Em recente decisão unânime, a 6ª turma do STJ, sob relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, enfrentou questão de singular relevância para o processo penal: a admissibilidade de carta psicografada como elemento de prova no procedimento do Tribunal do Júri (RHC 167.478/MS).
O colegiado decidiu pelo provimento do recurso ordinário da defesa, reconhecendo a absoluta inidoneidade epistêmica do referido documento, determinando seu desentranhamento dos autos, bem como das provas a ele vinculadas.
O caso concreto tratava de tríplice acusação de homicídio (um consumado, com erro na execução, e dois tentados), em que uma das linhas investigativas foi iniciada a partir de carta psicografada atribuída à vítima fatal. O documento foi redigido por uma testemunha que se apresentou à autoridade policial como médium. A mãe dessa testemunha, também ouvida, confirmou ter presenciado os atos de psicografia. A carta, acompanhada de exames grafotécnicos e de outros depoimentos, foi incorporada aos autos como parte do conjunto probatório.
A defesa sustentou que a carta psicografada não poderia ser utilizada como meio de prova, por ausência de respaldo racional e por afrontar os princípios do contraditório, da ampla defesa e da laicidade do Estado. Argumentou, ainda, que se tratava de prova epistêmica e logicamente inidônea, cujo eventual uso perante os jurados poderia influenciar irracionalmente o veredito.
O juízo de origem rejeitou a tese da defesa, destacando que a prova não seria ilícita, pois sua produção não violaria nenhum direito fundamental. Para o magistrado, a carta psicografada poderia ser utilizada como informação complementar, sujeita ao crivo do Conselho de Sentença. O Tribunal de Justiça local manteve essa compreensão, o que ensejou a interposição de recurso ordinário em habeas corpus perante o STJ.
Ao relatar o caso, o ministro Schietti destacou que a admissibilidade da prova exige não apenas a licitude formal, mas também um mínimo de idoneidade epistêmica, ou seja, a capacidade de contribuir racionalmente para a reconstrução dos fatos no processo. Em decisão técnica e fundamentada, o relator observou que, embora não seja uma prova ilícita (no sentido de obtenção em violação às normas legais), a carta psicografada é logicamente irrelevante, por não haver comprovação científica da possibilidade de comunicação com os mortos.
No modelo racional de apreciação probatória, a admissão de meios de prova exige que sejam passíveis de controle intersubjetivo. Quando se trata do Tribunal do Júri, em que os jurados decidem com ampla liberdade de convencimento e sem necessidade de fundamentar suas conclusões, a filtragem das provas a serem submetidas à análise do Conselho de Sentença assume importância ainda maior.
A decisão do STJ reafirma que não existe, no âmbito do Tribunal do Júri, um "vale-tudo” procedimental-probatório. O contraditório, a ampla defesa e a busca pela verdade processual não autorizam a admissão de qualquer elemento que, embora produzido licitamente, seja destituído de valor cognitivo. Assim, a carta psicografada é considerada irrelevante do ponto de vista epistêmico, não se prestando a fundamentar juízos de responsabilização penal.
É interessante notar que essa compreensão não é absolutamente inédita no Tribunal da Cidadania. Em decisão monocrática proferida no habeas corpus 854.187/SE, a ministra Daniela Teixeira já havia reconhecido a inidoneidade epistêmica da prova espiritual, determinando o afastamento de depoimentos que faziam referência ao "espírito da vítima" como elemento de confirmação da autoria em imputação por crime de homicídio.
Esses julgados dialogam diretamente com pesquisa doutrinária publicada na Revista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (v. 29, n. 87, 2023)1. Em seu artigo, a autora Juliana Melo Dias realizou um levantamento de casos concretos em que cartas psicografadas foram aceitas como prova no processo penal brasileiro. O estudo evidenciou que, em diversos episódios, documentos supostamente provenientes de vítimas falecidas foram utilizados como elementos probatórios relevantes (em alguns casos, determinantes) na formação da convicção judicial e na condenação de réus.
Juliana analisou as decisões judiciais sob três perspectivas principais: (i) a ausência de filtros racionais na admissão das provas espirituais; (ii) a relação entre essas decisões e a laicidade estatal; e (iii) os impactos na garantia do contraditório. Um dos achados da pesquisa é a constatação de que, em algumas dessas decisões, o juízo chegou a considerar compatível o conteúdo da psicografia com outros elementos dos autos, conferindo-lhe força probatória suplementar. Em outros casos, a carta foi considerada um verdadeiro depoimento póstumo da vítima - o que, evidentemente, afronta o devido processo legal, sobretudo sob o prisma do contraditório e da ampla defesa.
A autora aponta, por fim, que a aceitação de provas de natureza espiritual implica um duplo risco: de um lado, a vulneração da racionalidade processual penal; de outro, a ruptura da neutralidade religiosa do Estado.
Nesse sentido, os precedentes do STJ (de relatoria do ministro Rogerio Schietti e da ministra Daniela Teixeira) representam um marco sobre os limites racionais da atividade probatória na apuração de crimes dolosos contra a vida. Se é verdade que o modelo da íntima convicção permite uma certa margem de apreciação aos jurados, também é verdade que essa liberdade não é absoluta. O juízo de admissibilidade da prova, atribuído ao magistrado togado, deve observar parâmetros objetivos de relevância e racionalidade.
Nesse contexto, fundamental reconhecer que a regra do art. 479 do CPP, que exige apenas a juntada prévia dos documentos com antecedência mínima de três dias úteis, revela-se claramente insuficiente. Trata-se de um critério meramente formal, que não assegura a idoneidade, a licitude ou a confiabilidade do material probatório apresentado.
A experiência prática demonstra que, mesmo observando o prazo legal, podem ingressar nos debates elementos produzidos sem contraditório, peças inquisitoriais, declarações unilaterais e documentos que não têm relação com a situação fática objeto do julgamento (como, via de regra, os antecedentes criminais do acusado), o que, embora formalmente regulares, viola o devido processo legal. O art. 479 não estabelece critérios de exclusão, não impõe ao juiz-presidente o dever explícito de realizar controle substancial de legalidade e não aborda aspectos essenciais, como a cadeia de custódia, a origem e a pertinência das provas, o que abre espaço para a infiltração de elementos indevidos na sessão de julgamento.2
Assim como demonstra o direito comparado, para um julgamento justo, deve-se exigir um controle de admissibilidade antes que o conteúdo chegue ao âmbito cognitivo dos jurados. A ausência desse filtro material compromete a paridade de armas e fragiliza a plenitude de defesa.
Por isso, a linha argumentativa firmada pelos ministros reflete uma preocupação institucional com a racionalidade do processo penal e a preservação da laicidade do Estado. Admitir, por exemplo, cartas psicografadas como prova significaria abrir as portas a elementos de cunho puramente subjetivo e, muitas vezes, imunes ao controle racional e ao contraditório.
O precedente tem impacto direto na prática forense. Além de servir como referencial para casos semelhantes, ele impõe aos magistrados que atuam no Tribunal do Júri o dever de exercer controle efetivo sobre a admissibilidade das provas, zelando para que somente elementos epistêmicos e logicamente idôneos sejam submetidos ao Conselho de Sentença. A superação do modelo atual demanda a compreensão de que a admissão da prova no plenário é uma etapa substancial para a proteção do julgamento democrático e não mera formalidade procedimental.
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1 Disponível aqui. Acesso em 17 nov. 2025.
2 FAUCZ, Rodrigo; AVELAR, Daniel. Manual do Tribunal do Júri. 4ª ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025.