Direitos Humanos em pauta

Audácia e coragem: O MS que confronta exclusões históricas e testa os limites da discricionariedade de Lula na nomeação ao STF

O MS 40.573/DF desafia o STF e Lula a priorizar mulheres negras na Corte, reforçando igualdade, Justiça e cumprimento de direitos humanos no Brasil.

18/11/2025

A composição do STF, com seus 135 anos de República, é um espelho que, nem de longe, reflete a realidade do Brasil. Em um país onde a população negra representa 56% e as mulheres negras são 28% – quase um terço da nação –, o quadro histórico da mais alta Corte é de profunda e sistêmica exclusão: dos 172 ministros que já ocuparam cadeiras, 168 foram homens brancos, 4 foram homens negros, 3 foram mulheres brancas, e zero foram mulheres negras.

Essa persistente ausência de representação, longe de ser um mero dado estatístico, é a força motriz de um ato de audácia e coragem: o MS - mandado de segurança preventivo 40.573/DF ajuizado pela Defemde - Rede de Juristas Feministas contra o presidente da República. O objeto da ação é compelir a autoridade coatora, neste caso, o presidente Lula, a se abster de indicar um homem branco e priorizar a nomeação de uma mulher negra para a vaga deixada pelo ministro Barroso.

A iniciativa não apenas questiona, mas desafia os limites e a extensão da prerrogativa discricionária do chefe do Executivo, argumentando que a ameaça de nomeação de outro homem branco  configura um justo receio de que se consume uma violação de direitos fundamentais.

A discricionariedade não é um cheque em branco: O bloco de constitucionalidade

A tese central do mandado de segurança reside na interpretação de que a discricionariedade presidencial na escolha dos ministros do STF não constitui um "cheque em branco". Embora a Constituição Federal estabeleça a escolha como uma prerrogativa do presidente, essa decisão está intrinsecamente amarrada ao bloco de constitucionalidade e aos compromissos internacionais assumidos pelo nosso país em matéria de direitos humanos.

Isso significa que, para ser legal e legítima, a decisão deve respeitar os tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, notadamente aqueles que possuem status hierárquico privilegiado em nosso ordenamento jurídico. O MS invoca, crucialmente:

1. A CEDAW Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (decreto 4.377, de 13/9/02.)

2. A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, recepcionada pelo decreto 10.932/22, que possui status de emenda constitucional.

3. A ICERD - Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (decreto 65.810, DE 8/12/1969).

Esses instrumentos obrigam o Estado brasileiro a tomar toda medida apropriada para eliminar toda discriminação contra a mulher na vida política e a combater o racismo. Ignorar a histórica e estatística exclusão de mulheres negras da mais alta Corte não é uma escolha neutra; é uma omissão e uma violação legal das obrigações assumidas pelo Brasil perante a comunidade internacional.

A peça aponta a flagrante violação ao art. 9 da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância - e, portanto, a Constituição Federal - que preconiza como dever do Estado: “(...) garantir que seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população, de acordo com o alcance desta Convenção.”

A nomeação de uma mulher negra, nesse contexto, não é um favor, mas uma ação afirmativa e um dever do Estado para mitigação das desigualdades no exercício do cumprimento do que determina a Constituição e os Tratados internacionais de direitos humanos que a expandem.

A tese desvio de finalidade e abuso de poder

A petição também se sustenta na inovadora tese do abuso de poder por desvio de finalidade. Isto porque todo ato de governo deve ser motivado e buscar um propósito público, vinculado aos princípios da Administração. No caso da escolha para o STF, a finalidade não se esgota no mero preenchimento da vaga e, tampouco, nas predileções ou confiança pessoal do Presidente da República, o propósito é fortalecer a legitimidade do Judiciário e construir uma sociedade mais justa, igualitária e solidária.

Ao optar por um perfil historicamente super representado (homem branco), em detrimento da demanda pela inclusão de mulheres negras, o presidente estaria usando sua prerrogativa para um fim distinto daquele publicamente exigido: ao invés de promover a justiça e a pluralidade, estaria mantendo a estrutura de exclusão. A manutenção da desigualdade, após as indicações recentes que tornaram o STF a segunda corte suprema com maior desigualdade de gênero na América Latina, configura o uso do poder para um fim diverso do público, caracterizando o desvio.

O próprio STF, em julgados paradigmáticos como a ADPF 186, o RE 597.285 e a ADPF 742, reconheceu que o racismo no Brasil é estrutural e que a superação dessa desigualdade demanda medidas estatais afirmativas. Essa compreensão deveria orientar, inevitavelmente, a composição da própria Corte.

É um território novo no direito, que busca obrigar o Executivo a cumprir obrigações que já assumiu. Se aceita, esta tese abrirá um precedente importantíssimo para a observância obrigatória do gênero e da raça em nomeações para posições cruciais no cenário político-jurídico brasileiro.

A necessidade da vivência plural

A ausência de mulheres negras na mesa de debates do STF limita a capacidade da Corte de deliberar com a necessária empatia e profundidade de conhecimento sobre temas cruciais para a população negra. O STF decide sobre temas importantes que afetam as mulheres e população negra, tais como, violência policial, direitos sexuais e reprodutivos da mulher, segurança pública e educação. A falta de certas vivências na composição do tribunal prejudica a possibilidade de construção de decisões mais plurais e verdadeiramente justas. É, portanto, não apenas uma pauta sobre as pessoas excluídas histórica e sistematicamente da composição Corte (o que seria por si só já relevante argumento constitucional e convencional), mas também sobre a melhora da qualidade da jurisdição para todas as pessoas.

O Mandado de Segurança é, portanto, um pedido de mudança estrutural. O pleito final é a confirmação da segurança, compelindo a presidência a se abster de indicar perfis dominantes e a priorizar a indicação de perfis historicamente segregados, como as mulheres negras, até que o direito humano à igualdade seja, de fato, alcançado.

O relator, ministro André Mendonça, em decisão inédita, ao recepcionar a ação despachou determinando a notificação do presidente da República para prestar informações no prazo de dez dias. O despacho do relator não é um ato qualquer, pelo contrário, aponta para um caminho possível que sem a ousadia e coragem dessas juristas poderia não ser nem ao menos um norte de esperança.

O Brasil atravessa um momento decisivo. Ao colocar sob escrutínio a prerrogativa presidencial e convocar o STF a responder se a Constituição e os tratados internacionais têm força normativa real - ou se seguem sendo apenas promessas retóricas - o MS 40.573/DF inaugura um novo patamar de responsabilização democrática. O caso é mais do que um pedido para preencher uma vaga: é uma convocação à coragem institucional. Se a Constituição de 1988 pretende ser a carta de um país plural, e se os tratados internacionais alçados ao bloco de constitucionalidade têm alguma densidade normativa, então a representação de mulheres negras no STF não é uma aspiração simbólica, mas um imperativo jurídico. O desfecho dirá se a diversidade que tomou a rampa do Palácio do Planalto na posse de Lula, com a presença de uma mulher negra entre os demais, fará do princípio da igualdade um compromisso concreto - ou se continuaremos a perpetuar a contradição entre o país que somos e o país que insistimos em não ser.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.