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Revogaremos a lei do bem de família? Breves reflexões sobre o novo Código Civil

O projeto do novo CC traz mudanças no bem de família que despertam debates sobre proteção, patrimônio mínimo e segurança jurídica, entre tradição civil e desafios contemporâneos.

20/10/2025

A fase de audiências públicas do projeto de novo CC mal começou e já deu o seu tom. Aos amigos do rei, a palavra; aos demais, o e-mail. Uma liturgia pro forma, confessadamente frustrante a quem se propõe ao debate acadêmico e que tem provocado a indignação dos mais diversos setores - não apenas jurídicos, mas também políticos e econômicos1.

Neste cenário de açodamento para aprovar aquele que também nomeamos “Constituição da Vida Privada”, cabe a todos nós, estudiosos do Direito Civil, arregaçarmos as mangas nos estudos individualizados, compartilhando as angústias técnicas decorrentes do PL 4/25.

Inicialmente, é preciso dizer que esta brevíssima reflexão não possui qualquer compromisso com a crítica pura e simples, visando apenas trazer alguma luz a ponto até agora pouco discutido e assim, quem sabe, encontrar respostas.

Dito isso, o texto ficará restrito a uma avaliação preliminar do art. 391-A, novidade apresentada pelo projeto, que parece revelar contornos inovadores ao já consolidado instituto do bem de família.

Para trabalhar a questão, me permitirei fazer uma breve digressão. Didaticamente, o bem de família é tratado em duas vertentes: bem de família voluntário e bem de família legal. O PL 4/2025 exclui o bem de família voluntário, atualmente regulado pelos arts. 1.711 e seguintes do CC de 2002 - vale lembrar, já contido desde o CC de 1916.

Na sistemática do bem de família voluntário, por autonomia privada, torna-se possível a proteção do imóvel residencial mediante escritura pública ou testamento do titular, tornando-o impenhorável. O procedimento vinha sendo alvo de diversas críticas, seja pelos custos vinculados ao Tabelionato e ao Registro de Imóveis, seja pela baixa demanda e também por inserir, ao lado da impenhorabilidade, a inalienabilidade2.

Muito embora a proposta de excluir o bem de família voluntário não seja, por assim dizer, surpreendente, o mesmo não se pode concluir quanto à ação paralela consistente em trazer novos contornos ao bem de família legal, a partir do proposto art. 319-A.

É que o bem de família legal encontra-se regulado pela lei 8.009, de 1990, e traduz especial relevância ao concretizar valores sociais e humanos apresentados pela Constituição da República de 1988: garantias constitucionais expressas à proteção da propriedade, da família e da moradia.

Não carece de maior aprofundamento a noção de que o direito à moradia e a proteção da propriedade, em muitos momentos, caminham lado a lado como elementos essenciais para a aquisição de outras garantias de ordem constitucional. Para além da simples moradia, proteger o direito de seus titulares é permitir que, em segurança, possam lutar pelos demais desígnios previstos pela Magna Carta.

Aqui vale a oportuna lição de Luciano Penteado, quando nos brinda com o conceito de “propriedade-acesso”3 a noção de que o direito à propriedade é elemento essencial para a proteção e aquisição de outros direitos de ordem constitucional.

Proteger o bem de família é a mensagem do legislador de que, mesmo nos momentos de maior penúria financeira, será dado ao titular do imóvel usado como residência familiar o direito ao recomeço. Trata-se da consagração de um importante conceito: a noção de patrimônio mínimo, de Luiz Edson Fachin4.

Por isso, sem medo de errar, não há dúvidas de que a lei do bem de família é uma lei que “pegou”, porque, para além de seu caráter profundamente axiológico, toca o cidadão comum e suas tormentas igualmente comuns. Segundo consta do caput do art. 1º: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.

É natural que, ao longo de 35 anos de vigência, a lei tenha passado por ajustes interpretativos próprios da dinâmica social, por exemplo, ao incorporar novos modelos familiares5 e ao construir critérios sobre o que poderá ser considerado imóvel residencial6. A jurisprudência do STJ tem farta produção sobre o tema, mormente para confirmá-lo7.

Mesmo quanto às exceções legais à impenhorabilidade, os precedentes têm reafirmado, em regra, o caráter numerus clausus8. Lembre-se de que o art. 2º da lei 8.009, de 1990, as concentra em seis hipóteses:

a) crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

b) pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;

c) cobrança de impostos prediais ou territoriais, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

d) hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

e) imóvel adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;

f) obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Neste ponto, inicia-se a abordagem crítica quanto ao pretenso art. 319-A do PL 4/25.

O caput traz a seguinte proposta de redação: “Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor.”

Tratando-se o patrimônio mínimo de um conceito demasiadamente aberto, o § 1º, incisos I, II e III, pretendem dá-lo alguma concretude, assim delimitando-o para os fins do artigo: “a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio”; “o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família”; e “a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família.”

É louvável a utilização da tese do patrimônio mínimo - conceito profundo e necessário em um país tão desigual como o Brasil -, mas não é neste ponto que reside a crítica, como se passa a explicar. A crítica limitar-se-á à falta de clareza sobre o que será feito da Lei do Bem de Família caso haja a aprovação do dispositivo, pois, como ficará demonstrado, há contradições de impacto econômico relevante.

A primeira questão a ser levantada é que os incisos I a III do §1º do art. 319-A colacionam hipóteses que a legislação e a jurisprudência já compreendem, com certo consenso, tratarem-se de bem de família para fins de proteção legal, portanto, que já possuem caráter de impenhorabilidade. Contudo, analisando o caput do mesmo artigo, percebe-se que, enquanto a lei do bem de família prevê a penhorabilidade em seis hipóteses taxativas, a proposta do art. 319-A somente impedirá o alcance ao bem de família para o “cumprimento de obrigação alimentar.”

Até onde se sabe, não há qualquer menção à revogação da lei 8.009, de 1990, e isso provoca a imediata questão: os reformistas pretendem alterar o regime de proteção ao bem de família, limitando a impenhorabilidade à execução de alimentos? Talvez coubesse um adendo quanto as regras previstas em outros diplomas normativos, uma vez que impactaria, por exemplo, execuções sobre hipoteca, tributos e financiamentos, por exemplo.

Parece, neste contexto, que o projeto reformista, tivesse se limitado à alteração do art. 391, teria andado bem: “Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora.”.

Compreende-se as críticas à redação atual do artigo 391 no sentido de que todos os bens do devedor respondem por suas dívidas. O problema é quando se conserta de um lado e confunde-se de outro.

Ora, segundo o art. 2º, §1º da LINDB, "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior". A incompatibilidade é evidente, a pretensa redação amplia o rol de impenhorabilidades - “Salvo para o cumprimento de obrigação alimentar [...]” - , pois ao menos cinco das exceções hoje previstas ficam superadas.

Aliás, qual obrigação alimentar? Apenas a resultante do Direito de Família? O STJ já precisou debruçar-se sobre celeuma semelhante quanto aos efeitos da apelação em sentenças que condenam a pagar alimentos (art. 1.012, §1º, inciso II do CPC)9.

O resultado de referida inserção, nos termos apresentados, será o de insegurança jurídica até que a matéria possa ser avaliada em instâncias superiores e pacificada. A propósito, o tema da segurança jurídica tem sido um dos grandes pontos nevrálgicos do projeto, e a isso vale acrescentar a preciosa colocação de Judith Martins-Costa10: “Nada está conectado em sistema e, como sabemos, regras contraditórias aumentam a possibilidade de litígios. Resultado: insegurança jurídica e anos de debate para estabilizar o significado dessas regras”.

Não fosse a insegurança jurídica o bastante, o § 3º traz mais um conceito jurídico indeterminado: a “morada de alto padrão”. Segundo consta do dispositivo, moradias de alto padrão seriam penhoráveis até a metade de seu valor, considerado o valor de mercado. Ora, quem dirá o que é “alto padrão” em Pindorama? Quem dará o valor de mercado?

Não termina aqui. Se o fundamento do projeto é dar regulamentação ao que já vinha sendo aplicado pela jurisprudência, o § 3º destoa por completo. O STJ tem decidido, sistemática e repetidamente, que o alto valor do imóvel não afasta a sua proteção legal11. A própria lei do bem de família, quando fala em luxo, limita-o aos adornos suntuosos e obras de arte (art. 2º).

Por fim, o § 3º traz mais um problema de ordem prática. Em princípio, fala-se que o executado tem por impenhorável 50% do valor de mercado; contudo, na vida real, raramente um bem imóvel é excutido pelo preço da avaliação. Dito isso, surge uma nova dúvida: o titular do bem de família receberá 50% do valor de mercado, independentemente do valor da arrematação, ou 50% do produto da arrematação, ainda que abaixo da avaliação inicial?

Em síntese, o exame do art. 319-A do projeto de novo CC revela uma tentativa de reformulação conceitual da proteção ao bem de família que, embora inspirada em valores caros ao Direito Civil constitucionalizado - como a tutela do patrimônio mínimo e da dignidade da pessoa humana -, acaba por introduzir contradições estruturais e riscos relevantes à estabilidade das relações jurídicas.

A opção legislativa por reduzir, de forma genérica, as hipóteses de penhorabilidade ao cumprimento de obrigação alimentar ignora o equilíbrio já alcançado pela lei 8.009/1990, diploma cuja eficácia social e sedimentação jurisprudencial demonstram o êxito do modelo atual. A ausência de revogação expressa e a utilização de cláusulas vagas, como a “morada de alto padrão”, projetam um cenário de incerteza incompatível com o princípio da segurança jurídica e com o dever de clareza normativa que deve orientar uma codificação de tamanha envergadura.

O debate sobre o patrimônio mínimo não se encerra, portanto, na simples invocação de valores constitucionais. É preciso assegurar coerência entre os fins proclamados - a proteção da moradia e da família - e os meios normativos efetivamente adotados. O bem de família, vetor da função social da propriedade, não pode ser reduzido a um enunciado simbólico nem submetido à volatilidade interpretativa.

Assim, longe de significar avanço, o texto do art. 319-A, tal como proposto, sugere um retrocesso técnico, fragilizando uma disciplina consolidadas do direito civil brasileiro. Mais do que nunca, impõe-se que o debate legislativo recupere o rigor metodológico e a escuta plural que devem caracterizar qualquer reforma de um Código que se propõe a traduzir a Constituição da vida privada.

______

1 Fonte: Disponível aqui. Acesso em 16/10/25

2 ERHARDT, Marcos. Bem de Família e sua Evolução Jurisprudencial. Fonte: Disponível aqui; Acesso em 16/10/25; FERRIANI, Adriano. O bem de família voluntário apresenta vantagens em relação ao bem de família legal?Fonte: Disponível aqui. Acesso em 16/10/25.

3 PENTEADO, Luciano. Direito das Coisas. São Paulo: Revista do Tribunais, 2008. p. 164: “Embora o ter não defina o ser, embora o consumismo reinante leve muitos a assim o crer, o ter certos bens permite identificar-se como pessoa e exprimir personalidade, a qual, como estamos na terra dos homens, necessita do pão e terra. O direito à propriedade como direito-acesso, direito-chave-de-abertura, é direito da personalidade e garante-se, como se garante a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança, garantindo-se o ser humano também na sua dimensão corporal patrimonial, não meramente bio-psíquica-social, descolada das necessidades materiais imediatas”.

4 FACHIN. Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 18.

5 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4.ed. Forense: Rio de Janeiro, 2010. p. 1.004

6  AgRg no AREsp 422729/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 3ª TURMA, julgado em 21/8/14, DJe 04/09/2014; REsp 1417629/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª TURMA, julgado em 10/12/13, DJe 19/12/13;  AgRg no Ag 1348859/PR

7 Fonte: Disponível aqui. Acesso em 16/10/25.

8 REsp n. 1.887.492/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 13/4/21, DJe de 15/4/21

9 REsp n. 1.815.055/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 3/8/20, DJe de 26/8/20

10 “No Direito, o populismo se expressa pela promessa implícita em muitas das regras propostas e explícita no discurso dos reformadores de proteger os setores vulneráveis da população ao mesmo tempo em que trata a elite jurídica divorciada da realidade da população e as empresas como inimigas a serem penalizadas.” Fonte: Disponível aqui. Acesso em 16/10/25.

11 AgInt no AREsp 2.716.269/RJ, relator Ministro Carlos Cini Marchionatti (desembargador convocado TJRS), 3ª turma, julgado em 24/2/25, DJEN de 28/2/25; AgInt no AREsp 2.629.196/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 16/12/24, DJEN de 20/12/24; REsp 1.351.571/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, relator para acórdão ministro Marco Buzzi, 4ª turma, julgado em 27/9/16, DJe de 11/11/16.

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Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

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