Migalhas de Responsabilidade Civil

Notas sobre a natureza e o regime jurídico da retenção de parcelas autorizada pela Lei dos Distratos

Notas sobre a natureza e o regime jurídico da retenção de parcelas autorizada pela Lei dos Distratos.

17/9/2020

Na esteira da grave crise econômica instaurada a partir 2014, quando se assistiu à significativa redução do valor do metro quadrado e, consequentemente, a sistemáticos desfazimentos de negócios por adquirentes de unidades autônomas fruto de incorporação imobiliária, frustrados em suas expectativas de lucro, editou-se a lei 13.786 em 2018 com o escopo de reafirmar a irretratabilidade das promessas de compra e venda. Conhecida como Lei dos Distratos Imobiliários, a novel legislação cuidou de regular, dentre outras questões, os efeitos do inadimplemento do promitente comprador.

Para o tema enfrentado nesta breve coluna, merecem destaque os arts. 35-A e 67-A, atualmente parte integrante da lei 4.591/64 (Lei das Incorporações Imobiliárias). O art. 35-A determina que os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes da incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo que, dentre outras informações, deverá conter, nos termos do inciso VI, "as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento de obrigação do adquirente ou do incorporador, com destaque negritado para as penalidades aplicáveis e para os prazos para devolução de valores ao adquirente".

Do dispositivo extrai-se que o desfazimento do negócio poderá ocorrer em duas situações distintas: por meio de resolução motivada por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente ou do incorporador ou por meio do distrato. Nesse último caso, é importante sublinhar que, por se tratar de hipótese de resilição bilateral, faz-se imprescindível o consenso entre as partes relativamente à intenção de desfazer a promessa de compra e venda anteriormente celebrada. Não há aqui direito potestativo assegurado ao contratante de resilir unilateralmente.

O art. 67-A corrobora referido entendimento, dispondo que em "caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: [...] II – a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga". Cuidando-se de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação, a retenção pode ser de até 50% (cinquenta por cento) da quantia paga, nos termos do §5º do mesmo dispositivo.

Em definitivo, e reforçando a irretratabilidade das promessas de compra e venda, os dispositivos mencionados apenas admitem o desfazimento do negócio mediante distrato – que requer, repita-se, o consenso entre as partes – ou resolução por inadimplemento absoluto de uma das partes; soma-se a essas hipóteses a resolução inimputável, decorrente de impossibilidade ou onerosidade excessiva da prestação. Não há autorização, portanto, para denúncia, ou seja, resilição unilateral do negócio.

Nesse sentido, de regra, não é dado ao adquirente desistir do ajuste apenas porque o investimento feito não se mostrou tão rentável quanto esperado, tendo em vista a desvalorização no preço do metro quadrado. Cuida-se, em verdade, de hipótese de inadimplemento da prestação, mais especificamente, de mora, já que a prestação ainda se afigura possível para o devedor e útil para o credor, que poderá perseguir a execução específica compelindo o promitente comprador a pagar as prestações conforme ajuste contratual. Recorde-se que não é o devedor quem escolhe o remédio a ser aplicado ao seu inadimplemento, pelo que, repita-se, não pode o promitente comprador optar pela resolução diante do seu desinteresse em adimplir suas prestações por não se afigurar o negócio tão lucrativo como outrora.

Situação que pode conduzir a solução diversa é aquela em que o adquirente declara ao incorporador que já não pode arcar com as prestações ajustadas por limitações financeiras. Isso porque, embora a hipótese também se qualifique como inadimplemento – e isso é fundamental sublinhar –, no mais das vezes, tratar-se-á de inadimplemento absoluto, não já de mora, a autorizar o credor a resolver a relação obrigacional, com todos os efeitos daí decorrentes. Caberá, por conseguinte, ao incorporador avaliar se, a despeito da declaração do devedor, há chances reais de obter o cumprimento das prestações por meio da execução do contrato: verificando a efetiva falta de recursos financeiros, eventual execução afigurar-se-ia infrutífera e dispendiosa, a afastar o interesse do credor em perseguir o cumprimento específico; nesse cenário, configurado estará o inadimplemento absoluto, restando ao incorporador o caminho da resolução – já que a execução pelo equivalente tampouco lhe atenderia tendo em vista as restrições patrimoniais do devedor.

Seja como for, fato é que, diante de inadimplemento absoluto, poderá o incorporador reter até 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga ou então de até 50%, caso se trate de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação. Cuida-se, a toda evidência, de cláusula penal compensatória, cuja função é prefixar as perdas e danos. O intuito do legislador ao prever referidas porcentagens foi, inequivocamente, limitar a autonomia privada na fixação do montante da cláusula, impondo uma "tarifação" da indenização devida em caso de desfazimento do contrato.

Ao que parece, o legislador, ao estabelecer limite máximo para a fixação da cláusula penal compensatória no âmbito das promessas de compra e venda regidas pela lei 4.591/64, acabou por afastar desses contratos a aplicação do art. 413 do Código Civil, segundo o qual "a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio". Isso porque não se afigura possível configurar os pressupostos necessários à redução equitativa da penalidade: de um lado, o promitente vendedor não se beneficiará do cumprimento parcial da prestação, que será restituída ao promitente comprador – salvo a indenização ajustada –, e tampouco o montante pactuado se revelará manifestamente excessivo, pois o próprio legislador já fixou o teto que entende razoável levando em consideração, justamente, a natureza e a finalidade do negócio.

De todo modo, o que merece reflexão mais detalhada é a possibilidade, nas hipóteses de resolução, de afastamento da incidência da cláusula penal. E ao que tudo indica, há duas situações nas quais o promitente vendedor não poderá reter parte das parcelas pagas. A primeira delas decorre da própria lei, estando contemplada no §9º do Art. 67-A: nos termos do referido dispositivo, não incidirá a cláusula penal contratualmente prevista quando o adquirente que deu causa ao desfazimento do contrato encontrar comprador substituto que o sub-rogue nas obrigações originalmente assumidas, desde que haja a devida anuência do incorporador e a aprovação dos cadastros e da capacidade financeira e econômica do comprador substituto. Nesse caso, estará caracterizada hipótese de cessão de posição contratual, transferindo-se ao novo adquirente a obrigação de pagar o saldo devedor e o direito de exigir a outorga da escritura definitiva após a quitação do preço. 

O segundo caso está inequivocamente atrelado à ausência, em concreto, dos pressupostos indispensáveis à aplicação da cláusula penal. Assim, a retenção de parte das parcelas pagas pelo promitente comprador não terá lugar quando, por óbvio, o próprio promitente vendedor não executar as prestações que lhe cabem, seja por fato a ele imputável – caracterizando-se o seu inadimplemento e sendo-lhe, portanto, imposto o dever de pagar perdas de danos ao promitente comprador –, seja em razão de caso fortuito ou fato do príncipe. Pense-se, por exemplo, na hipótese em que o promitente comprador não consegue obter o financiamento junto à instituição financeira porque a incorporadora não conseguiu averbar a conclusão da obra no Registro de Imóveis dentro do prazo originalmente pactuado. Deverá, ainda, o incorporador restituir integralmente as parcelas pagas do preço quando a construção do empreendimento se tornar impossível em razão da desapropriação do imóvel.

Além disso, a leitura em conjunto dos arts. 393 e 408 do Código Civil permite concluir que a cláusula penal não será aplicável quando a inexecução da obrigação do promitente comprador decorrer de caso fortuito ou força maior, já que ausente a imputabilidade necessária à configuração do inadimplemento absoluto. Advirta-se, todavia, que não se enquadra nessa hipótese o eventual desequilíbrio da situação patrimonial do promitente comprador capaz de impedi-lo de honrar suas dívidas, ainda que decorrente de fato a ele inimputável, como ocorre quando, em virtude de crise econômica ocasionada por uma pandemia, vem a perder o emprego. Há aí, como já afirmado, inadimplemento, fazendo-se presente a imputabilidade necessária à incidência da cláusula penal (art. 408, CC). Embora, nesses casos, a origem do desequilíbrio patrimonial remonte a um caso fortuito (pandemia que levou ao desemprego), fato é que oscilação patrimonial é risco do devedor, pelo que é ele quem deve assumir as consequências daí advindas.

Não se afigura possível, portanto, sequer qualificar tal situação como impossibilidade subjetiva da prestação, a qual requer que a prestação se torne efetivamente impossível para o concreto devedor da relação, vale dizer, conquanto aquele devedor esteja impossibilitado de cumprir, outra pessoa pode fazê-lo. Note-se, contudo, que apesar subjetivo, para qualificar-se como impossibilidade, o obstáculo imposto ao devedor há de ser generalizável, de modo que qualquer outro devedor colocado na mesma situação tampouco poderia cumprir a prestação, como se verificaria se o devedor, acometido por certa enfermidade, não pudesse adimplir prestação personalíssima. Bem se vê, por conseguinte, que o mesmo raciocínio não sem aplica em caso de desequilíbrio patrimonial do promitente comprador, já que sua situação não é generalizável, pois outros devedores, a despeito de perderem o emprego, podem, por exemplo, ter economias suficientes a fazer frente às prestações devidas. Casos como esse devem ser resolvidos com institutos jurídicos que levem em conta não apenas o contrato de promessa de compra e venda isoladamente considerado, mas a global situação patrimonial do devedor.  Cuida-se, com efeito, de problema atinente a patrimônio, e não a contrato.

*Aline de Miranda Valverde Terra é professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio. Sócia de Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.

**Roberta Mauro de Medina Maia é professora de Direito Civil da PUC-Rio. Advogada.

__________

Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.