Gramatigalhas

Primeiros documentos oficiais em português

Como eram emitidos os documentos oficiais no período do português fonético? Veja a análise do professor!

28/12/2022
O leitor Matheus de Oliveira Silva envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Sou professor de Português iniciante. Em sala, eu falava da importância de estudar Gramática, quando um aluno me surpreendeu com a seguinte pergunta, em palavras mais simples: Como eram emitidos os documentos oficiais no período do português fonético? Fiquei desarmado. Mas então: usavam um português despadronizado? Recorriam ao latim? Como faziam? Agradecimentos do Brasil".

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Sou professor de Português iniciante. Em sala, eu falava da importância de estudar Gramática, quando um aluno me surpreendeu com a seguinte pergunta: Como eram emitidos os documentos oficiais no período do português fonético? Fiquei desarmado. Mas então: usavam um português despadronizado? Recorriam ao latim? Como faziam?"

2) Para nivelar as informações históricas necessárias acerca das origens do português, faça-se a seguinte síntese: (i) a língua portuguesa, como diversas outras, teve origem no latim vulgar, que era o idioma oficial de Roma levado pelos soldados para as áreas conquistadas pelo Império Romano; (ii) com as alterações havidas no falar das diversas regiões do império, começaram a surgir, a partir do século V, as outras línguas românicas, a saber, o francês, o espanhol, o italiano, o sardo, o provençal, o rético, o franco-provençal, o dálmata e o romeno; (iii) no século XIII, surgiu o galego-português na Espanha e em Portugal; (iv) entre o século XIII e o início do século XVI, nasceu o português arcaico em terras lusitanas; (v) depois desse tempo, veio, então, o português moderno, que teve em Camões o grande responsável por sua uniformização.

3) Ora, não importando se o português ainda era rudimentar ou se já era mais avançado em termos de evolução, o certo é que, ao longo de todo esse tempo, sempre houve uma escrita que correspondeu à fala do tempo respectivo. Desse modo, não se pode dizer de um português falado (ou fonético), que não encontrasse correspondência em um português escrito, certo como é que a fala e a escrita sempre andaram em paralelo, não importando o estádio de evolução do idioma.

4) Para atestar essa afirmação, importa ver que, já nos primórdios da língua, havia o Trovadorismo, uma tendência cultural que se estende de 1189 (ou 1198) até 1434. Surgiu possivelmente na França e se estendeu a outros países, dentre os quais Portugal, entre os séculos XI e XII. E em Portugal foram escritas – repita-se, foram escritas – inúmeras cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer, as quais se encontram preservadas até os dias de hoje. Vale ressaltar: não se tratava de uma língua falada, que não correspondesse a uma língua escrita, mas tais manifestações culturais encontravam registros físicos, que não se limitavam a uma tradição oral.

5) Quanto aos documentos oficiais, não apenas em Portugal, mas em toda a Europa, normalmente eram escritos em latim, e só a partir do reinado de Dom Dinis, que instituiu a língua portuguesa como o idioma oficial da corte, foi que os documentos passaram a ser redigidos em português. Ou seja: apenas em 1290 Dom Dinis declarou o galego-português como língua oficial do Reino de Portugal, e foi quando, por consequência, seu uso foi estendido às fórmulas da escrita notarial e aos documentos oficiais.

6) Em língua e em terras lusitanas, porém, pouco antes disso, o primeiro documento escrito em português data de pouco mais de 800 anos. Trata-se do testamento de Dom Afonso II, de 1214, hoje depositado na Torre do Tombo, em Lisboa, o qual assim se iniciava: "En o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal. seendo sano e saluo temente o dia de mia morte a saude de mia alma. e a proe de mia molier raina dona Orraca e de meus filios e de meus uassalos…". Atualizando para o português de hoje: "Em nome de Deus. Eu, rei D. Afonso, pela graça de Deus rei de Portugal, estando são e salvo, temendo o dia da minha morte, para a salvação da minha alma e para proveito de minha mulher, a rainha D. Orraca e de meus filhos e de meus vassalos…".

7) Com essas considerações, torna-se, de modo específico, à dúvida do leitor, e sobre ela se pode dizer de modo prático: (i) em Portugal, apenas em 1290, o rei Dom Dinis declarou o galego-português língua oficial do reino; (ii) isso significa que apenas a contar desse ano foi tornado obrigatório o uso desse idioma nos documentos oficiais; (iii) antes, normalmente se empregava o latim vulgar para essa finalidade; (iv) mesmo não sendo obrigatório o emprego do português em documentos oficiais, todavia, tem-se conhecimento de que, algumas décadas antes, já se lavrava um primeiro documento importante em português, e isso em 1214; (v) diga-se, além disso, que, assim como a língua estava em um estádio bastante rudimentar a essa época, também a estruturação gramatical seguia em mesmo passo; (vi) e não havia como exigir mais do que isso, já que a Gramática não inventa, mas estrutura os fatos da língua, considerada esta como situação de fato; (vii) não se há de falar em um português estritamente fonético, sem correspondência com uma língua escrita em tempo algum, já que, em todas as épocas, houve registros escritos do idioma, não importando seu grau de pouca evolução a esse tempo.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.