Levando a sério o erro judiciário

O acidente Judiciário e sua prevenção

Marcelo Honorato e Fernando Braga

Marcelo Honorato e Fernando Braga exploram o erro Judiciário como resultado de falhas humanas e sistêmicas e defendem um modelo inspirado na aviação, confidencial, preventivo e voltado ao aprendizado para proteger a liberdade e reduzir injustiças.

14/11/2025

1. O erro Judiciário como erro humano 

Errar é humano. Possivelmente, esse dito popular reproduz o postulado mais conhecido das ciências da segurança. Foi justamente devido ao sério reconhecimento da falibilidade humana que o transporte aéreo se tornou um dos sistemas mais seguros do mundo contemporâneo.

Aqui se encontra o primeiro passo para que a ciência da segurança (safety science) possa ser aplicada à atividade judiciária: reconhecer que o erro Judiciário está intimamente relacionado ao erro humano, capaz de produzir um julgamento em desacordo com o padrão desejado e levar a um verdadeiro acidente Judiciário.

O segundo passo para a implementação do que poderia ser visto como um modelo de segurança para o Sistema de Justiça é admitir que esse erro humano, antes de ser a causa de um acidente Judiciário, é consequência de fatores contribuintes diversos, cuja mitigação depende, antes de tudo, de sua oportuna identificação.

2. O erro humano na prevenção de acidentes aeronáuticos e Judiciários

O descumprimento do padrão previsto para o exercício de competências profissionais é denominado erro profissional. Também estudado pela ciência do Direito Penal, ali ele é tradicionalmente analisado à luz da teoria causal da condição sine qua non, isto é, somente terá relevância quando for imprescindível para a produção do resultado delitivo.

Já no campo das ciências aeronáuticas, o erro profissional decorre de uma multiplicidade de fatores contribuintes que, em conjunto - cada um em sua própria medida -, levam ao acidente. Trata-se da teoria causal múltipla, formulada por James Reason1, segundo a qual diversos fatores, ainda que latentes, precisam confluir para que o sinistro se consume.

Nessa perspectiva, o erro profissional está atrelado a fatores múltiplos, como2: ansiedade, fadiga, insônia, sobrecarga de tarefas, falta de atenção, deficiência na seleção e na capacitação, falhas no processo decisório, excesso de autoconfiança, dificuldades de comunicação e inadequação perceptiva. Todos esses aspectos podem ser facilmente projetados para a análise do erro Judiciário.

No plano operacional, enquanto as investigações aeronáuticas avaliam o funcionamento dos veículos aéreos e o cumprimento dos procedimentos operacionais padrão, o erro Judiciário pode estar vinculado à insuficiência ou desatualização das regras ou à sua aplicação inadequada - como na aplicação de mitos e estereótipos na inferência probatória.

3. Por um sistema de prevenção de acidentes Judiciários

Uma das mais poderosas ferramentas de prevenção de acidentes aeronáuticos é o estudo minucioso de cada sinistro, do qual se extraem lições aprendidas e recomendações de segurança3.

De modo análogo, um futuro sistema de prevenção de acidentes Judiciários, voltado à prevenção do erro, exigirá a análise de cada “acidente Judiciário”, para que seus fatores contribuintes sejam identificados e mitigados4.

Quanto maior a base de dados, mais eficaz será o sistema. Daí a limitação de se investigar apenas casos amplamente divulgados pela mídia. E, nesse ponto, é inegável que os casos de erro Judiciário passam pelo juiz da causa. Contudo, dificilmente agentes colaborarão com atividades preventivas se o sistema não for “não sancionatório”, de adesão voluntária e confidencial.

Esses princípios - voluntariedade, confidencialidade e blindagem sancionatória - explicam a alta capacidade preventiva do SIPAER - Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos5, que consagra tais garantias processuais6. O art. 88-I, §3º, do CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica assegura o fornecimento voluntário de informações para uso exclusivo em atividades de prevenção7. Já o §2º do mesmo art.8 impede que os resultados das investigações sejam utilizados para impor qualquer tipo de responsabilidade, ressalvada a autonomia de eventual processo próprio, independente da investigação preventiva (art. 88-B9).

Assim como na aviação, a eficácia de um sistema de prevenção de acidentes Judiciários dependerá do grau de confiança dos participantes10 - juízes, servidores, policiais e membros do Ministério Público - na promessa de independência investigativa e ausência de punição. Sem essa confiança, será impossível ter acesso a casos reais de erro.

A falta de confiança também inviabiliza o acesso a elementos cruciais da composição do erro Judiciário, como fadiga, sobrecarga, práticas institucionais, deficiências de formação, falhas de percepção ou inadequações procedimentais11 - fatores que exigem análise psicológica e organizacional dos operadores do Direito, os quais não podem ser compelidos a produzir provas contra si.

É previsível que, junto com o imenso ganho institucional que o Poder Judiciário obteria com a criação de um sistema de prevenção de acidentes Judiciários, seja necessária a construção de um arcabouço normativo protetivo para a colaboração dos operadores do Direito, em simetria com os postulados da safety science.

Por fim, vale lembrar que a atribuição constitucional do Poder Judiciário de administrar o sistema de justiça, por intermédio do CNJ, inclui o dever de adotar mecanismos de prevenção de acidentes Judiciários - em sentido amplo, instrumentos de prevenção de erros.

Se, no SIPAER, o objetivo é proteger a vida e os recursos materiais, no sistema de justiça deve-se buscar resguardar a liberdade e a dignidade humanas.

Voltando ao início: sim, errar é humano, mas persistir no erro não.

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1 REASON, J. Human error. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

2 BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-6: Manual de investigação do Sipaer. Brasília, 2017, item 6.1.

3 Art. 88-H.  A investigação Sipaer de acidente aeronáutico será concluída com a emissão do relatório final, documento que representa o pronunciamento da autoridade de investigação Sipaer sobre os possíveis fatores contribuintes de determinado acidente aeronáutico e apresenta recomendações unicamente em proveito da segurança operacional da atividade aérea.

4 BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-15: Gestão da Segurança de Voo na Aviação Militar. Brasília, 2024, item 3.5.

5 O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), órgão central do Brasil, ao lado do órgão francês de prevenção de acidentes aeronáuticos (BEA), obteve o melhor desempenho de todo os Estados que integram a Organização Internacional de Aviação Civil (OACI) em auditoria realizada em 2023. Mais detalhes, clique aqui. Acesso em: 13 jun. de 2024.

6 HONORATO, M. Crimes aeronáuticos. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025, p. 629.

7 Art. 88-I, § 3o:  Toda informação prestada em proveito de investigação Sipaer e de outras atividades afetas ao Sipaer será espontânea e baseada na garantia legal de seu exclusivo uso para fins de prevenção. 

8 Art. 88-I, § 2o:  A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.

9 Art. 88-B.  A investigação Sipaer de um determinado acidente, incidente aeronáutico ou ocorrência de solo deverá desenvolver-se de forma independente de quaisquer outras investigações sobre o mesmo evento, sendo vedada a participação nestas de qualquer pessoa que esteja participando ou tenha participado da primeira.

10 No julgamento da ADI 5667, foi reconhecida a relevância da relação de confiança entre os operadores aéreos e o Sipaer, bem como a importância da análise judicial para o compartilhamento de informações de segurança com o processo criminal: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 12.970/2014. CÓDIGO BRASILEIRO DE AERONÁUTICA (CBA). CARÁTER PREVENTIVO DAS INVESTIGAÇÕES SIPAER. [...]. 10. A confidencialidade das contribuições voluntárias e a limitação do seu uso em processos judiciais (CBA, art. 88-I, § 2º) são imprescindíveis para que os operadores da aviação continuem a reportar situações de insegurança ocorridas no dia a dia da aviação e, assim, colaborem para um espaço aéreo mais seguro. Também evitam que depoimentos autoincriminatórios – os quais podem ser de grande valia para a segurança aérea – sejam de algum modo utilizados indevidamente no processo penal. [...]. (ADI 5667, Relator: Ministro Nunes Marques, Tribunal Pleno, julgado em 14.08.2024, divulgação 15.10.2024, publicação 16.10.2024, grifos nossos).

11 As interações profissionais no ambiente de trabalho são objeto de aperfeiçoamento e avaliação com a ferramenta Corporate Resource Management – CRM (Gestão de Recurso Corporativos), que entende o erro humano como onipresente e inevitável, porém, uma valiosa fonte de informações. (BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-10: Manual do Facilitador de CRM (Corporate Resource Management) da Força Aérea Brasileira. Brasília, 2023, item 2.4.5.).

A ferramenta CRM também tem sido aplicada à medicina. Disponível aqui. Acesso em: 13 jun. de 2024.

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Colunista

Fernando Braga é professor do mestrado da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados-ENFAM. Líder do Laboratório de Prevenção de Erros Judiciários (GP-ENFAM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha). Membro da Comissão Acadêmica do Exame Nacional da Magistratura-ENAM. Membro da Academia Americana de Ciências Forenses (jurisprudence). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª região. Ex-procurador da República.