Migalhas Edilícias

Seria chancelada a ditadura nos condomínios edilícios?

Seria chancelada a ditadura nos condomínios edilícios?

7/4/2020

Texto de autoria de Marcelo Barbaresco

Na última semana, foi aprovado pelo Senado Federal, o projeto de lei 1.179/2020 que, através de seu artigo 11, amplia e, até 15 de outubro de 2020, os poderes de gestão do síndico nos condomínios edilícios. O ótimo seria descobrir o fundamento da data.

No elenco desses poderes extraordinários, excepcionais, com prazo de duração limitado, se fez constar além da possibilidade de meramente restringir a utilização das áreas comuns do condomínio e, exatamente, por conta do covid-19, restringir ou proibir – percebam a elevação da ação para o proibir – a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros e, inclusive e, notadamente, nas áreas de propriedade privativa do condômino, isto é, em sua unidade autônoma, ou seja, em seu apartamento ou conjunto empresarial.

As únicas exceções previstas e, desde logo autorizadas pela futura norma, isto é, não passíveis de restrição ou proibição pelo Síndico se limitam a apenas três circunstâncias, quais sejam: atendimento médico, benfeitorias necessárias e obras de natureza estrutural. Afora estas três singelas hipóteses, o Síndico poderia restringir ou proibir, reprise-se: mesmo que no interior da unidade autônoma, qualquer atividade.

Em face desta proposta e, não desacreditando que grande parte dos Síndicos buscará, quando da futura definição da norma interna, conciliar os interesses de toda a coletividade condominial de forma que interesses conflitantes ao da sua vontade ou da maioria possam, também, ser atendidos de forma que a convivência com sossego e segurança desejada por aqueles que vivem e "Respiram e Aspiram suas Vidas" nos condomínios edilícios sejam alcançadas, a proposta encampada pela futura norma demanda muito cuidado.

É sentido e sabido que o atual cenário brasileiro e mundial é sensível e que medidas variadas devem ser adotadas, especialmente, nas esferas da saúde, da cultura, da economia e do direito tudo de forma a tranquilizar e buscar fazer passar, com o menor drama possível, este momento da dramática história mundial.

Entretanto, como nos encontramos em um estado democrático de direito, o direito também deve ser preservado. E preservar o direito significa dizer preservar além das instituições mas, também, os direitos fundamentais, dentre eles e, especialmente, para os fins do recorte deste artigo, o direito à saúde, à moradia e o de propriedade.

Certamente que, entre a preservação do direito à saúde e a preservação do direito à propriedade, o primeiro deve prevalecer sobre o segundo. Não há duvida sobre isso. Todavia, para que se possa afetar, mesmo que minimamente, o direito à propriedade, devem existir razões e fundamentos comprováveis pela ciência médica aplicada que seria a única medida razoável a ser adotada. Afinal, sabemos e reconhecemos que, sem exceção, todos os direitos fundamentais devem ser preservados. E dentre eles, o direito à saúde, à moradia e à propriedade, repito.

E preservar a propriedade significa dizer, inclusive, não impedir, de qualquer forma não autorizada constitucionalmente, que um condômino possa usar e gozar de sua coisa, isto é, de sua unidade autônoma, de seu apartamento ou de seu conjunto, em havendo medidas outras que possam ser por ele adotadas ou pelo condomínio em que residir ou trabalhar de forma a preservar a saúde por conta do covid-19. O impedimento, a restrição, a proibição deve constituir uma norma excepcional, admitida apenas em situações de exceção e de restrição constitucional de direitos; o que não é, definitivamente, a hipótese.

Ilustrativamente, e de forma a trazer o que se disse para a realidade vivida e sentida, importa mencionar algumas medidas que, segundo notícias, são adotadas por Síndicos em condomínios edilícios e que podem ilustrar que a dose do remédio é excessiva e, portanto, pode ocasionar a falência da ordem e dos direitos, com a consequente elevação do número de ações judiciais. São elas: Síndico proibindo o regresso (i.e. a entrada) de condôminos ao condomínio ao retornarem de viagem, sob a alegação de que devem cumprir quarentena e poderão contagiar os demais; Síndico proibindo o ingresso de visitantes na unidade autônoma após determinado horário; Síndicos obrigando a tomada de temperatura corporal e, se acima de determinado grau, vedando o ingresso no condomínio; Síndicos impedindo a mera pintura de paredes dos apartamentos ou a substituição de pisos gravemente danificados e que impedem o residir com segurança e, com isso, impedindo o acesso à moradia; Síndicos impedindo a entrega de geladeiras, fogões e demais bens, sob o argumento do aumento de pessoas transitando pelo condomínio e, por fim, Síndicos impedindo que pessoas passem a residir no condomínio, sob a alegação de que a circulação das pessoas da transportadora ocasionarão a elevação do número de contato de pessoas estranhas aos próprios condôminos. Os exemplos poderiam preencher ainda mais espaço neste artigo mas, servem apenas para ilustrar o que a norma, como colocada, tende a incentivar.

Assim, pergunta-se: qualquer uma dessas medidas é razoável? Estariam elas observando e conferindo sentido prático e efetivo ao fundamento da República Federativa do Brasil no sentido de construir uma sociedade livre, justa e solidária conforme determina o artigo 3º. da Constituição do Brasil? Estariam estes Síndicos preocupados com consigo mesmo e com os demais e menos, muito menos, com a totalidade dos condôminos?

A solidariedade residiria na circunstância de resguardar quais interesses? De todos, de vários, de alguns? Ela somente alcança sua máxima e desejável potência quando ampara a todos e não menos do que todos aqueles interesses e interessados. Neste sentido, o que o Síndico e as Administradoras devem pensar é no caminho mais longo, mais estratégico, menos trágico, menos traumático, menos custoso que consiste, simplesmente, no proibir; no restringir; no aniquilar, mesmo que temporariamente, direitos fundamentais.

E assim deve ocorrer de maneira a ser realizada uma ponderação entre os princípios que, de um lado, perseveram pela inafastável saúde, de outro pela sagrada moradia e, por fim e também relevante, pela preservação da propriedade.

Neste sentido, a regra proposta pelo projeto de lei acima mencionado, especificamente, em seu artigo 11, fere direitos individuais constitucionais e sem pedir licença prévia. Estabelece e, em nome da proteção à saúde, séria restrição ao uso da propriedade. Isso, como afirmado, na contramão de estabelecer regras de proteção aos moradores em equilíbrio de todos e dos usos possíveis sem que se comprometa – longe disso - a saúde.

Percebe-se que, nas e para as áreas comuns – piscina, quadra, sala de leitura, salão de festa, auditórios, bibliotecas, dentre outras – o Síndico pode restringir. Mas, por sua vez, para as unidades autônomas, o Síndico também pode proibir. Seu poder é ampliado mesmo no sagrado lar. Qual a diferença deste tratamento? Sejam as áreas comuns e, como se sabe, o inviolável recinto em que se mora ou no qual se exerce atrabalho, diferentes em sua essência acerca dos aspectos que demandam cuidados? Certamente não. Os cuidados devem ser igualmente distribuídos por todas as partes da propriedade, seja ela privativa ou comum.

Ademais, na letra da norma, se afirma que o Síndico pode proibir reuniões. Reuniões? O que seria isso? Mero encontro de entes da família, a exemplo de pais e filhos? Ou, então, em se tratando dos condomínios corporativos, uma reunião física com a participação de apenas duas pessoas? Dois amigos em situação de urgência – sob o prisma de sua subjetividade - e os porteiros proibindo o ingresso?

Parece que se partiu de uma premissa, sempre necessária e inafastável, de um adensamento "reunicional" (Sic!) que pudesse e, por conta da aglomeração, causar dano por conta da também intransponível possibilidade de contágio. Se assim o fosse, o que seriam dos médicos que, na linha frontal de tratamento, usam os tão em falta mundialmente equipamentos de proteção individual?

Portanto, não seria o caso de incentivar esta utilização nos condomínios edilícios e, não, simples e facilmente, proibir o uso e gozo da propriedade? Não seria mais equilibrado sob a ótica da solidariedade constitucionalmente insculpida como fundamento da República? O que se deve buscar, digo e repito a todo instante, é a conciliação de interesses e, não, medidas que pensem apenas em um dos lados. O autoritarismo não pode retornar; não deve prevalecer, mesmo que apenas pressuposto.

Parece que se esta prestes a consolidar a morte ou, então, quando bem menos, a suspensão de direitos fundamentais em nome e por conta da medida pouco pensada e refletida, mesmo reconhecendo e desde já parabenizando o autor e revisora do projeto de lei 1.179/2020, uma vez que diversos outros dispositivos do projeto de lei são essenciais para o momento de transição e apara a segurança jurídica das relações (a exemplo, da suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais; da possibilidade da realização de assembleias remotas, dentre outros).

Enfim, o que se deve impedir, ou melhor, não incentivar é a Ditadura do Síndico ou dos Conselhos ou Assembleias Gerais. E, em sendo aprovado este artigo e neste projeto de lei, lembremo-nos: se a proibição for para causar um bem maior por conta do desejo de apenas um ou da maioria, aquele que sofrer a restrição terá o direito de, uma vez comprovado o dano, dividir com os demais condôminos as perdas e danos que suportar. Pois, apenas assim, se estará efetivando um dos fundamentos constitucionais da República, ou seja, o da solidariedade. Pensar em resposta diversa, simplesmente, faria elevar o individualismo e o protecionismo exacerbados que, talvez, nos tenham conduzido a esta atual realidade.

Pensemos, também, acerca do prazo de validade do regime excepcional, se aprovado, o que não se espera. Seria ele adequado? Seria pertinente restringir ou proibir o uso e gozo da propriedade mesmo que, como querem todas as forças e energias, ocorrer a superação da pandemia antes de outubro de 2020?

Parece-me, novamente, que não. A regra do artigo 11 deveria adotar o critério legislativo da norma em branco e, em assim o sendo, ser preenchida sua lacuna em conformidade com as regras a serem publicadas em cada Estado da Federação ou, quando mais, por cada Município, especialmente, por tratar-se de norma de interesse local e, jamais, nacional, especialmente, em face das particularidades de cada pedaço de terra deste Brasil.

Por fim, um lema: Proteger: sempre. Proibir: nunca. Equilíbrio: algo inafastável. E que se diga não a atos descabidos e despidos de fundamentação sob a ótica da ciência médica.

*Marcelo Barbaresco é doutorando em Direito Comercial pela PUC/SP. Mestre em Direito Político e Econômico. Fundador e vice-presidente do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e presidente de sua Comissão de Shopping Centers. Advogado e professor na FGV Direito SP - FGV Law, no INSPER, na FAAP, assim como em outras instituições de ensino superior.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.