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Cidades inteligentes (smart cities) e proteção de dados pessoais

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado às 08:13

A ascensão da chamada Internet das Coisas (Internet of Things, na expressão em inglês, ou simplesmente IoT) reflete a empolgação que já permeia o avanço da sociedade rumo à consolidação de novos modelos interativos que permitem à tecnologia se introjetar nas rotinas da população com os espaços urbanos. Nos espaços públicos, almeja-se que tudo se torne "smart" para a consolidação de uma cidade "inteligente". Como sugerem Waleed Ejaz e Alagan Anpalagan, para que isso seja possível, estratégias de implementação de recursos baseados no conceito de IoT são fundamentais para que se tenha incrementos a nível habitacional (smart homes), elétrico/energético (smart grids), econômico (smart economy), de mobilidade urbana (smart mobility and transport), de atendimento à saúde (smart healthcare) e de segurança pública (smart security).1

No imaginário geral, propostas desse tipo parecem remeter à ficção científica ou a uma espécie de ciberutopia que se faz presente na literatura e no cinema. Entretanto, muitas aplicações ditas "inteligentes" já são reais. Cidadãos se utilizam de equipamentos conectados a suas redes domésticas, por exemplo, para comandar luzes, tomadas, panelas, eletrodomésticos, assistentes pessoais... As casas estão se tornando "smart" em festejo à comodidade!2

Igualmente, são festejadas a celeridade e a eficiência de modelos de atendimento ao público baseados em algoritmos de Inteligência Artificial, que otimizam a oferta de metrôs e VLTs, contribuindo para a redução do número de veículos automotores (e de poluentes) nas vias públicas. Também se almeja propagar cada vez mais a utilização de sistemas de gestão de pagamentos que não dependam da troca de dinheiro em espécie, evitando-se, com isso, o uso de papel moeda. Sugere-se, ainda, a descentralização energética pelo uso de redes fotovoltaicas para que seja possível reduzir a centralidade de sistemas de distribuição de energia elétrica a partir de grandes powerplants. Não é surpresa, portanto, que o tema esteja na ordem do dia, uma vez que consta expressamente da Agenda 2030 para Cidades e Comunidades Sustentáveis da Organização das Nações Unidas.3

O fascínio do homem pela técnica sempre foi o vetor primordial da inovação, hoje dependente da hiperconectividade das redes para agregar valor à urbe contemporânea, cada vez mais 'virtualizada'. Sem dúvidas, grande empolgação surge a partir de modelos estruturais que revelam a imprescindibilidade da tecnologia para a proliferação do desenvolvimento.4

Exemplos de grandes projetos de implementação de cidades inteligentes vêm à mente, como o de Barcelona, na Espanha - considerada referência para o tema -, onde se começou a discutir a reformulação das estruturas urbanas por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1992. A cidade catalã se baseou em premissas como a oferta de habitação, a melhora de infraestruturas urbanas, a criação de mais parques e jardins, a eliminação e melhoria da gestão de resíduos, o investimento em arquitetura e planejamento urbano metropolitano com preservação de prédios históricos, a criação de melhores modelos de distribuição elétrica, fornecimento de água, tecnologias digitais e de comunicação e a promoção internacional do turismo com abordagem integrada de todas essas benesses.5

A transformação urbana, a partir de uma perspectiva holística, integrando-a ao nível da rua no projeto urbano envolve planejamento de longo prazo, com uma boa combinação de indicadores criteriosos associados aos grandes objetivos políticos e à melhoria da qualidade de vida das pessoas. Não se descarta, ademais, a importância da proteção do patrimônio cultural das cidades.6 No entanto, um projeto desse tipo também deve incorporar operações de alto impacto e baixo custo, como as "micro-urbanizações"7, descritas pela doutrina como estratégias de propagação do uso de apps para interconectar os cidadãos às novas funcionalidades da urbe, verticalmente integradas em função da coleta e do tratamento massivo de dados pessoais de habitantes e visitantes/turistas e do monitoramento, em tempo real, de utilização dessas novas estruturas.

No Brasil, apenas para citar um exemplo mais próximo, a cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, tem se mostrado pioneira na implementação de um projeto desse tipo. Conhecida por sua pujança turística, a bucólica urbe já vem sido reconhecida há alguns anos pelo projeto "Gramado, Cidade InteliGENTE", que já recebeu distinções e prêmios.8

Também é importante mencionar que há grande incentivo à internacionalização de projetos desse tipo a partir da realização de eventos periódicos como o Smart City Expo World Congress e o Mobile World Congress - para citar alguns -, e da criação de modelos-padrão, como City Protocol Society, um código-fonte aberto e disponível a gestores de cidades que queiram investir no desenvolvimento de serviços públicos urbanos, com vistas à popularização de uma nova anatomia das cidades: as "smart cities".

Apesar do nome e de eventual imprecisão na tradução do adjetivo smart (esperto, sagaz), da Língua Inglesa para a Portuguesa, como "inteligente", é inegável que não se tem, nessas novas estruturas urbanas, algoritmos realmente inteligentes ou pensantes. Tudo é funcionalizado a partir de parâmetros previamente estabelecidos, o que conduz ao contraponto de toda a empolgação que norteia modelos inovadores para as cidades.

De fato, a discussão perpassa pela compreensão do escopo e dos limites da proteção de dados pessoais. Como se disse, é preciso que todo cidadão esteja conectado à Rede para que possa usufruir das promissoras benesses desses modelos tecnológicos aplicados às cidades.

Para além de questões estruturais relacionadas ao acesso à rede, iniciativas legislativas como a Proposta de Emenda à Constituição nº 185/20159 ou, bem mais recentemente, a Proposta de Emenda à Constituição nº 8/202010, têm a intenção de inserir um novo inciso ao artigo 5º da Constituição da República, fazendo constar, dentre o rol de direitos e garantias individuais, o acesso universal à Internet.

Já tivemos a oportunidade de alertar para o seguinte: 

Não se pode deixar de mencionar o impacto que uma reformulação como essa traria para a sociedade em seu momento atual, na medida em que modificaria todo o padrão estrutural da interação entre Estado e cidadãos. Parte-se da imperiosa implementação de políticas públicas voltadas ao acesso da população em geral à Internet e da disponibilização de sistemas como a wi-fi gratuita e projetos de cidades inteligentes (smart cities). (...) É preciso mais. E incumbe ao Estado garantir o cumprimento de medidas que visem combater a referida exclusão [digital], propiciando franco acesso dos cidadãos à Internet de modo a trazê-los para o universo digital, com abertura a um novo leque de possibilidades de participação social.11 

Não se nega que, nos últimos dez anos, planejadores urbanos, empresas de tecnologia e governos promoveram a ideia de que cidades inteligentes dependem de estruturas de controle levadas a efeito por meio de coleta e da análise de dados na chamada "sociedade da vigilância".12 Nesse contexto, é impossível não mencionar as preocupações de Gary Marx quanto à ascensão de um Estado policialesco e dependente dos algoritmos para a fiscalização da vida cotidiana13, revelando os perigos de um novo e robustecido "panóptico".14 Ou, como prefere David Lyon, de uma sociedade da vigilância amplamente controlada pelo Estado15, cada vez mais empoderado e tendente ao totalitarismo em viés - como diz o autor - muito mais severo do que a tendência orwelliana16 extraída da noção de vigilância.

A pandemia de Covid-19 revelou o potencial de estruturas algorítmicas para o controle de aglomerações - e já tivemos a oportunidade de analisar, nesta coluna, o emblemático exemplo do Simi-SP17 -, o que evidencia a premência do debate sobre a implementação de mecanismos de proteção de direitos em um ambiente extremamente novo e desafiador.

A aplicação prática da Internet das Coisas, da computação em nuvem e da integração do Big Data na vida cotidiana certamente é convidativa e tem o potencial de proporcionar benefícios. A crítica construída pela doutrina a essa tendência não faz alerta específico aos perigos da tecnologia em si, mas de seus usos.

Questiona-se: são as cidades inteligentes soluções suficientemente otimizadas, sustentáveis ??e equilibradas para superar os problemas urbanos em sua vasta plêiade de desafios? Ou são "não-lugares" (haja vista a transposição de estruturas de controle para a web) controlados por corporações - e não pelo Estado - em indesejado percurso antidemocrático?18

Por certo, a disciplina urbanística da propriedade "há de se sujeitar inteiramente aos princípios constitucionais consagradores da propriedade individual com suas limitações".19 Todavia, a ascensão da tecnologia propicia novas leituras para o que se entende por limitações à propriedade. O contraste entre liberdade e igualdade passa a ser atormentado pelo festejo da técnica, que inaugura novos e empolgantes modelos de controle e vigilância, imiscuindo-se às leituras que se faz das urbes contemporâneas, como alerta Marcos Catalan: "Talvez, sem perceber - embora, com esperada docilidade -, eles têm suas liberdades, contínua e suavemente, desbastadas, corroídas ou carcomidas nos mais distintos espaços de convivência urbana".20

Legislações protetivas, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira (lei 13.709/2018) não tratam especificamente das smart cities, mas sinalizam a importância da proteção de dados pessoais em contextos variados. Em estudo pioneiro - e que será publicado em breve - a pesquisadora Isadora Formenton Vargas realça esse ponto de vista, indicando três grandes eixos para que se possa conciliar a proteção de dados pessoais à crescente busca pelo implemento tecnológico em espaços urbanos: (i) a compreensão de que se está diante de grande espectro conceitual, tendo em vista que a União Internacional de Telecomunicações - UIT aponta, pelo menos, 116 definições conceituais para a expressão "cidade inteligente"; (ii) a compreensão dos limites e desafios do estado da arte da governança digital no Brasil (embora, nesse ponto, a recentíssima lei Federal 14.129, de 29 de março de 202121 sinalize desejável mudança); (iii) a compreensão ampliativa da tônica das atividades de tratamento de dados, e sua imperiosa proteção, quando realizada pelo Poder Público.22

Ainda há muito a se investigar no capítulo destinado pela LGPD ao tratamento público de dados pessoais (arts. 23 e seguintes), inclusive quanto à amplitude do conceito de 'finalidade pública' que norteia tais atividades. Por certo, o labor regulatório infralegal, a ser levado a efeito pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANPD, será essencial para trazer maior clareza às zonas cinzentas que ainda pairam sobre este e outros dispositivos do mesmo capítulo da norma.

De todo modo, não se pode negar a importância do debate em torno do desenvolvimento de estruturas regulatórias mais específicas, inclusive no âmbito federal, para a propagação de iniciativas de implementação de smart cities por todo o Brasil.

Uma nova agenda urbana norteada pela tecnologia não pode se desconectar de princípios e preceitos essenciais que garantam não apenas a preservação cultural e do patrimônio arquitetônico das cidades - cada vez mais high-techs - mas também a garantia de efetivação dos fundamentos (art. 2º) e princípios (art. 6º) que norteiam as atividades de tratamento de dados realizadas por algoritmos implementados para operacionalizar as empolgantes estruturas tecnológicas dessas urbes contemporâneas. 

*José Luiz de Moura Faleiros Júnior é doutorando em Direito pela USP. Mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e professor.

__________

1 EJAZ, Waleed; ANPALAGAN, Alagan. Internet of Things for smart cities: technologies, Big Data and security. Cham: Springer, 2019, p. 3-11.

2 MUNTADAS, Borja. Algoritmos en la vida cotidiana: apps, gadgets y dependencia tecnológica. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe, SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Direito digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 641 et seq.

3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 2030. Cidades e Comunidades Sustentáveis. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

4 PELTON, Joseph; SINGH, Indu. Smart cities of today and tomorrow: better technology, infrastructure and security. Cham: Springer, 2019, p. 225 et seq.

5 VIVES, Antoni. Smart city Barcelona: the Catalan quest to improve future urban living. Brighton: Sussex Academic Press, 2018, p. 32-35.

6 Em importantíssima obra, Eduardo Tomasevicius Filho analisa o instituto do tombamento quanto à proteção do patrimônio cultural, mas, de forma propositiva, conclui que "[o]s objetos qualificados como bens culturais são lugares de memória, porque auxiliam na recordação do passado. Sendo possível a ocorrência de manipulações, podem ocorrer usos políticos do passado, por meio da valorização da cultura elitista em detrimento da cultura popular (.). Define-se, então, bem cultural como bem, material ou imaterial, que tem a aptidão para contribuir com o desenvolvimento pessoal de quem o vê, por meio de sua contemplação, observação, contato e experimentação, geralmente selecionado como documento histórico de época acerca de determinado modo de vida, arte ou técnica ou por ser suporte da identidade coletiva ou da memória coletiva." TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A proteção do patrimônio cultural brasileiro pelo direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 256.

7 LISDORF, Anders. Demystifying smart cities. Nova York: Apress, 2020, Cap. 11.

8 MUNICÍPIO DE GRAMADO. Comunicação e Imprensa. Gramado Cidade InteliGENTE recebe prêmio na área de desenvolvimento econômico e social. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

9 BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 185/2015. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

10 BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 8/2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

11 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Administração Pública Digital: proposições para o aperfeiçoamento do Regime Jurídico Administrativo na sociedade da informação. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 276-277.

12 Cf. HALOGOUA, Germaine. Smart cities. Cambridge: The MIT Press, 2020.

13 Cf. MARX, Gary T. Fragmentation and cohesion in American society. Washington, D.C.: Trend Analysis Program, 1984.

14 Jeremy Bentham, em 1785, sugeriu o termo "panóptico" para se referir a uma estrutura penitenciária considerada ideal, pois permitiria a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que estes pudessem saber se estão ou não sendo observados. BENTHAM, Jeremy. Panopticon letters. In: BOZOVIC, Miran (Ed.). Jeremy Bentham: the panopticon writings. Londres: Verso, 1995, p. 29.

15 LYON, David. The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, p. 86-87.

16 A referência é extraída da clássica obra '1984', de George Orwell: "There was of course no way of knowing whether you were being watched at any given moment. How often, or on what system, the Thought Police plugged in on any individual wire was guesswork. It was even conceivable that they watched everybody all the time, but at any rate they could plug in your wire whenever they wanted to. You have to live-did live, from habit that became instinct-in the assumption that every sound you made was overheard, and, except in darkness, every movement scrutinized." ORWELL, George. Nineteen Eighty-Four. Nova York: Penguin Classics, 1961. E-book, p. 3.

17 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Dados anonimizados e o controle de aglomerações na pandemia da Covid-19. Migalhas de Proteção de Dados, 28 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

18 Conferir, sobre o tema: MOROZOV, Evgeny; BRIA, Francesca. A cidade inteligente: tecnologias urbanas e democracia. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2019.

19 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 24.

20 CATALAN, Marcos. A difusão de sistemas de videovigilância na urbe contemporânea: um estudo inspirado em Argos Panoptes, cérebros eletrônicos e suas conexões com a Liberdade e a igualdade. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (Coord.). Direito civil e tecnologia. Belo Horizonte: Fórum 2020, p. 141

21 BRASIL. Lei 14.129, de 29 de março de 2021. Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2021.

22 VARGAS, Isadora Formenton. Três fundamentos à cidade inteligente: a tônica da proteção de dados no Poder Público. In: CRAVO, Daniela Copetti; CUNHA, Daniela Zago Gonçalves da; RAMOS, Rafael (Coord.). Lei Geral de Proteção de Dados e o Poder Público. Porto Alegre: Centro de Estudos da PGM/Escola do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, 2021. No prelo.