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Proteção de dados e Internet das Coisas: Breves reflexões sobre generatividade e a (in)utilidade dos dispositivos conectados

Proteção de dados e Internet das Coisas: Breves reflexões sobre generatividade e a (in)utilidade dos dispositivos conectados.

1/4/2022

Tudo o que pode ser conectado, será conectado1. De pequenos acessórios "vestíveis" (wearables) até regiões metropolitanas inteiras interconectadas2, a internet das coisas (Internet of Things, ou apenas IoT) está revolucionando a forma como os seres humanos interagem com a tecnologia e, inclusive, como os dispositivos tecnológicos interagem entre si.

Esse cenário de "hiperconexão" traz novas possibilidades que facilitam de forma exponencial a vida em sociedade, a exemplo de automações da cadeia produtiva – que permitem que um dispositivo de checagem de estoque solicite automaticamente um produto ao fornecedor quando estiver em falta – até simples atos do cotidiano, como smartwatches que enviam relatórios de batimento cardíaco e nível de oxigênio no sangue a um profissional da saúde durante a prática de atividades físicas pelo paciente.

Entretanto, com essas novas possibilidades, também surgem novos desafios. Estudiosos se deparam com inúmeros questionamentos, tais como: qual é o limite da coleta e do compartilhamento de dados pelos dispositivos conectados diretamente à internet? Quais modalidades regulatórias devem ser aplicadas a estes dispositivos, de modo a preservar direitos sem impedir a inovação? Em última análise, qual seriam os limites do entrelaçamento entre direito e técnica no contraste entre a proteção de dados pessoais e a ascensão da internet das coisas?

A constatação inexorável que se colhe desses questionamentos é a de que o desenvolvimento tecnológico do século XXI sinalizou a necessidade de uma nova teleologia da internet. Novos fins, novos propósitos e novos contextos para uma tecnologia em constante transformação. Desde 2014, convencionou-se utilizar o termo "Web3", cunhado por Gavin Wood3, para designar uma internet essencialmente descentralizada, baseada em tokens e na tecnologia blockchain, mas que dependerá, essencialmente, da hiperconectividade4. É nesse cenário que se se concebe a expressão "internet das coisas" como um conceito.

O leitor provavelmente já se deparou com situações peculiares envolvendo gadgets e dados no seu dia a dia, seja com o seu smartphone, seu smartwatch ou mesmo sua smartv.

Apesar de os dispositivos acima estarem intrinsecamente ligados ao entretenimento, veja que essas tecnologias também trazem grande impacto na comodidade e conveniência, não somente na vida pessoal, mas também na profissional. Imagine-se, por exemplo, uma geladeira que detecta quando determinado alimento acaba (seja em uma loja ou em uma residência) e já faz automaticamente um pedido de entrega para o fornecedor cadastrado pelo usuário. Tal situação é benéfica para o comprador (que evita faltar algum produto indispensável para sua operação ou para seu consumo) e para o vendedor (por agilizar a cadeia produtiva e logística).

Imagine-se, ainda, um smartwatch que, a depender do modelo, “entende” o padrão comportamental do usuário para lhe sugerir os apps e ações mais convenientes para cada momento (a partir do machine learning). Tal uso se torna possível em razão da coleta de uma massiva quantidade de dados durante o uso. Tais dados, em razão da hiperconectividade, podem ser compartilhados com outros devices, como o smartphone ou outros dispositivos conectados diretamente à internet (IoT), criando uma rede interativa entre dispositivos, que assumem verdadeira função de vigilância dos interesses e da predisposição do usuário. Este, por sua vez, é “entendido” por tais equipamentos devido ao perfil comportamental traçado (profiling).

Para a compreensão dessa multiplicidade de conexões e dispositivos, Jonathan Zittrain propõe o conceito de "generatividade"5, abrindo a discussão para a classificação da IoT em "internet das coisas úteis" e "internet das coisas inúteis".

Sensores em geladeiras e armazéns da indústria alimentícia; rastreadores de localização em tempo real no setor da logística6; pulseiras que medem a pressão de pacientes com quadro instável de saúde ao longo do dia... Todos esses exemplos poderiam ser entendidos como integrantes de uma "internet das coisas úteis", tendo em vista que cada dispositivo citado traz uma real vantagem para o usuário do setor indicado. Com esses exemplos em mente, Eduardo Magrani convida o leitor para refletir se produtos como "garrafas térmicas com sensores, geladeiras com Twitter e persianas conectadas" integrariam este rol de utilidade7.

Para distinguir os dispositivos conectados entre úteis e inúteis, a newsletter TrendWatching delimitou a IoT em áreas como saúde (física e mental), bem-estar, segurança pessoal e privacidade de dados8. Outra classificação foi realizada pela empresa Libelium, ao distinguir a IoT nas classes de cidades, meio ambiente, água, medição, segurança e emergências, comércio, logística, controle industrial, agricultura, pecuária, automação residencial e saúde9.

Em que pese as classificações acima serem pertinentes para a organização e subdivisão de produtos conectados em IoT, acredita-se que não sejam suficientes para distinguir, em definitivo, se determinado dispositivo integraria o conceito de útil ou inútil. É preciso teorizar uma distinção e a disciplina jurídica dos dados pessoais pode ser o elemento diferenciador.

Para investigar o enquadramento de um dispositivo em alguma destas duas classificações (útil ou inútil), sugerimos o seguinte critério: a) se a coleta de dados pelo dispositivo e o esforço praticado pelo usuário resultam em efetiva benesse ao indivíduo, é útil; ou b) se a coleta de dados pelo dispositivo e o esforço praticado pelo usuário não resultam em benesse ou comodidade que os justifiquem, é inútil.

Para que fique ainda mais claro, imagine-se novamente o exemplo de Magrani quanto à geladeira com acesso ao Twitter. É extremamente provável que se enquadre no rol de dispositivos da internet das coisas inúteis, tendo em vista que, ao se dirigir para a geladeira, o indivíduo está buscando alimentos e não informações em redes sociais. Além disso, provavelmente esse indivíduo estará com seu celular em mãos ou próximo a si, de modo que, caso queira consultar a rede social, dificilmente o fará de pé em frente à geladeira, mas, sim, sentado, empunhando seu smartphone, ainda que esteja simultaneamente a apreciar sua refeição.

Note-se que, ao somar o esforço praticado pela indústria (programação, mão de obra e elevação de custos para fornecer essa função), o esforço praticado pelo usuário (se desviar de seu objetivo principal de se alimentar e utilizar a rede social em uma posição desconfortável) e a coleta de dados (de redes sociais, por uma geladeira), o resultado final não se mostra razoável para gerar uma facilidade ou comodidade que façam sentido. Portanto, tal dispositivo integraria a internet das coisas inúteis.

Não obstante, um contraponto importante deve ser levantado: o mesmo dispositivo poderia ser classificado como útil, a depender do perfil de seu usuário. Imagine-se o seguinte produto: uma geladeira que informa ao seu proprietário que o leite está acabando. Agora, considere-se que: (i) cenário 1: o proprietário da geladeira é uma pessoa física, em sua residência com seu cônjuge e dois filhos; (ii) cenário 2: o proprietário é uma grande companhia de alimentos, cujo leite é um ingrediente essencial para seu produto final.

No primeiro cenário, o dispositivo provavelmente seria classificado como inútil, uma vez que o usuário poderia facilmente procurar o leite na geladeira e, em caso de falta, anotar o produto na lista de compras ou em um checklist em seu smartphone. Já no segundo cenário, a empresa utiliza milhares de litros de leite por dia, de modo que não é fácil acompanhar o estoque, sendo, ainda, o leite um item indispensável para sua cadeia de produção. Em razão disso, tal dispositivo poderia impactar significativamente o negócio ao passo em que controlaria a quantidade de leite ainda disponível e, caso estivesse acabando, já direcionaria automaticamente um pedido de reposição para o fornecedor cadastrado. Neste caso, evidentemente, o dispositivo pode ser classificado como útil.

O fato de um mesmo dispositivo poder apresentar mais de uma finalidade de uso e, consequentemente, poder ser classificado como útil ou inútil a depender do contexto confirma o conceito de "generatividade" de Zittrain. Não obstante, novos questionamentos emergem dessa constatação, a exemplo dos seguintes: qual seria o limite da coleta e do uso de dados pessoais por dispositivos “inúteis”? Haveria diferenças entre eles e o tratamento por dispositivos classificados como "úteis"?

As respostas não são simples. Para responder aos questionamentos, é necessário realizar um estudo sobre o que a legislação define acerca do tema, sobre quais regulações existem até hoje e se estas são suficientes para tutelar os interesses individuais e coletivos envolvidos, levando-se em consideração o comportamento do ser humano na sociedade da informação10.

No ano de 2019, foi publicada a primeira norma brasileira que trata expressamente sobre o assunto: o Decreto n° 9.854/2019 (Plano Nacional de Internet das Coisas). Conforme observa Eduardo Magrani, o desenvolvimento do Plano Nacional de IoT foi oportuno, vez que ocorreu em um momento no qual são amplamente discutidos conceitos como "hiperconectividade", e-citizens, ­e-GOV, e-commerce, indústria 4.0, computação ubíqua/persuasiva, entre outros.

Logo em seu artigo 1°, o decreto informa que o seu objetivo é desenvolver e implementar a internet das coisas no país, devendo observar os princípios da livre concorrência e da livre circulação dos dados. Todavia, sabe-se que seres humanos não são absolutamente previsíveis. Bem ao contrário, é preciso reconhecer a imperfeição dos comportamentos humanos, pois, diferentemente das máquinas, que seguem rotinas padronizadas, exatas e balizadas pela matemática e pela lógica, os indivíduos humanos, além de serem racionais, também são seres extremamente emocionais, cuja característica marcante é, muitas das vezes, agir por impulso, orientado pelo imediatismo, sem refletir devidamente sobre as consequências de seus atos. Portanto, a proteção aos dados pessoais deve conjugar outros valores centrais do ordenamento, como consta do artigo 1º da lei 13.709/2018, ao destacar que o tratamento de dados pessoais deve ter o "objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural".

O debate sobre generatividade acaba redundando, enfim, na necessidade de ponderação sobre os contornos teleológicos da inovação disruptiva, que é fomentada largamente por balizas como a livre concorrência e a livre circulação de dados (citadas no Plano Nacional de IoT), mas sem desconsiderar a necessidade de preservação do direito fundamental à proteção de dados pessoais e todos os direitos que lhe são correlatos.

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1 "Anything that can be connected, will be connected". MORGAN, Jacob. A simple explanation of 'The Internet Of Things'. Forbes, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

2 Sobre as cidades inteligentes (smart cities), consultar a publicação, nesta coluna, do ensaio de FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Cidades inteligentes (smart cities) e proteção de dados pessoais. Migalhas, 1º de abril de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

3 EDELMAN, Gilad. What is Web3, anyway? Wired, 29 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

4 SANTOS, Bruno et al. Internet das coisas: da teoria à prática. Link School of Business. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

5 ZITTRAIN, Jonathan. The Generative Internet. Harvard Law Review, Cambridge, v. 119, p. 1974-2040, maio 2006, p. 1987-1988. Anota: "The Internet today is exceptionally generative. It can be leveraged: its protocols solve difficult problems of data distribution, making it much cheaper to implement network-aware services. It is adaptable in the sense that its basic framework for the interconnection of nodes is amenable to a large number os applications, from e-mail and instant messaging to telephony and streaming video. (…) Thus, programmers independent of the Internet’s architects and service providers can offer, and consumers can accept, new software or services".

6 GILCHRIST, Alasdair. Industry 4.0: The Industrial Internet of Things. Nova York: Apress, 2016, p. 29-31.

7 MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, p. 47.

8 TRENDWATCHING. Internet of caring things: Why consumers will embrace connected objects with a clear mission: to actively care for them. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

9 LIBELIUM. 50 Sensor applications for a smarter world. Get inspired! 2012. Disponível aqui. Acesso em: 25 mar. 2022.

10 McEWEN, Adrian; CASSIMALLY, Hakim. Designing the Internet of Things. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2014, p. 294.

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Coordenação

Cintia Rosa Pereira de Lima, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto – FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Ottawa University (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pó-doutora em Direito Civil na Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD - www.iapd.org.br. Associada Titular do IBERC - Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil. Membro fundador do IBDCONT - Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Advogada.

Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, professora doutora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo desde 2011. Academic Visitor da Faculty of Law of the University of Oxford (2015-2016). Pós-doutora pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2014-2015). Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP (2011). Graduada pela Faculdade de Direito da USP (2006). Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Ética e Inteligência Artificial da USP – CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Evandro Eduardo Seron Ruiz, professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor lLivre-docente pela USP e pós-Doc pela Columbia University, NYC. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Newton De Lucca, professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (biênio 2012/2014). Membro da Academia Paulista de Direito. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Vice-presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados.