Insolvência em foco

O contrato de administração fiduciária de garantias: Uma nova modalidade contratual na lei 14.711/23

Dentre as alterações legais promovidas pela lei 14.711/23, houve a inclusão do artigo 853-A ao Código Civil, com a previsão do Contrato de Administração Fiduciária de Garantias. A nova modalidade contratual traz inovação, permitindo concurso de garantias, gestão eficiente e flexibilidade remuneratória, potencialmente reduzindo custos de crédito.

21/11/2023

A legislação brasileira é dinâmica e está em constante evolução para se adaptar às mudanças na sociedade e no mercado. Nesse contexto, a lei14.711/231 trouxe inovações ao Código Civil2 ao incluir o artigo 853-A, que estabelece o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias como uma nova modalidade contratual. Esta inclusão no Código Civil visa aprimorar o sistema de garantias, proporcionando maior segurança e eficiência na gestão dos ativos garantidores.

Trata-se de novíssima modalidade contratual típica incluída pela lei 14.711/23 no Código Civil, de forma que inexistem precedentes suficientes para se embasar um estudo prático sobre o tema. Estas são, portanto, as primeiras impressões sobre o instituto que ainda será colocado à prova pelos operadores do direito nos desafios cotidianos.

O cerne do contrato está expresso no caput do artigo 853-A, que dispõe que qualquer garantia pode ser constituída, registrada, gerida e executada por um agente de garantia designado pelos credores da obrigação garantida. Este agente atuará em nome próprio, mas em benefício dos credores, inclusive em litígios relacionados à validade da garantia. É ressaltado que qualquer cláusula que contrarie essa disposição em desfavor do devedor ou do terceiro prestador da garantia é vedada.

A introdução do Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, por meio da lei 14.711/23, representa uma significativa inovação no âmbito das relações contratuais ao permitir a criação de um concurso de garantias preexistente, sob a gestão do agente de garantia. Essa modalidade possibilita a inclusão e exclusão de operações com diversos credores, conferindo flexibilidade e dinamismo ao sistema.

O agente de garantia, ao atuar como administrador desse concurso, não apenas gerencia as garantias existentes, mas também facilita a entrada de novos credores ou a retirada de antigos, proporcionando uma estrutura adaptável e eficiente que atende às demandas mutáveis do mercado. Essa flexibilidade no gerenciamento do concurso de garantias amplia as opções disponíveis para os participantes, ao mesmo tempo em que fortalece a segurança jurídica das relações creditícias.

Esse dispositivo confere agilidade ao processo, alinhando-se com a busca por eficiência no sistema jurídico. Com a previsão do caput de que o agende de garantias tem a possibilidade de pleitear a execução da garantia, verifica-se que essa situação configuraria uma espécie de outorga de poderes, em que o credor autoriza, expressamente o agente a requerer em seu nome a execução.

Também existe a previsão de que o agente fará a atuação em nome próprio. Nesse caso o instituto se assemelharia a uma substituição processual, um conceito que envolve a capacidade de uma pessoa ou entidade em atuar em juízo em nome de outra, defendendo direitos alheios como se fossem seus próprios. A substituição processual pode ocorrer quando há previsão legal para tal, permitindo que o substituto exerça as prerrogativas processuais em lugar do substituído.

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

No parágrafo 1º, o legislador prevê também a possibilidade de execução extrajudicial da garantia pelo agente, desde que haja previsão na legislação especial aplicável. Um bom exemplo dessa aplicação ocorrerá na alienação fiduciária de imóveis.

O agente de garantia, conforme estabelecido no parágrafo 2º, assume um dever fiduciário em relação aos credores da obrigação garantida. Essa responsabilidade é reforçada pelo parágrafo 3º, que autoriza a substituição do agente, por decisão do credor único ou da maioria simples dos titulares dos créditos garantidos. A substituição, no entanto, só produz efeitos após a devida publicidade, assegurando a transparência no processo.

As assembleias dos titulares dos créditos garantidos, previstas no parágrafo 4º, terão seus requisitos de convocação e instalação estipulados no ato de designação ou contratação do agente de garantia. Essa previsão confere maior flexibilidade às partes envolvidas, permitindo a adaptação do procedimento conforme a necessidade.

O parágrafo 5º estabelece que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia, inatingível por suas obrigações por até 180 dias. Essa medida visa resguardar a integridade dos recursos até sua transferência aos credores garantidos.

 A nova Lei, ao estabelecer nesse dispositivo que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia por até 180 dias, traz um conceito que se assemelha ao do "patrimônio de afetação". Verifica-se que ambos visam proteger recursos específicos, no entanto, enquanto o primeiro é temporário e vinculado à realização da garantia, o segundo é uma figura mais permanente, aplicada especialmente em empreendimentos imobiliários, segregando ativos e passivos específicos do empreendimento. Ambas as abordagens buscam assegurar a integridade financeira e a efetiva destinação dos recursos para os fins previstos.

O parágrafo 6º estabelece um prazo crucial no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, determinando que o agente de garantia dispõe de dez dias úteis após a realização da garantia para efetuar o pagamento aos credores. Essa disposição enfatiza a necessidade de celeridade na distribuição dos recursos, contribuindo para a eficácia do processo e garantindo que os titulares dos créditos se beneficiem rapidamente da realização da garantia. Essa medida reforça o compromisso do legislador em proporcionar um ambiente contratual eficiente e ágil.

Além disso, o legislador, no parágrafo 7º, permite que o agente de garantia mantenha contratos paralelos com o devedor para diversos serviços, como pesquisa de ofertas de crédito, auxílio na formalização de contratos e intermediação em questões contratuais. Contudo, o agente deve agir com estrita boa-fé perante o devedor, conforme estabelecido no parágrafo 8º.

Embora a lei 14.711/23 não preveja expressamente a remuneração do agente de garantia no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, é razoável inferir que tal ônus será suportado pelos contratantes do serviço, os quais se beneficiam da gestão especializada dos ativos garantidores. A lógica contratual sugere que a remuneração do agente seja objeto de livre estipulação, alinhando-se com o princípio da autonomia da vontade das partes envolvidas. Dessa forma, a ausência de uma definição específica na lei oferece espaço para a negociação e estabelecimento de condições remuneratórias que atendam às necessidades e expectativas dos contratantes, promovendo, assim, uma relação contratual mais flexível e adaptável às peculiaridades de cada transação.

Em síntese, o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, introduzido pela lei 14.711/23, representa um avanço no ordenamento jurídico ao oferecer uma alternativa eficiente e segura para a gestão de garantias, promovendo a celeridade e a transparência nas relações contratuais.

Essa inovação reflete a constante busca por aprimoramento e modernização do direito civil brasileiro e promove potencial diminuição dos custos de crédito. Ao permitir a gestão eficiente e especializada dos ativos garantidores por parte do agente de garantia, essa modalidade contratual contribui para a redução de riscos e, consequentemente, para a mitigação dos custos associados à concessão de crédito.

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  1. BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2003. Dentre outros assuntos, altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União de 31 de outubro de 2023
  2. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139
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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

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