Migalhas de Responsabilidade Civil

CNJ decreta o fim da expressão "erro médico" como classificação dos temas processuais

A substituição do termo "erro médico" por "danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde" visa corrigir distorções e preconceitos presentes na categorização anterior.

12/3/2024

Recentemente o Conselho Nacional de Justiça mudou a forma de classificação dos processos envolvendo médicos no âmbito das tabelas processuais unificadas. O CNJ criou as Tabelas Processuais Unificadas (TPU) como instrumentos que uniformizam os temas das demandas judiciais e, assim, facilitam, a pesquisa e também fornecem subsídios para aferir elementos quantitativos das demandas judiciais.

Desde então, a única profissão a qual era vinculado o termo “erro” era a Medicina. Inexistia “erro do advogado”, “erro do engenheiro”, “erro do enfermeiro”, “erro do fisioterapeuta” ou “erro do juiz”. Mas existia “erro médico”.1

Essa situação mudou em 09 de janeiro de 2024, data em que o CNJ, por intermédio do Sr. Gabriel da Silveira Matos, Secretário de Estratégia e Projetos, anunciou a retirada do termo “erro médico” das Tabelas Processuais Unificadas (TPU) e a substituição deste termo por “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde.”

É incontroverso que o termo “erro médico” é usado no meio jurídico e social para nomear desfechos desfavoráveis em atendimentos de saúde. Ocorre que desfecho desfavorável não é sinônimo de erro praticado por um profissional da medicina.

É bem verdade, entretanto, que  alguns incidentes podem ser diretamente causados por ações negligentes, imprudentes ou imperitas de profissionais médicos; mas há ações negligentes, imprudentes ou imperitas praticadas por profissional de saúde não médico. E mais, independentemente de qual seja a profissão do especialista que causou o incidente, a configuração do erro só pode ocorrer após uma análise cuidadosa do comportamento em questão e a garantia ao direito ao contraditório e à ampla defesa.

Vera Lucia Raposo adverte:

Nem todo efeito adverso suscetível de ocorrer no âmbito de um ato médico traduz uma falta ética. O efeito adverso é um conceito muito lato, que pretende exprimir toda a ocorrência negativa sobrevinda para além da vontade do médico, que surja como consequência do ato médico e não do estado clínico que lhe deu origem, e que acaba por causar algum tipo de dano ao paciente.2

Genival Veloso pontua que o atual cenário de excessivo preconceito contra médicos gera uma análise prematura de que houve erro apenas em razão do resultado atípico e indesejado.3

A revisão do termo pelo CNJ se deu após provocação do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, órgão que utilizou o argumento acima para questionar o uso da expressão “erro médico” pelo CNJ e que destacava que o apontamento do suposto erro no ato da classificação da ação precede o trânsito em julgado da demanda. Ou seja, haveria – no uso do termo “erro médico” - um pré-julgamento da conduta enquanto culposa.

Do ponto de vista técnico, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, a categorização de um incidente como "erro médico" é considerada inadequada e até injusta, pois a ocorrência de um erro envolve diversos fatores e nem sempre é exclusivamente atribuível a um médico. O referido pensamento é compartilhado por Ministério da Saúde, ANVISA e FIOCRUZ, por exemplo. Assim, ao usar termo contrário aos ditames da OMS, o CNJ alimentava a desinformação e a confusão:  ações judiciais proposta em face de odontólogos, fisioterapeutas, biomédicos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, educadores físicos, médicos veterinários, farmacêuticos, biólogos, assistentes sociais e estudantes de saúde eram categorizadas como categoria “erro médico”.

O próprio Judiciário e a imprensa usavam da expressão “erro médico” para noticiar casos que envolviam profissionais não médicos ou situações em que a culpa não restava comprovada.4

Considerando a manifestação da CBC, o CNJ, determinou que, a partir de agora, as ações que versem sobre “erro médico” sejam categorizadas como danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde.

Se, por um lado, a retirada da expressão “erro médico” corrige uma grave violação à isonomia e uma injustiça normalizada, é necessário destacar ainda que a nova nomenclatura não se mostra adequada por dois elementos centrais: é restritiva e é possível que percamos um referencial quantitativo sobre judicialização relativa aos resultados adversos.

Ocorre que o pedido não era a criação de uma nova categoria, mas sim que fosse seguido o padrão internacional de “resultados adversos em saúde”. Assim, o CNJ - para suprimir a equivocada nomenclatura “erro médico”- cria uma nova nomenclatura  -   “dano moral e/ou material decorrente da prestação de serviço de saúde”, acaba por excluir outros tipos de danos extrapatrimoniais como dano estético, dano existencial e dano temporal; e mais, prejudica a tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais, conforme já defendido por Nelson Rosenvald.5

Enquanto fenômeno de acionamento recorrente do Judiciário nas relações médico-paciente, por vezes, de forma banal, a judicialização da Medicina precisa ser quantificada. Se antes sabíamos que havia 35 mil ações categorizadas como “erro médico”6, agora, só teremos os indicadores de “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde” como forma de mensurar o fenômeno. Nesse grupo, teremos uma infinidade de relações jurídicas judicializadas. A título exemplificativo, podemos ter ações de cobrança indevida, suposta má-prestação de serviços extramédicos, suposta má prestação de serviço paramédico e suposta má prestação de serviço médicos, todos englobados no tema destacado.

Adotar a métrica de “danos morais e materiais decorrente da prestação de saúde” para há uma infinidade de relações jurídicas distintas importa em um prejuízo na mensuração do fenômeno. Já o uso da expressão adotada pela OMS de “eventos adversos em saúde” reduziria a discussão para desfechos desfavoráveis com dano em que se discutiria a assistência prestada. O espectro seria muito menor e, portanto, mais significativo.

Sem dados, não há política a ser construída. 

Muito se avançou em relação à adequação do item de pesquisa, mas ainda se pode melhorar ainda mais. O primeiro passo talvez seja a adequação da nomenclatura do CNJ à orientação da OMS. Isso adequaria a discussão sobre os tipos de danos na responsabilidade civil e ainda promoveria uma padronização internacional.

__________

1 CNJ. Consulta pública de Assuntos. Disponível em https://www.cnj.jus.br/sgt/consulta_publica_assuntos.php

 

2 RAPOSO, Vera Lúcia. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.p. 14

3 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p. 58.

4 TJDFT. Clínica e dentista são condenados a indenizar paciente por erro em procedimento. Disponível aqui. G1. Polícia investiga caso de superdosagem de remédio que deixou jovem em estado vegetativo em Porto Alegre. Disponível aqui.

5 ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Disponível aqui.

6 BRASIL. CNJ registra quase 35 mil novos processos por erro médico no país. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2022.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.