Migalhas de Direito Médico e Bioética

Judicialização da saúde no Brasil: Impacto, desafios e o papel do NatJus na tomada de decisões baseadas em evidências

A coluna discute a resolução 238/16 do CNJ, que criou o Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário, analisando seu impacto na saúde pública. Dados de Roraima e Goiás mostram que o NatJus não atrasa decisões, garantindo aplicação de Medicina Baseada em Evidências.

4/11/2024

Resumo

O presente trabalho visa discutir o contexto para edição da resolução 238/16 do CNJ determinando aos tribunais a criação do Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário e analisar o impacto dessa ferramenta essencial para a condução segura dos processos judiciais em saúde pública e suplementar permitindo o equilíbrio entre a garantia do direito individual à saúde e a higidez do SUS e da Saúde Suplementar. A nota técnica e o parecer técnico-científico elaborados pelo Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário permitem que o magistrado decida com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, observando os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, diretrizes diagnósticas e terapêuticas, rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, garantindo a aplicação dos princípios da universalidade, integralidade, equidade, acesso igualitário, mutualismo e solidariedade intergeracional. Para tanto, analisar-se-á a estatística dos Tribunais de Roraima e Goiás quanto à urgência ou não do pedido, e quanto à manifestação pela procedência, procedência parcial ou improcedência do pedido. Os dados apresentaram que no TJ/RR 12,31% dos pareceres foram considerados urgentes e no TJ/GO 18,14%. Quanto ao mérito do parecer no TJ/RR 53,79% foram totalmente favoráveis. Os dados comprovaram a hipótese de que a remessa do processo ao NatJus não atrasa a prestação jurisdicional e permite que a decisão esteja em consonância com a medicina baseada em evidências.

Introdução

A judicialização da saúde pública e suplementar cresceu significativamente, demandando a intervenção dos Tribunais Superiores e do CNJ devido ao impacto financeiro nos orçamentos público e privado. Esse aumento é impulsionado pela demanda crescente por medicamentos e tecnologias ainda não incorporados ao SUS e ao rol de procedimentos da ANS, com risco de descontinuidade da política pública de saúde e o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de planos de saúde. De acordo com dados do CNJ, em 2020 havia 416,42k processos relacionados à saúde pública e 206,28k relacionados à saúde suplementar no Brasil. Esses números subiram para 511,07k e 290,89k, respectivamente, em 2024.

A Suspensão de Tutela Antecipada 175 foi um marco na jurisprudência sobre o direito à saúde, oportunidade que o STF estabeleceu diretrizes importantes, como a solidariedade dos entes federativos, a intervenção judicial para garantir a eficácia das políticas de saúde e a exigência de registro de medicamentos na ANVISA. O tribunal destacou a prioridade do tratamento previsto no SUS, mas permitiu alternativas em casos de ineficácia clínica e ausência de PCDT - Protocolo Clínico, vedados os tratamentos experimentais. Essa decisão, embora sem efeito vinculante, tem forte poder persuasivo e influenciou a criação de ampla jurisprudência nos Temas 6, 793, 1.234 e 500 do STF, e Tema 106 e IAC 14 do STJ.

O CNJ, por meio de diversas resoluções, implementou importantes medidas para racionalizar a judicialização da saúde. Foi estabelecido o Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitorar as demandas de saúde (resolução 107/10) e criados os Comitês Estaduais de Saúde. Além disso, foram especializadas varas em comarcas que possuem mais de uma vara de Fazenda Pública. A estruturação dos NatJus foi formalizada pela resolução 238/16, juntamente com a recomendação de priorizar o julgamento de processos relativos à saúde suplementar (resolução 43/13). O CNJ também elaborou o fluxo de cumprimento adequado das decisões judiciais em saúde (resolução 146/23) e organizou as Jornadas Nacionais da Saúde para debater questões relacionadas à judicialização.

Apesar das diretrizes, parte da magistratura resiste em remeter processos ao NatJus, citando a "extrema urgência" dos casos, a autonomia judicial e médica, ou a ausência de NatJus no tribunal correspondente. No entanto, pesquisas mostram que muitos casos não são urgentes, e alguns pedidos são improcedentes. A resistência à consulta ao NatJus compromete a observância dos protocolos do SUS, recomendações da CONITEC, obrigatoriedade de registro na ANVISA, avaliação de evidências científicas, eficácia e custo-efetividade, essenciais para decisões técnicas em saúde.

Objetivo

Apresentar estudo estatístico comprovando a imprescindibilidade de remessa dos processos ao NatJus para a devida qualificação técnica das decisões judiciais em saúde, em observâncias às determinações dos Tribunais Superiores, CNJ e FONAJUS, a fim de que se tenha o maior grau de certeza possível do benefício do medicamento ou tecnologia demandada, observando-se os princípios da saúde pública e suplementar.

Métodos

Foi realizado o levantamento manual nas notas técnicas produzidas pelo NatJus do TJ/RR no período de 2019 a julho de 2024 pesquisando a urgência ou não do parecer e se procedente, parcialmente procedente ou improcedente o pedido. No NatJus de Goiás foi feito o levanto manual das notas técnicas produzidas no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024 buscando-se a análise de frequência de objetos e classificadores de objetos referentes aos processos, que solicitaram urgência. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do Conselho Federal de Medicina. 

Dessa forma, o tema foi abordado por meio do método dedutivo. A pesquisa foi realizada quanto à natureza de forma aplicada, com a abordagem quantitativa, objetivo descritivo e procedimento técnico documental, cuja aplicação tem por finalidade a elaboração de instrumento de pesquisa adequado à realidade a ponto de delinear a problemática em questão.

Discussão

Urgência e Emergência na Judicialização da Saúde

Na judicialização da saúde, a maioria das petições iniciais inclui pedido de tutela de urgência, argumentando que o paciente corre risco iminente de morte ou lesão irreversível de órgão-alvo. Esse tom apelativo frequentemente leva magistrados a decidir rapidamente, sem consultar notas técnicas do NatJus ou ouvir gestores de saúde, criando cenário propício para o surgimento de demandas predatórias, oferta de terapias ineficazes, inobservância das filas de espera, desestruturação das políticas públicas e comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro da saúde suplementar.

É essencial adotar critérios seguros para a definição temporal da necessidade da apreciação dessas liminares, conforme a legislação e protocolos médicos. Dois marcos normativos são referência: A Resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina 1.451/95 define urgência como agravo à saúde necessitando de assistência imediata, e emergência como risco iminente de vida. A lei 9.656/98, para planos de saúde, limita emergência a riscos imediatos de vida e urgência a casos de acidentes ou complicações gestacionais.

A diferença entre urgência e emergência está no nível de gravidade. Urgências não envolvem risco de vida iminente, mas requerem atendimento rápido para evitar agravamento. Emergências exigem atendimento imediato devido a ameaça à vida. A organização de filas de cirurgias e atendimentos utiliza protocolos médicos como o Protocolo de Manchester, que classifica pacientes em cinco níveis de prioridade, do atendimento imediato à espera de até 240 minutos.

Cirurgias são classificadas em quatro grupos de prioridades: Eletivas, prioridade médica, urgência e emergência. Cirurgias eletivas, como mamoplastia reparadora, podem esperar. Prioridade médica usa o parâmetro Time-Sensitive, talhado pela Sociedade Americana de Cardiologia, quando atrasos maiores que 1 a 6 semanas podem afetar negativamente desfechos. Cirurgias de urgência devem ocorrer em até 24 ou 48 horas, como apendicectomias. Cirurgias de emergência, como ferimentos por arma de fogo, requerem atenção imediata.

O parecer do CFM do Espírito Santo (Parecer Consulta 006/15) delineia a classificação das cirurgias: Eletivas podem ser programadas, urgências requerem atenção em até 48 horas, e emergências exigem ação imediata. Esses parâmetros ajudam a organizar o sistema de saúde e garantir que casos mais graves recebam prioridade.

O projeto de lei 2.728/21 que dispõe sobre prazos máximos para a realização de procedimentos cirúrgicos eletivos no âmbito do SUS, apresenta os seguintes parâmetros:

  1. Prioridade absoluta: 60 dias;
  2. Prioridade moderada: 120 dias;
  3. Prioridade baixa: 180 dias.

A lei 12.732/12, que dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna, estabelece prazo para seu início no prazo de até 60 dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico.

O uso inadequado da judicialização na saúde viola a isonomia de acesso, como no caso do Ceará, que regula a fila cirúrgica pela classificação de SWALIS, na qual as categorias A1 e A2 (maior gravidade) possuem prioridade sobre o critério cronológico, que deve ser observado nas categorias B, C e D (menor gravidade). Em caso de judicialização, independente do grau de gravidade da doença o paciente também tem prioridade sobre a ordem cronológica.

Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Roraima

Foram levantadas manualmente as notas técnicas produzidas entre os anos de 2019 a agosto de 2024. Foram apuradas 1.186 notas técnicas oportunidade em que se constatou que em 251 (21,16%) não houve pedido de apreciação de urgência, 146 (12,31%) foram consideradas urgentes e 789 (66,52%) consideradas não urgentes. Destas 267 (33,84%) foram prioridade médica, 290 (36,75%) eletivas e 232 (29,4%) medicamentos (não urgentes). Quanto ao mérito do pedido 638 (53,79%) foram favoráveis, 133 (11,21%) não favoráveis, 387 (32,63%) parcialmente favoráveis e 28 (2,36%) inconclusivos.

Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Goiás

Foi realizada a análise dos processos remetidos ao NatJus, que solicitaram urgência no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do CFM.

Foram solicitados em caráter de urgência 2.365, dentre os quais apenas 429 (18,14%) foram classificados como urgentes e 1.936 (81,86%) não urgentes. Portanto, considerando que a Portaria 1/24 prevê a disponibilização da nota técnica em até 24h nos casos urgentes, não se justifica decidir sem a manifestação do NatJus.

Conclusão

A judicialização da saúde no Brasil revela um cenário complexo, onde o uso excessivo e muitas vezes inadequado de tutelas de urgência tem impactado negativamente tanto o sistema público quanto o privado. A pesquisa demonstra que, na grande maioria das vezes, as demandas judiciais não representam situações de urgência real, sugerindo a necessidade de um processo mais criterioso na concessão de decisões judiciais. Isso é corroborado pelas estatísticas do NatJus dos Tribunais de Justiça de Roraima e Goiás, que evidenciam que apenas uma pequena fração dos casos requer intervenção imediata, com apenas 53,79% classificados como totalmente procedentes.

O estudo reafirma a importância de utilizar critérios objetivos e baseados em evidências científicas, como aqueles estabelecidos pelas resoluções do CFM, para diferenciar entre casos de urgência e emergência. O Protocolo de Manchester e a classificação de cirurgias em eletivas, prioridade médica, urgência, e emergência são ferramentas essenciais para garantir que os casos mais graves recebam a devida prioridade, evitando o colapso do sistema de saúde e assegurando o uso racional dos recursos disponíveis.

Além disso, é fundamental que os magistrados se apoiem nas notas técnicas emitidas pelo NatJus para orientar suas decisões, assegurando que estejam alinhadas com as diretrizes dos Tribunais Superiores e do CNJ. A resistência de parte da magistratura em consultar o NatJus compromete a implementação de políticas de saúde eficazes e baseadas em evidências, prejudicando tanto a eficiência quanto a equidade do sistema de saúde.

Portanto, a integração de mecanismos de controle rigorosos e a educação contínua dos profissionais do direito e da saúde sobre a importância das decisões técnicas são passos cruciais para conduzir a judicialização da saúde de forma responsável. Ao garantir que o direito à saúde seja exercido de maneira justa e eficaz, pode-se promover um sistema de saúde mais sustentável e equitativo para todos.

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Estatísticas processuais de direito à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. s.d. Disponível aqui. Acesso em: 06/08/2024.

ITRIA, A. Fundamentos de Avaliação de Tecnologias em Saúde. USP e UNB, 2024.

MARTIMBIANCO, R. et al. Saúde Baseada em Evidências – Conceitos, Métodos e Aplicação Prática. 1. ed. São Paulo: Atheneu, 2023.

SCARABEL, R. Saúde Suplementar: Estrutura e Operação do Sistema Brasileiro. Mackenzie, 2024.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.