Não é nenhuma novidade que a tese resultante do julgamento do Tema 677/STJ, em 2014, foi revisada em 2022. Isso aconteceu no julgamento do REsp 1.820.963/SP, mediante um quórum apertado de 7x6. A partir dali, “na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente da penhora de ativos financeiros não isenta o devedor do pagamento dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial”.
A revisão foi substancial. Modificou inteiramente o entendimento que havia anteriormente, no sentido de que “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”.
Nada mais natural, então, que se modulassem os efeitos da nova tese, como forma de assegurar o princípio da proteção da confiança. Mas não foi isso o que aconteceu: votaram sobre a modulação apenas os ministros que votaram pela revisão da tese, ou seja, sete ministros. Os outros seis, que foram contrários à revisão, não participaram dessa etapa do julgamento.
Apesar de interpostos recursos na tentativa de corrigir essa distorção, esse desfecho vem se consolidando e, aparentemente, sequer chegará ao STF1.
Fazemos eco às manifestações do saudoso Min. Paulo de Tarso Sanseverino, na fatídica sessão de 19/10/22, quando, impedido de votar sobre a modulação, asseverou que esta é uma nova etapa do julgamento, de que deveriam participar todos os ministros e não apenas os votos vencedores2.
Uma das autoras deste artigo já teve a oportunidade de afirmar, com base em tradicional doutrina3, que, das duas técnicas possíveis para a colheita de votos em um julgamento colegiado, o mais harmônico com a genuína colegialidade é, sem dúvidas, o modelo “questão por questão” (issue by issue).
Segundo este modelo, os votos são colhidos por etapas: votam-se (i) as preliminares, para então se votarem (ii) as causas de pedir – uma a uma – e em seguida (iii) o mérito.4
É o que determina, a nosso ver, o art. 939 do CPC. Não apenas que se deve votar questão por questão, mas que sobre cada questão votem todos os julgadores, ou seja, “Votam-se as preliminares, e, depois, mesmo os que ficarem vencidos (art. 939 do CPC), sendo a ação admitida, votam no mérito: cada causa de pedir, em separado”5.
O saudoso (apesar do clichê, este excelente ministro deixou mesmo saudades...) Min. Sanseverino estava coberto de razão: a modulação se constitui como uma nova etapa do julgamento de incidentes de formação de precedentes em que se abandona orientação anteriormente abraçada pelo Tribunal. Trata-se de um novo Thema Decidendum. Logo, aqueles que ficaram vencidos na questão anterior, devem votar o tema logicamente posterior. Assim como o magistrado que fica vencido na preliminar, considerando, por exemplo, a parte ilegítima, deve votar no mérito. Nada há que sustente a afirmação de que, no caso da modulação, as coisas não devam se passar desta forma: a “lógica” é exatamente a mesma.
Todos os integrantes do colegiado devem manifestar-se quanto à modulação, mesmo aqueles que foram contrários a esta alteração. Na realidade, a decisão de mérito desempenha papel de preliminar quanto à da modulação e, portanto, o raciocínio deve ser necessariamente o mesmo6.
No STF, a rigor, todos os ministros votam na etapa da modulação, independentemente de como votaram no mérito.
O mais curioso é que o regimento interno do STJ endossa esse mesmo método de julgamento, issue by issue, como muito bem lembrou o Min. Raul Araújo, no voto vencido que proferiu nos segundos embargos de declaração opostos no REsp 1820963/SP.
No art. 164, consta que “As questões preliminares serão julgadas antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquelas”, enquanto do art. 165 se extrai que “Se for rejeitada a preliminar, ou, se embora acolhida, não vedar a apreciação do mérito, seguir-se-ão a discussão e o julgamento da matéria principal, e sobre ela também proferirão votos os ministros vencidos na anterior conclusão” (g.n.).
Talvez a preocupação com a duração de um julgamento conduzido por esse método, sintoma de um judiciário cada vez mais sobrecarregado, tenha levado a essa solução inadequada. Ou ainda com a dificuldade que surgiria se houvesse dispersão de votos, problema para o qual existem soluções, como elucida Araken de Assis7.
Mas nenhum desses aspectos poderia legitimamente ter levado à solução que se deu ao caso aqui comentado!
O julgamento é, sim, nulo, conforme sustentam as partes nos recursos que interpuseram e, lamentavelmente, não surtiram efeitos. É uma distorção preocupante do devido processo legal e contrária à essência dos julgamentos colegiados.
Se esse desfecho acabar se consolidando, que sirva, ao menos, depois de receber as devidas críticas da doutrina, como lição do que não se deve fazer no futuro.
1 Atualmente, está para ser julgado, na sessão virtual com início em 19.11.2025, o agravo interno interposto pela parte BMW do Brasil Ltda., em face da decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário com fundamento no art. 1.030, I, ‘b’, CPC.
2 Disponível aqui. A partir de 1:44:31.
3 ARRUDA ALVIM, Teresa. A fundamentação das sentenças e dos acórdãos. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023. Item 8.3.3, p. 221-229.
4 “Os votos têm de ser computados separadamente em relação a cada uma das questões preliminares, se houver (cf., infra, o comentário nº 369 aos art.s 560 e 561), e, sendo o caso, no tocante a cada parte do pedido e a cada causa de pedir. De outro modo, estarão a somar-se quantidades heterogêneas” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. v. V, p. 579).
5 ARRUDA ALVIM, Teresa. A fundamentação das sentenças e dos acórdãos. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023. Item 8.3.3, p. 221-229.
6 ARRUDA ALVIM, Teresa. Modulação: na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024. Itens 8.4.4, 8.4.5 e 8.46, p. 278-285.
7 O equacionamento da divergência qualitativa reclama redobrados esforços. Suponha-se o seguinte quadro: dos cinco componentes do órgão fracionário, dois inclinam-se a condenar o réu a pagar uma quantia em dinheiro, dois a absolvê-lo, e o quinto a impor-lhe a restauração em natura do dano, o que discrepa tanto do primeiro grupo de opiniões, quanto do segundo. Não há maioria absoluta em qualquer sentido. E nenhum dos expedientes aplicados à divergência quantitativa produzirá resultado nesse caso. Desenvolveram-se, então, três sistemas: (a) o da supervotação, convocando outros juízes, em número suficiente para o sufrágio de uma das teses; (b) o da opção coata, que vigorou no antigo direito francês – verificando-se a disparidade, realizava-se nova votação, e, persistindo o impasse, os partidários das correntes menos sufragadas deviam aderir a uma das correntes majoritárias -, mas aí substituído pelo sistema da supervotação, designando-se para tal fim uma aldeense de départage, e era adotado nas Ordenações Filipinas (Livro 1, Título 1, n.º 9); no exemplo proposto, o quinto juiz condenará a pagar uma quantia em dinheiro ou absolverá o réu; (c) o da exclusão, adotado no direito italiano (art. 276, n.º 4 do CPC peninsular), que consiste em pôr em votação, entre todas as opiniões discordantes, duas somente, escolhendo para esse fim qualquer delas, e resultando da votação a exclusão de uma, cotejando-se a vencedora, então, com a terceira, e assim sucessivamente, até reduzir a duas opiniões discrepantes, e, assim restringido o conflito, vencerá a que obtiver a maioria.
(ASSIS, Araken de Manual dos recursos. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 484-485).