fim, felizes para sempre.

"E como o senhor sabe de tudo isso ?" perguntei ao homem que regava sua narrativa com sucessivos goles de cerveja, refestelados nós ambos naquelas piscinas naturais de água quente da cidade balneária onde, pelo que tudo indicava, passávamos as férias e jogávamos conversa fora, como ali se diz. "Eu sou o tal advogado que o senhor ouviu ser mencionado no final da narrativa".

 

1Do livro Menas Verdades – Causos Forenses ou quase (no prelo)

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.