Direitos Humanos em pauta

A desconfessionalização do Direito, um legado protestante, uma herança em risco

Humberto Ramos de Oliveira Júnior e Maryuri Mora Grisales

Há duas semanas, celebrou-se o 506º aniversário da Reforma Protestante, um movimento religioso liderado por Martinho Lutero que teve um impacto significativo na Europa.

14/11/2023

Há duas semanas, celebrou-se os 506 anos da Reforma Protestante. O movimento religioso que tem na figura de Martinho Lutero o seu maior ícone, mas que conta com importantes predecessores e herdeiros.  A Reforma cindiu a Europa religiosa e politicamente, bem como fincou as bases sobre as quais se apoiaria a modernidade. Seu êxito se deveu a uma série de fatores, dentre os quais as insatisfações de alguns monarcas em relação aos desmandos da Igreja Romana, à qual estava sujeita toda a cristandade europeia. Assim, a possibilidade de romper com a tutela da Igreja de Roma, conservando uma identidade cristã, pareceu bastante sedutora aos governantes da época.

O continente se dividiu então entre católicos e protestantes. E esta fragmentação resultou, dentre outras coisas, em uma infinidade de guerras que assolaram regiões inteiras da Europa. Valendo dizer que não só entre católicos e protestantes havia disputas e divergências irreconciliáveis, mas também entre os próprios protestantes. Evidentemente, as bandeiras religiosas se tornaram bastante úteis para obnubilar as razões meramente políticas (materiais) não menos (ou talvez muito mais) importantes.

Não que o continente europeu experimentasse uma sólida unidade. Porém, a legitimidade de sua estrutura jurídico-política fundava-se numa só fonte religioso-teológica. Isso garantia o mínimo de coesão quando da necessidade de solucionar conflitos entre povos e indivíduos. Após a Reforma, esta centralidade se perde. Para conservar a unidade interna de cada nação, a religião do rei deveria ser a religião dos súditos. E cada nação teria sua própria produção teológica, que, evidentemente, influenciaria decisivamente nos rumos políticos de seu povo.

A despeito das mudanças produzidas pela cisão, a religião permaneceu um elemento fundamental para a orientação da vida política e social. Com a diferença que agora não havia mais apenas um modo de compreender as verdades e os desígnios de Deus. Assim, como definir quem estava com Deus? Quem agia em seu nome? Quem de fato estaria, com seu governo, a honrar seu nome? Uma das formas de responder estas questões era a guerra e a imposição de uma perspectiva sobre a outra após a vitória, que, obviamente, era tida como um sinal de aprovação divina.

O legado de Hugo Grotius

É neste contexto que o jurista holandês Hugo Grotius elabora sua obra magna: De jure Belli ac Pacis (Da guerra e da paz), publicada em 1625, na qual expõe sua concepção do Direito Natural. Obra que talvez constitua a primeira referência que se tem registro de uma visão dessacralizada ou desconfessionalizada do Direito. Isto é, o esforço para pensar o ordenamento jurídico para além das formulações teológicas. O que, em última instância, viria a contribuir para o processo de separação entre religião e Estado. Ou, quando menos, uma maior emancipação do poder político em relação à religião.

Filho de pai protestante e mãe católica, Grotius assumiu o desafio de elaborar um pensamento jurídico capaz de dar conta das intermináveis divergências existentes entre povos e nações, pondo termo às sangrentas guerras religiosas que marcariam o período pós-reforma (1524-1648). Levando-se em conta o papel fundamental das crenças religiosas para as cisões e confrontos então existentes, empenhou-se a conceber um ordenamento jurídico, que, para ser internacionalmente aceito, deveria fundar-se  na premissa etiamsi daremus non esse Deum (como se Deus não existisse).

Pode-se imaginar que alguns, desgostosos da proposta, devam tê-lo nomeado de apóstata. Um equívoco, pois Grotius era um calvinista piedoso. Tão piedoso que, no texto em que propõe esta inovadora forma de pensar o Direito Internacional (do qual foi precursor), oferece escusas pela sua proposição e praticamente recita sua confissão de fé pessoal, nos moldes da ortodoxia1.

Grotius não queria negar a Deus, mas suscitar uma mentalidade jurídico-política que pudesse superar as desavenças surgidas das guerras de religião, atacando o seu cerne: as distintas concepções religiosas e a necessidade de neutralidade e mediação entre estas. Em outras palavras, era fundamental encontrar uma base sólida a partir da qual fosse possível se estabelecer as regras do jogo a serem aceitas por todas as partes envolvidas, evitando assim reivindicações nascidas das particularidades de cada cosmovisão.

Ele acreditava que, conquanto Deus fosse uma das fontes do Direito, que se manifestava por meio da própria natureza, havia uma outra forma, também ofertada por Ele à humanidade, e se encontrava na razão. A partir desta “nova concepção do Direito Natural, o princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão”2.

A oportuna proposição de Grotius não ia ao encontro apenas das necessidades de uma Europa dividida. A ampliação das rotas comerciais favoreceu o intercâmbio entre culturas e tornou cada vez mais urgente a necessidade de se estabelecer consensos mínimos pelos quais as nações cristãs e povos não-cristãos poderiam firmar acordos.

O referido jurista teve a genial percepção de que, ao se estabelecer normas internacionais despidas de caráter teológico, transigir seria mais viável. O pacta sunt servanda não seria inviabilizado pela crença particular em uma divindade que pudesse se sobrepor aos interesses das partes. Por esta razão, Grotius é tido por muitos como o pai do Direito Internacional.

A ênfase numa abordagem centrada na razão e na pessoa humana contribuiu decisivamente para o processo de secularização da Lei. Não seria possível falar, por exemplo, em laicidade estatal, sem esta mudança de chave hermenêutica. E, mesmo nos países que hoje se mantêm como Estado confessional, em maior ou menor grau, especialmente no mundo dito ocidental, concebe-se a ideia de pluralidade religiosa. O que resulta em certo grau de emancipação da política em relação à religião.

Uma herança em cheque, um risco à dignidade humana

Há mais de 30 dias, o mundo assiste à ofensiva do Estado de Israel sobre a Faixa de Gaza e na Cisjordânia, como uma resposta a ataques realizados pelo grupo Hamas no dia 7 de outubro. A população civil de Gaza tem sido a maior prejudicada. O número de mortos ultrapassa os 10 mil, sendo que mais de 4 mil são crianças. Nas redes sociais podem ser encontradas imagens vetadas pelos canais de televisão dada sua gravidade e horror. O conteúdo é excruciante. Especialmente o que envolve crianças. Mas importa chamar a atenção para um importante elemento. O discurso religioso que tem operado nesta “guerra”!

Diante da denúncia de não cumprimento das normas de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos por parte de Israel, bem como o pedido para que estas, que visam garantir o mínimo existencial dos mais vulneráveis num contexto de guerra, sejam observadas, o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem se valido de fundamentos religiosos para legitimar suas ações. Em um discurso à nação no dia 29 de outubro, Netanyahu fez menção ao povo Amalequita – adversário do povo hebreu nas narrativas bíblicas3 – ao se referir à operação em Gaza. Para uma pessoa medianamente conhecedora dos textos bíblicos, meia palavra basta. Trata-se de uma justificativa para a ofensiva que tem sido denunciada como “genocida”. Mas, afinal, o que diz o texto bíblico sobre os Amalequitas?

Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. 1 Samuel 15:34

O discurso se deu dois dias após a aprovação de uma resolução da Assembleia Geral Extraordinária da ONU que, dentre outras coisas, apelou para uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada. Uma decisão com ampla maioria, com 120 votos a favor, 14 contra e 45 abstenções. A respeito do resultado, Gilad Erdan, o embaixador de Israel na ONU, comentou: “Hoje é um dia que será considerado infame. Todos testemunhamos que a ONU já não tem nem um pingo de legitimidade ou relevância”5.

Evidentemente, trata-se do caso mais recente, porém não isolado. Tem sido frequente o uso da religião por diversos líderes políticos como fundamento para incursões bélicas. O que realmente parece novo e temeroso é o esforço de desmoralização da ONU e demais organismos internacionais. Este rechaço, aliado à ascensão política de grupos fundamentalistas religiosos, alguns dos quais renovam ideologias nazifascistas, parece querer reeditar uma (não)governança global pré-moderna, baseada na lei do mais forte.

Neste cenário, no qual textos religiosos são reivindicados como elementos de fundamentação de atos políticos e, ao mesmo tempo, mecanismos como a ONU são desdenhados, deve-se ligar o sinal de alerta. O tempo presente está assistindo à erosão dos mecanismos internacionais cujo objetivo máximo era a manutenção e promoção da paz.

O legado oriundo da Reforma Protestante, das preocupações de juristas como Hugo Grotius e da custosa luta de homens e mulheres em prol da afirmação da dignidade da pessoa humana encontra-se em cheque. O que significa, em outras palavras, que a comunidade global corre perigo. O rechaço ao pacto consensual mínimo entre as nações, aliada a impotência da ONU diante de terríveis violações de direitos humanos, apontam para um mundo de insegurança e medo.

É importante lembrar que, num mundo governado por deuses, não raro a vida humana é oferecida em sacrifício.

____________

1 GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Ijuí: Fondazione Cassamarca, (1625) 2004, p.40-41.

2 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11º Edição. Revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2015, p. 308.

3 Disponível em: https://sarajevotimes.com/israeli-pm-tried-to-justify-the-killing-of-palestinians-remember-what-our-bible-says/. Acesso 07 de novembro de 2023.

4 Versão Almeida Revista e Corrigida.

5 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl05z761y3o. Acesso em: 07 de novembro de 2023.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.