Migalhas de Direito Médico e Bioética

Alteridade na relação médico-paciente: um diálogo com o Conselho Federal de Medicina

A partir de um relato pessoal, a advogada especialista em Direito Médico, doutora em Direito e professora Amanda Barbosa estabelece diálogo com o CFM sobre a alteridade na relação médico-paciente.

16/5/2022

o mês de abril do ano corrente, um casal de médicos compareceu a um hospital em uma posição diferente da de costume. A médica compareceu na qualidade de esposa e acompanhante do seu marido, que apresentava quadro de dor abdominal intensa. Uma vez recebido pela equipe de plantão, foi examinado e medicado. Dentre os exames solicitados, estava uma tomografia do abdômen total que revelou um cálculo no aparelho urinário, localizado no ureter.

Após a confirmação do diagnóstico, a plantonista se dirigiu ao casal informando que havia entrado em contato com a equipe de urologia do hospital e que houve a indicação de internamento para retirada do cálculo através de intervenção cirúrgica – endoscopia, e que ela já estava providenciando o internamento. Ela se retirou e o paciente, em diálogo com sua esposa, manifestou o desejo de não ser internado, pois preferia um tratamento conservador.

Diante disso, a acompanhante e esposa do paciente se dirigiu à médica plantonista solicitando que não fizesse o pedido de internamento, pois naquele momento o paciente não desejava ser internado. Em resposta, a profissional de plantão respondeu: “Então ele prefere perder o rim?” A médica e acompanhante referiu que não, que o seu desejo era dialogar com médico urologista para discutir quais medidas seriam possíveis para que pudesse decidir.

Como o paciente já se encontrava sob acompanhamento de um urologista, tendo realizado consultas de rotina previamente, foi feito contato com esse profissional, o qual se dirigiu ao hospital, analisou os exames, conversou com o paciente abordando as vantagens e desvantagens do procedimento cirúrgico. Também esclareceu que havia a possibilidade de aguardar a eliminação do cálculo espontaneamente, podendo ser medicado e ter alta.

Após as informações compartilhadas, o paciente decidiu pela alta. Em menos de uma semana, sem necessidade de internamento ou cirurgia, o cálculo foi expelido e o médico em questão encontra-se bem. Observe-se que, em nenhum momento, a equipe de urologia do referido hospital esteve, presencialmente, examinando o paciente ou orientando-o sobre as possibilidades existentes. O internamento foi decidido de forma unilateral, a partir de um exame de imagem.

O paciente e sua esposa são pessoas próximas e, apesar da distância, acompanhei remotamente o atendimento e observei a angústia vivenciada na interação com a equipe hospitalar. Esse episódio evidencia a importância da atividade realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no dia 04 de maio de 2022, a saber, um webinar sobre o tema “Nenhum homem é uma ilha: alteridade na relação médico-paciente” (disponível no YouTube).

Minha proposta, aqui, é travar um diálogo com o que foi exposto durante o webinar referido, a partir da minha experiência como cidadã, advogada e pesquisadora em Direito Médico e Bioética. Desenvolvo estudos sobre alteridade há quase dez anos, os quais culminaram na publicação do livro “Revisão das bases da Bioética Global: direitos humanos, alteridade e relação entre estranhos morais” (disponível na Amazon e na Editora Mente Aberta).

Para a devida compreensão do assunto e deste escrito, é preciso esclarecer: o que é alteridade? É muito comum conceituá-la como o exercício de se transferir ou de se colocar no lugar do outro, de sentir a experiência do outro. A partir do referencial teórico que venho adotando – a obra do autor francês Emmanuel Levinas, a alteridade apresenta conteúdo diverso. Trata-se de um modo especial de agiri que desloca a tendência humana ao individualismo.

No marco da alteridade, a relação entre Eu e Outro se dá em um ambiente em que o Outro não estará sujeito a categorizações ou ao domínio do Eu. Em outras palavras, é viabilizar que o Outro – em sua diversidade, revele-se sem que tenha sua existência apagada ou pasteurizada por uma cultura dominante, tornando-se o protagonista da significação de si. O Outro coloca em xeque as premissas morais sobre as quais o Eu edificou sua identidadeii.

Estabelecida uma relação nesses termos, a alteridade se revela como a heterogeneidade radical do Outro, despertando no Eu o desejo de se orientar em direção ao diverso, não para dominá-lo, mas sim para conhecê-lo. Levinas chega a atribuir a essa relação ética entre diferentes um caráter docente, sendo a diferença o locus do aprendizadoiii. Essa revelação autêntica, livre de categorizações, permite a aproximação entre o Eu e o Outro.

Do quanto visto até aqui, percebe-se que o Eu não poderia efetivamente se colocar no lugar do Outro, mas sim permitir que o Outro se revele sem prévias categorizações, ouvir atentamente sua súplica e, diante daquilo que os tornam interdependentes, assumir e exercer sua responsabilidade em face do Outro. Essa postura de abertura e acolhimento é designada de justiça por Levinas, único caminho para se alcançar a igualdade materialiv.

A interdependência mencionada se revela na vulnerabilidade substantiva, aquela que atravessa a existência de todo ser humano. O Eu, diante do Outro que suplica por justiça, é instado a agir e assumir sua responsabilidade na dinâmica socialv. Em quê tudo isso se relaciona com a relação médico-paciente? No webinar que motivou a escrita desta coluna, foi suscitada uma reflexão de máxima importância: “É o Outro que dá sentido à arte médica”.

A diversidade é marco da vida em sociedade. A despeito de ser possível identificar uma tábua de valores hegemônica em dado local e tempo, é certo que diversas comunidades coexistem, alimentando premissas morais distintas e que, muitas vezes, orientam a adoção de condutas distintas. Daí emergem possíveis situações conflituosas, agravadas por uma prática médica que reduz o paciente à sua esfera biológica, de corpo orgânico em funcionamento.

Como bem salientado durante a atividade do CFM, é preciso conhecer o paciente por completo, em seus aspectos biológico, psicológico, social e espiritual. É preciso adentrar sua biografia, suas dores, seus anseios. Do contrário, pode-se chegar a situações de nulidade do consentimento conferido para a realização de dado tratamento, por deficiências ou ausência de diálogo suficiente para viabilizar, de fato, um consentimento livre e esclarecido.

Certa vez, durante a aula de um curso de pós-graduação em Direito Médico, em que se discutia o que seriam boas práticas diante da recusa de transfusão de sangue por pacientes Testemunhas de Jeová, um participante assim se colocou: “eu diria ao paciente que não faria o procedimento, mas, se necessário fosse, o faria, envolvendo a bolsa de sangue para que a realização da transfusão permanecesse oculta”.

Esse posicionamento importaria no aniquilamento do Outro (paciente), cuja manifestação de vontade seria ignorada em detrimento da percepção do Eu (médico) a respeito do que seria melhor para si. Como se vê, a recusa de tratamento médico é situação especialmente desafiadora. A grande questão reside em saber quem determina o que é “fazer o bem”: o médico, conforme seus valores pessoais, ou o paciente, conforme sua percepção de vida digna.

Para melhor apresentar o pluralismo moral próprio da contemporaneidade, Engelhardt Jr. cunhou o termo “estranhos morais” como referência às interações entre pessoas que não compartilham premissas morais suficientes para resolver controvérsias por meio de uma argumentação racional, ou ainda que não apresentam um compromisso comum com os indivíduos ou instituições dotadas de autoridade para resolvê-lasvi.

Os “amigos morais”, a contrario sensu, seriam aqueles que compartilham as mesmas premissas morais ou que atribuem a autoridade específica competência para resolver eventual conflito. Durante a atividade desenvolvida pelo CFM, foi dito que a judicialização da medicina fez com que o médico, antes amigo moral dos seus pacientes, passou a se ver como estranho moral. Sustentou-se, ainda, que o médico deve ter, em seu paciente, um amigo moral.

Ocorre que, a rigor, ter no paciente um amigo ou estranho moral não passa pela vontade ou atitude do médico. Considerando a diversidade como traço inevitável da sociedade contemporânea, é natural, e até mesmo esperado que, por vezes, médico e paciente sejam estranhos morais. Voltemos a falar sobre a recusa de transfusão de sangue por paciente Testemunha de Jeová. Se médico e paciente não compartilharem das mesmas crenças, a discordância irá se instalar.

Para os fins desse breve texto, menos importa a conduta a ser efetivamente adotada – transfundir ou não transfundir, estando o foco no desenrolar dessa relação entre duas pessoas. Se o médico não pode garantir que o paciente que chega e se revela estará assentado nas mesmas premissas morais a partir das quais orienta seu agir, poderá orientar seu diálogo e acolhimento no marco da alteridade, promovendo saúde para além do aspecto biológico.

No caso inicialmente compartilhado, temos duas práticas profissionais distintas. De um lado, o exame e diálogo presenciais, com os esclarecimentos sobre as alternativas disponíveis. De outro, a transmissão de decisão unilateral de um colega de sobreaviso e a irritação diante da recusa, provocando uma angústia desnecessária. Não há maior indício da tendência ao egoísmo e dominação do Outro do que o incômodo com a Outridade.

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i NEVES, Maria do Céu Patrão. Alteridade e direitos fundamentais: uma abordagem ética. Revista Direitos Fundamentais e Alteridade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 69-86, jul.-dez. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 maio 2022. p. 70-72.

ii LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto (Coord.) Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004. p. 195-201.

iii Id. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino S. Pivalto (Coord.) Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. p. 21-23.

iv Id. Totalidade e infinito. Tradução: José Pinto Ribeiro. 3. ed. Coimbra: Edições 70, 2014. p. 60-61.

v Ibid. p. 59.

vi ENGELHARDT JR., H. Tristam. Fundamentos da bioética. Tradução: José A. Ceschin. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 32.

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Colunistas

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.