O acidente Judiciário e sua prevenção
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Atualizado em 13 de novembro de 2025 09:42
1. O erro Judiciário como erro humano
Errar é humano. Possivelmente, esse dito popular reproduz o postulado mais conhecido das ciências da segurança. Foi justamente devido ao sério reconhecimento da falibilidade humana que o transporte aéreo se tornou um dos sistemas mais seguros do mundo contemporâneo.
Aqui se encontra o primeiro passo para que a ciência da segurança (safety science) possa ser aplicada à atividade judiciária: reconhecer que o erro Judiciário está intimamente relacionado ao erro humano, capaz de produzir um julgamento em desacordo com o padrão desejado e levar a um verdadeiro acidente Judiciário.
O segundo passo para a implementação do que poderia ser visto como um modelo de segurança para o Sistema de Justiça é admitir que esse erro humano, antes de ser a causa de um acidente Judiciário, é consequência de fatores contribuintes diversos, cuja mitigação depende, antes de tudo, de sua oportuna identificação.
2. O erro humano na prevenção de acidentes aeronáuticos e Judiciários
O descumprimento do padrão previsto para o exercício de competências profissionais é denominado erro profissional. Também estudado pela ciência do Direito Penal, ali ele é tradicionalmente analisado à luz da teoria causal da condição sine qua non, isto é, somente terá relevância quando for imprescindível para a produção do resultado delitivo.
Já no campo das ciências aeronáuticas, o erro profissional decorre de uma multiplicidade de fatores contribuintes que, em conjunto - cada um em sua própria medida -, levam ao acidente. Trata-se da teoria causal múltipla, formulada por James Reason1, segundo a qual diversos fatores, ainda que latentes, precisam confluir para que o sinistro se consume.
Nessa perspectiva, o erro profissional está atrelado a fatores múltiplos, como2: ansiedade, fadiga, insônia, sobrecarga de tarefas, falta de atenção, deficiência na seleção e na capacitação, falhas no processo decisório, excesso de autoconfiança, dificuldades de comunicação e inadequação perceptiva. Todos esses aspectos podem ser facilmente projetados para a análise do erro Judiciário.
No plano operacional, enquanto as investigações aeronáuticas avaliam o funcionamento dos veículos aéreos e o cumprimento dos procedimentos operacionais padrão, o erro Judiciário pode estar vinculado à insuficiência ou desatualização das regras ou à sua aplicação inadequada - como na aplicação de mitos e estereótipos na inferência probatória.
3. Por um sistema de prevenção de acidentes Judiciários
Uma das mais poderosas ferramentas de prevenção de acidentes aeronáuticos é o estudo minucioso de cada sinistro, do qual se extraem lições aprendidas e recomendações de segurança3.
De modo análogo, um futuro sistema de prevenção de acidentes Judiciários, voltado à prevenção do erro, exigirá a análise de cada "acidente Judiciário", para que seus fatores contribuintes sejam identificados e mitigados4.
Quanto maior a base de dados, mais eficaz será o sistema. Daí a limitação de se investigar apenas casos amplamente divulgados pela mídia. E, nesse ponto, é inegável que os casos de erro Judiciário passam pelo juiz da causa. Contudo, dificilmente agentes colaborarão com atividades preventivas se o sistema não for "não sancionatório", de adesão voluntária e confidencial.
Esses princípios - voluntariedade, confidencialidade e blindagem sancionatória - explicam a alta capacidade preventiva do SIPAER - Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos5, que consagra tais garantias processuais6. O art. 88-I, §3º, do CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica assegura o fornecimento voluntário de informações para uso exclusivo em atividades de prevenção7. Já o §2º do mesmo art.8 impede que os resultados das investigações sejam utilizados para impor qualquer tipo de responsabilidade, ressalvada a autonomia de eventual processo próprio, independente da investigação preventiva (art. 88-B9).
Assim como na aviação, a eficácia de um sistema de prevenção de acidentes Judiciários dependerá do grau de confiança dos participantes10 - juízes, servidores, policiais e membros do Ministério Público - na promessa de independência investigativa e ausência de punição. Sem essa confiança, será impossível ter acesso a casos reais de erro.
A falta de confiança também inviabiliza o acesso a elementos cruciais da composição do erro Judiciário, como fadiga, sobrecarga, práticas institucionais, deficiências de formação, falhas de percepção ou inadequações procedimentais11 - fatores que exigem análise psicológica e organizacional dos operadores do Direito, os quais não podem ser compelidos a produzir provas contra si.
É previsível que, junto com o imenso ganho institucional que o Poder Judiciário obteria com a criação de um sistema de prevenção de acidentes Judiciários, seja necessária a construção de um arcabouço normativo protetivo para a colaboração dos operadores do Direito, em simetria com os postulados da safety science.
Por fim, vale lembrar que a atribuição constitucional do Poder Judiciário de administrar o sistema de justiça, por intermédio do CNJ, inclui o dever de adotar mecanismos de prevenção de acidentes Judiciários - em sentido amplo, instrumentos de prevenção de erros.
Se, no SIPAER, o objetivo é proteger a vida e os recursos materiais, no sistema de justiça deve-se buscar resguardar a liberdade e a dignidade humanas.
Voltando ao início: sim, errar é humano, mas persistir no erro não.
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1 REASON, J. Human error. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
2 BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-6: Manual de investigação do Sipaer. Brasília, 2017, item 6.1.
3 Art. 88-H. A investigação Sipaer de acidente aeronáutico será concluída com a emissão do relatório final, documento que representa o pronunciamento da autoridade de investigação Sipaer sobre os possíveis fatores contribuintes de determinado acidente aeronáutico e apresenta recomendações unicamente em proveito da segurança operacional da atividade aérea.
4 BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-15: Gestão da Segurança de Voo na Aviação Militar. Brasília, 2024, item 3.5.
5 O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), órgão central do Brasil, ao lado do órgão francês de prevenção de acidentes aeronáuticos (BEA), obteve o melhor desempenho de todo os Estados que integram a Organização Internacional de Aviação Civil (OACI) em auditoria realizada em 2023. Mais detalhes, clique aqui. Acesso em: 13 jun. de 2024.
6 HONORATO, M. Crimes aeronáuticos. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025, p. 629.
7 Art. 88-I, § 3o: Toda informação prestada em proveito de investigação Sipaer e de outras atividades afetas ao Sipaer será espontânea e baseada na garantia legal de seu exclusivo uso para fins de prevenção.
8 Art. 88-I, § 2o: A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
9 Art. 88-B. A investigação Sipaer de um determinado acidente, incidente aeronáutico ou ocorrência de solo deverá desenvolver-se de forma independente de quaisquer outras investigações sobre o mesmo evento, sendo vedada a participação nestas de qualquer pessoa que esteja participando ou tenha participado da primeira.
10 No julgamento da ADI 5667, foi reconhecida a relevância da relação de confiança entre os operadores aéreos e o Sipaer, bem como a importância da análise judicial para o compartilhamento de informações de segurança com o processo criminal: "AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 12.970/2014. CÓDIGO BRASILEIRO DE AERONÁUTICA (CBA). CARÁTER PREVENTIVO DAS INVESTIGAÇÕES SIPAER. [...]. 10. A confidencialidade das contribuições voluntárias e a limitação do seu uso em processos judiciais (CBA, art. 88-I, § 2º) são imprescindíveis para que os operadores da aviação continuem a reportar situações de insegurança ocorridas no dia a dia da aviação e, assim, colaborem para um espaço aéreo mais seguro. Também evitam que depoimentos autoincriminatórios - os quais podem ser de grande valia para a segurança aérea - sejam de algum modo utilizados indevidamente no processo penal. [...]. (ADI 5667, Relator: Ministro Nunes Marques, Tribunal Pleno, julgado em 14.08.2024, divulgação 15.10.2024, publicação 16.10.2024, grifos nossos).
11 As interações profissionais no ambiente de trabalho são objeto de aperfeiçoamento e avaliação com a ferramenta Corporate Resource Management - CRM (Gestão de Recurso Corporativos), que entende o erro humano como onipresente e inevitável, porém, uma valiosa fonte de informações. (BRASIL. Comando da Aeronáutica. Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica nº 3-10: Manual do Facilitador de CRM (Corporate Resource Management) da Força Aérea Brasileira. Brasília, 2023, item 2.4.5.).
A ferramenta CRM também tem sido aplicada à medicina. Disponível aqui. Acesso em: 13 jun. de 2024.

